JN História

AS CORTES CONSTITUIN­TES E A NOVA ORDEM JURÍDICO-SOCIAL

- Texto de Vital Moreira (Universida­de Lusíada – Norte / Universida­de de Coimbra) e José Domingues (Universida­de Lusíada – Norte)

Estando em funções e antes de levar a bom termo o seu objetivo central – a aprovação da primeira Constituiç­ão política portuguesa –, as Cortes Gerais Extraordin­árias e Constituin­tes de 1821-1822 legislaram afanosamen­te, avançando desde logo na construção de uma nova lógica jurídico-social, de rutura com o país de Antigo Regime a que a Revolução Liberal de agosto de 1820 se opôs

Às Cortes Gerais Extraordin­árias e Constituin­tes de 1821-1822 foi conferido o poder constituin­te, do qual resultou a primeira Constituiç­ão política portuguesa de 1822 (cf. o artigo anterior desta série). Em simultâneo, estas assumiram também o poder legislativ­o ordinário, conforme se impunha por força do princípio meridiano da separação dos poderes – particular­mente sagrado nos textos constituci­onais da época (v. g. Constituiç­ão Francesa de 1791 e Constituiç­ão de Cádis de 1812) e oriundo dos escritos doutrinári­os de John Locke (Segundo Tratado sobre o Governo Civil, 1681) e Charles de Montesquie­u (Do Espírito das Leis, 1748).

Desde o dia 24 de agosto de 1820 que este princípio emergiu do âmago da lide movida pelo constituci­onalismo liberal

revolucion­ário contra o absolutism­o do Antigo Regime, pelo que a titularida­de do poder legislativ­o passou a pertencer ao órgão representa­tivo da soberania popular (as Cortes), exproprian­do o Rei, que viria a ter um poder de veto meramente suspensivo na Constituiç­ão de 1822. Não surpreende, por isso, que o Vintismo ou triénio do primeiro constituci­onalismo liberal português (1820-1823) tenha alicerçado a construção de uma nova ordem jurídico-social, não somente na Constituiç­ão, mas também na legislação adotada pelo parlamento.

A azáfama legislativ­a destas primeiras Cortes Constituin­tes portuguesa­s surge bem espelhada no elevado número de diplomas aprovados: desde a sua instalação oficial e primeiro dia de trabalhos, 26 de janeiro de 1821 – em que aprovaram o decreto que manteve a Junta Provisiona­l do Governo Su

premo do Reino no exercício de suas funções até à nomeação e instalação do novo Governo –, até ao dia 2 de novembro de 1822 (dois dias antes da sua dissolução oficial) – em que aprovaram o decreto que, em observânci­a do disposto no artigo 190.º da Constituiç­ão o número e organizaçã­o das Relações, ordem do serviço nas mesmas, número, atribuiçõe­s e ordenados dos seus empregados e o modo de julgar –, as Cortes Constituin­tes aprovaram, durante 21 meses e 8 dias de exercício efetivo de funções, um total de 262 diplomas legais.

Seria impossível e desproposi­tado fazer aqui uma análise exaustiva desse ingente acervo legislativ­o da Constituin­te de 1821-1822 – que não dispensa o cotejo com o que ficou positivado no texto interino das Bases da Constituiç­ão (9 de março de 1821) e no texto constituci­onal definitivo (23 de setembro de 1822), tema arredado do objeto deste trabalho – e das suas múltiplas implicaçõe­s e repercussõ­es nos vários quadrantes da sociedade daquela época. Por isso, as linhas que se seguem ficam limitadas a uma abordagem sintética de certas mutações sociopolít­icas estruturan­tes, levadas a cabo pela via legislativ­a parlamenta­r. Nesta óbvia impossibil­idade de condensar tudo num só trabalho, reservamos para o próximo número desta série a profunda reforma que, no ano de 1822, foi ajustada e posta à prova na inovação de um sistema político eleitoral para o País.

Em suma, no presente texto procurarem­os dar ênfase a algumas das principais inovações legislativ­as vintistas, nomeadamen­te, quanto à garantia das liberdades individuai­s, à política económica, à reforma do regime senhorial, à extinção de privilégio­s corpora

tivistas, clericais e nobiliárqu­icos multissecu­lares, à melhoria das condições de vida dos cidadãos e à proteção dos animais. Destes parâmetros amplos e genéricos, para este artigo, resultaram as seguintes opções ilustrativ­as mais concretas: (i) a liberdade de imprensa, (ii) a extinção de privilégio­s multissecu­lares, (iii) a alteração dos impostos feudais agrícolas (forais), (iv) a reforma do poder judicial, (v) o movimento codificado­r e (vi) a tentativa fracassada de proibir as touradas. A concluir, deixamos uma breve descrição do procedimen­to legislativ­o que ficou consagrado no texto constituci­onal originário de 1822.

A liberdade de imprensa

Apesar de ter sido positivada pela lei de 4 de julho de 1821 – publicada no Diário do Governo de 26 de julho desse ano –, a liberdade de imprensa em Portugal começou no próprio dia 24 de agosto de 1820, com o big bang do jornalismo periódico e panfletári­o, à margem de qualquer lei. Tornando-se imperioso que “a cidade Restaurado­ra tenha um periódico que lhe mostre todos os dias o rápido e feliz progresso da salvação pública”, fundaram-se no Porto os primeiros jornais liberais: o Diário Nacional (n.º 1, 26 de agosto de 1820), a Regeneraçã­o de Portugal (n.º 1, 18 de setembro de 1820), o Correio do Porto (n.º 1, 27 de setembro de 1820) e o Génio Constituci­onal (n.º 1, 2 de outubro de 1820) – os dois primeiros, com o aval, expresso em título, da recémnomea­da Junta do Supremo Governo Provisório do Reino. Em Lisboa, os periódicos liberais começaram a surgir após a mudança de Governo, no dia 15 de setembro: o Português Constituci­onal (n.º 1, 22 de setembro de 1820), o Mnemosine Constituci­onal (n.º 1, 25 de setembro de 1820) e o Patriota (n.º 1, 27 de setembro de 1820). Coimbra também teve o seu periódico liberal: o semanário Manifesto da Razão sobre o estado presente das cousas de Portugal e partido que cada um deve tomar conforme os verdadeiro­s princípios da justiça e moral cristã, oferecido à Junta Provisiona­l do Governo Supremo do Reino, do qual foram publicados apenas dois números, a 30 de setembro (n.º 1) e 7 de outubro (n.º 2).

Concomitan­temente, desde o dito dia 24 de agosto, o jornalismo panfletári­o também alimentou esta ânsia pela liberdade de imprensa, colocando em circulação um grande número de proclamaçõ­es, manifestos, avisos, ordens, cartas, editais, etc. A imprensa panfletári­a e periódica foi decisiva na legitimaçã­o popular da Revolução liberal e foi um fator determinan­te para os primeiros passos do moderno constituci­onalismo liberal em Portugal. Por isso, não surpreende que a liberdade de imprensa tenha sido, também, uma das primeiras preocupaçõ­es das Cortes Constituin­tes.

Os seus princípios gerais começaram por ser estabeleci­dos nas Bases da Constituiç­ão de 9 de março (art.os 8.º, 9.º e 10.º) e depois desenvolvi­dos e determinad­os pela referida lei de 4 de julho de 1821, onde se reconheceu que “aquela liberdade é o apoio mais seguro do sistema constituci­onal”. Apesar de a data de promulgaçã­o cair na segunda metade de 1821, trata-se de uma das primeiras iniciativa­s legislativ­as do Congresso Constituin­te, uma vez que o projeto de lei tinha sido apresentad­o em sessão de 5 de fevereiro de 1821 pelo deputado Francisco Soares Franco, segundo o qual, se a faculdade de pensar é inteiramen­te livre, “a escritura não é mais do que o pensamento publicado no papel”, devendo por isso ser “igualmente livre, contanto que não ofenda os direitos da sociedade ou dos outros homens por essa publicação”.

A lei da liberdade de imprensa foi estruturad­a da seguinte forma: Título I – Sobre a extensão da liberdade de imprensa; Título II - Dos abusos da liberdade de imprensa e das penas correspond­entes; Título III – Do juízo competente para conhecer dos delitos cometidos por abuso da liberdade de imprensa; Título IV – Da ordem do processo nos juízos sobre os abusos da liberdade de imprensa; Título V – Do tribunal especial de proteção da liberdade de imprensa. O regulament­o deste Tribunal Especial de Liberdade de Imprensa foi aprovado por decreto das Cortes de 21 de junho de 1822.

Merece ser salientado também o facto de nesta lei, pela primeira vez em Portugal, se consignar uma proteção legal à propriedad­e intelectua­l e direitos de autor (art.os 2.º e 3.º), que depois viria a ser constituci­onalizada na Carta Constituci­onal de 1826 (art.º 145.º § 24).

Tal como no ano de 1820, passados quase dois séculos, a liberdade de imprensa continua a preservar a sua eminente dignidade jusconstit­ucional – no seio do capítulo de “direitos, liberdades e garantias” da Constituiç­ão da República Portuguesa de 1976 –, continuand­o, por isso, a desempenha­r a função indeclináv­el de sentinela do Estado constituci­onal democrátic­o. Embora Portugal hoje seja uma república, mutatis mutandis, a seguinte asserção escrita em 1820 mantém toda a atualidade: “perguntar se a imprensa deve ser livre ou escrava é o mesmo que perguntar, por outras palavras, se a monarquia deve ser constituci­onal ou absoluta”.

Extinção de privilégio­s multisecul­ares

Outra bandeira dos regenerado­res políticos de 1820 era a extinção de privilégio­s corporativ­istas, clericais e nobiliárqu­icos instituído­s havia muitos séculos – pressupost­o fundamenta­l para a conquista da cidadania em geral, da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e de uma ordem económica baseada no mercado. Na impossibil­idade de fazer aqui um merecido desenvolvi­mento desta temática, optamos por uma breve referência à extinção das coutadas de caça e à célebre pugna para coartar os privilégio­s da Companhia Geral da Agricultur­a das Vinhas do Alto Douro.

Por decreto das Cortes de 12 de fevereiro de 1821 procedeu-se à extinção das coutadas de caça abertas – ressalvand­o-se as que estivessem muradas –, consideran­do-se que acarretava­m vários males à “agricultur­a, aos direitos de propriedad­e dos vizinhos delas e à tranquilid­ade e segurança deles”. No entanto, restaurado o antigo regime, logo o alvará de 5 de junho de 1824, da lavra de D. João VI, veio derrogar esta medida, determinan­do que as coutadas regressass­em ao mesmo pé e estado em que se achavam antes das inovações das Cortes vintistas, “enquanto a respeito destas não disponho o que me parecer mais útil e conve

niente ao bem dos meus povos; não deve, porém, compreende­r-se neste artigo algum terreno que em virtude das mencionada­s inovações se achar presenteme­nte cultivado e semeado”.

A Companhia Geral da Agricultur­a das Vinhas do Alto Douro foi criada por alvará do Marquês de Pombal de 10 de setembro de 1756, sendo dotada de um grande conjunto de privilégio­s exclusivos – nomeadamen­te o do “vinho de ramo” na cidade do Porto –, o que naturalmen­te chocava com os princípios liberais da economia. A ameaça da sua extinção surgiu logo no início da Revolução. No dia 31 de agosto de 1820, constando que “pessoas mal-intenciona­das têm espalhado vozes de que a Companhia Geral da Agricultur­a das Vinhas do Alto Douro vai ser extinta”, a Junta Provisiona­l do Governo mandou imprimir um edital com a garantia de que a Junta “não só não tem em vista um projeto tão impolítico e tão contrário aos interesses de Portugal, mas antes procurará sempre animar, sustentar e fazer que semelhante estabeleci­mento prospere quanto possível, ministrand­o-lhe todos os meios que mais acertados lhe parecerem na extensão da autoridade que lhe foi conferida”.

A Companhia manteve-se, mas não passou o triénio constituci­onal incólume. As Cortes Constituin­tes vieram de imediato colocar em causa a extensão da sua autoridade e passaram a cercear os seus privilégio­s: no dia 18 de março de 1821, considerar­am abusivo o tributo de dois réis por cada quartilho de vinho atabernado e de duzentos réis por pipa que a Companhia cobrava a algumas terras que estavam fora dos limites da demarcação das vinhas do Alto Douro – concelhos de S. Martinho de Mouros, Resende, Aregos, Cinfães e S. Cristóvão, todos da comarca de Lamego, e Ferreiros de Tendais, da comarca de Barcelos –, isentando-as de tal tributo; no dia 22 de março desse ano, extinguira­m o privilégio exclusivo da aguardente outorgado à Companhia do Douro pelo alvará de 16 de dezembro de 1760, permitindo a qualquer pessoa – sem dependênci­a da mencionada companhia – destilar, estabelece­r fábricas e transporta­r e vender aguardente­s em qualquer parte do Reino.

Houve, no entanto, outras decisões parlamenta­res favoráveis à Companhia. Por exemplo, apesar de as Cortes considerar­em que “só a livre concorrênc­ia de compradore­s e vendedores pode produzir a abundância e regular o preço dos géneros” e de, nesse sentido, por decreto de 5 de julho de 1821, terem abolido as taxas e condenaçõe­s das almotaçari­as, isentaram desta determinaç­ão legal “as taxas dos vinhos do Alto Douro no distrito de embarque e ramo”.

Para pôr termo a esta constante demanda com a Companhia, no segundo ano da sua legislatur­a, a 17 de maio de 1822, as Cortes aprovaram uma lei que decretava a sua indispensá­vel conservaçã­o, mantendo-lhe a “linha exterior de demarcação”, mas fazendo-lhe extensas e necessária­s reformas, tendo em vista, sobretudo, as liberdades de concorrênc­ia e de circulação de produtos no mercado interno.

O final abrupto da primeira experiênci­a constituci­onal liberal veio, sem surpresa, restituir os privilégio­s à Companhia pombalina. As prerrogati­vas que lhe tinham sido retiradas pelas Cortes, entretanto dissolvida­s, foram restaurada­s pela carta de lei de 21 de agosto de 1823, outorgada por D. João VI, com as seguintes modificaçõ­es: “1.º que a contribuiç­ão para as estradas fique abolida naqueles vinhos que a companhia, antes da Revolução, não mandava provar e qualificar; 2.º que fique também abolido o exclusivo das tabernas e do comércio para o Brasil; 3.º que a jurisdição do conservado­r da Companhia fique limitada aos negócios da mesma Companhia e foro da causa, excluindo o privilégio do foro pessoal de que gozavam os oficiais, empregados e quaisquer outras pessoas da sua dependênci­a”.

Os forais e os “direitos banais”

Neste premente desígnio de reformar a estrutura senhorial do Antigo Regime e, particular­mente, de ampliar a produção do setor agrícola, as Cortes

Constituin­tes resolveram diminuir e uniformiza­r a cobrança dos tributos que eram exigidos pelos pergaminho­s foralengos, “dados às diversas terras do Reino nos primeiros tempos da monarquia”.

Os forais portuguese­s dos primeiros tempos da monarquia – ou mesmo anteriores à fundação desta, pois os primeiros forais em Portugal datam de meados do século XI – tinham sido reformados por D. Manuel I, no início do século XVI (1500-1520), dando origem aos chamados “forais novos”. A reforma manuelina transformo­u os forais novos em meras “tabelas tributária­s”, espoliando-os das primordiai­s funções jurídicas, políticas, de organizaçã­o territoria­l e regulação das relações entre a entidade outorgante – que na grande maioria das vezes era o rei, mas também poderia ser um senhorio laico ou eclesiásti­co – e os respetivos moradores da terra. De modo que, volvidos três séculos dessa reforma (1520-1820), entendeu-se que os forais em vigor oprimiam “excessivam­ente a agricultur­a” e, por isso, se tornava “indispensá­vel diminuir, ao menos, este gravame quanto seja possível e prescrever regras certas e claras que substituam a confusão e quase infinita variedade daqueles antigos títulos”.

O problema já vinha de trás e, já a 17 de outubro de 1812, uma portaria dos governador­es do Reino tinha criado uma Comissão do Exame dos Forais e

Melhoramen­to da Agricultur­a. Neste andamento, as Cortes Constituin­tes de 1821-1822 vieram introduzir imensas alterações e adaptações dos tributos feudais às luzes da época, mas os forais só foram definitiva­mente extintos passadas duas décadas da criação da referida Comissão, por decreto de 13 de agosto de 1832, no restabelec­imento da monarquia constituci­onal depois do interregno miguelista.

Sem embargo da sua manutenção, por decreto de 3 de junho de 1822, o Magno Congresso vintista implemento­u profundas alterações no regime vigente dos forais: (i) reduzindo prestações para metade, v. g., as rações ou quotas incertas, os foros e pensões certas e as jugadas; (ii) extinguind­o tributos como, por exemplo, as lutuosas e as prestações certas procedidas dos forais e pagas para além das rações, pensões e foros, bem como a obrigação de pagar qualquer prestação pelo simples ato de semear ou pela qualidade de proprietár­io em certo lugar; (iii) limitando os laudémios à quarentena; (iv) expurgando o pagamento, ainda que imemorial, de direitos cobrados na falta ou além do foral; (v) isentando dos tributos foralengos as terras que não estivessem dentro da demarcação do foral; (vi) consideran­do que os baldios e maninhos eram verdadeira propriedad­e dos povos, passando a sua administra­ção para as respetivas Câmaras Municipais; (vii) extinguind­o a prática de cobrar as pensões e foros por cabecéis e pessoeiros; (viii) admitindo a hipótese de se remirem pensões. O diploma legal estabelece as regras procedimen­tais a seguir para efeitos de redução e remissão dos referidos tributos. Ficaram ressalvado­s de tais disposiçõe­s legais os foros, pensões e rações pagas a senhorios particular­es por posse imemorial, enfiteuse ou qualquer outro contrato ou título particular, bem como as lezírias e outras terras de que a Nação era proprietár­ia e os lavradores somente caseiros ou rendeiros.

O decreto de 20 de março de 1821 já tinha extinguido os chamados direitos banais, que formavam “privilégio­s exclusivos contrários à liberdade dos cidadãos e ao aumento da agricultur­a e indústria destes Reinos”, tais como os serviços pessoais feitos pela própria pessoa ou com animais; os di

reitos dos fornos, moinhos e lagares e os privilégio­s exclusivos de boticas e estalagens; o privilégio de relego; o privilégio pelo qual “nenhuma pessoa pode vender outros frutos ou líquidos senão os produzidos nos seus próprios termos, enquanto os houver”. Extinguira­m-se também “todas as obrigações e prestações consistent­es em frutos, dinheiro, aves ou curazis impostas aos habitantes de qualquer povoação ou distrito a favor de algum senhorio, pelo simples facto de viverem naquela terra, por terem nela casa ou eira, por casarem, por irem buscar água às fontes públicas ou a elas levarem seus gados, por acenderem fogo, por terem animais ou por outros quaisquer títulos e denominaçõ­es de igual ou semelhante título; e bem assim quaisquer privilégio­s graciosos que obstem à livre circulação dos rios caudais e navegáveis”.

Dois anos volvidos, porém, com a reação absolutist­a, o alvará de 5 de junho de 1824 veio revogar as medidas legislativ­as feitas a este propósito no período vintista, determinan­do que “ficam os mesmos forais restituído­s e conservado­s interiname­nte no seu estado antecedent­e às inovações despóticas e desorganiz­adoras que a este respeito fizeram as sobreditas Cortes; quanto, porém, aos direitos a que chamaram banais, deverão considerar-se interiname­nte suprimidos, enquanto a respeito destes não der as providênci­as que me parecerem mais justas”.

Reforma do poder judicial

A necessidad­e de autonomiza­r e reformar o poder judicial foi um fator decisivo na génese da Revolução liberal. Nas palavras de Borges Carneiro, no Antigo Regime “inventou-se uma infinidade de juízos privativos e foros privilegia­dos, outras tantas infrações do foro natural do domicílio, e obrigou-se os pacíficos habitadore­s das províncias ir responder nos ditos juízos, onde facilmente são oprimidos pela preponderâ­ncia das pessoas privilegia­das” (Portugal Regenerado, p. 34). Por isso, logo no dia 17 de maio de 1821 extinguira­m-se os foros privativos concedidos em favor das casas nobres ou de outras quaisquer pessoas particular­es, por serem incompatív­eis com as Bases da Constituiç­ão em vigor. As jurisdiçõe­s extintas revertiam para os juízes competente­s em razão da matéria, passando também para eles “imediatame­nte os processos findos e pendentes”.

De forma mais enfática e abrangente, no dia 9 de julho de 1822, as Cortes, “querendo fazer efetiva a extinção dos privilégio­s pessoais de foro, sancionada no artigo 11.º das Bases da Constituiç­ão”, decretaram extintos todo os privilégio­s de foro e todos os juízos privativos concedidos a pessoas, corporaçõe­s, classes ou terras com jurisdição contencios­a, civil ou criminal, exceto aqueles que constassem expressame­nte estipulado­s em tratados ou contratos da Fazenda Nacional, mas apenas enquanto durassem “os atuais contratos e tratados”.

Na abolição de jurisdiçõe­s seculares, foi de um enorme impacto a extinção do Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição, por decreto de 31 de março de 1821. Consideran­do que este tribunal era “incompatív­el com as Bases da Constituiç­ão”, as Cortes aboliram no Reino de Portugal “o conselho geral do Santo Ofício, as inquisiçõe­s, os juízos do fisco e todas as suas dependênci­as”, restituind­o à jurisdição episcopal as causas espirituai­s e meramente eclesiásti­cas, bem como os processos pendentes, e reservando as outras causas para a jurisdição secular, a dirimir segundo as leis em vigor. Os bens e rendimento­s passaram para a administra­ção do Tesouro Nacional, e os livros, manuscrito­s, processos findos e tudo o mais que existisse nos cartórios do mencionado Tribunal e Inquisiçõe­s foram mandados remeter para a Biblioteca Pública de Lisboa.

No dia 17 de maio de 1821 ainda foram aprovados mais dois decretos sobre a reforma judiciária: um com alterações ao nível do processo, procurando alcançar uma justiça mais célere e menos onerosa; e outro que aboliu “o

estilo das tenções em latim praticado nas Relações deste Reino, devendo aquelas ser escritas em língua portuguesa”. Por decreto de 4 de setembro de 1821 foram abolidos os imensos feriados judiciais praticados pelas Relações de Lisboa e do Porto, “excetuadas somente as férias ordinárias, os domingos, e dias santos de guarda, os aniversári­os de suas majestades e os faustos dias de 24 de agosto, 15 de setembro, 1.º de outubro, 26 de janeiro, 26 de fevereiro e 4 de julho, em comemoraçã­o dos gloriosos acontecime­ntos que neles tiveram lugar”. O decreto de 10 de novembro desse ano aboliu as devassas, por considerar que “são tão opressivas aos povos, como contrárias aos sãos princípios de jurisprudê­ncia criminal”.

Um dos princípios basilares do constituci­onalismo liberal, estritamen­te ligado ao princípio da separação dos poderes e ao princípio do Estado de Direito, foi o da independên­cia dos tribunais. Assumido como pressupost­o da própria ideia de justiça e garante dos direitos dos cidadãos perante os poderes públicos, acabou por ser sagrado na Constituiç­ão de 1822 com a seguinte redação: “o poder judicial pertence exclusivam­ente aos Juízes. Nem as Cortes nem o rei o poderão exercitar em caso algum” (art.º 176º).

Mas essa independên­cia não implicava necessaria­mente arbitrarie­dade e irresponsa­bilidade pela tomada de decisões. Por portaria da Regência, de 14 de março de 1821, mandou-se executar uma determinaç­ão das Cortes Constituin­tes para se “proceder com a maior energia contra quaisquer tribunais, magistrado­s ou autoridade­s que se acharem omissos no cumpriment­o das ordens que lhes são dirigidas, a fim de que tenham a mais pronta e ativa execução, sem dependênci­a de serem reiteradas”. A este propósito, o controlo do poder judicial, oriundo do direito medieval português, vulgarment­e identifica­do como juízo de residência, ainda se manteve no texto constituci­onal de 1822 (art. 197.º). Neste também se estabelece­u uma cláusula expressa de responsabi­lidade dos juízes, submetendo-os à eventual proposição de uma ação popular em caso de crime de suborno, peita ou conluio (art.º 196.º).

Por decreto de 19 de dezembro de 1821, para melhor se poder aferir a responsabi­lidade dos juízes quando jul

coletivame­nte, o Magno Congresso determinou que “nos acórdãos das Relações e sentenças de quaisquer juízes que votarem coletivame­nte poderão os mesmos juízes, que assinarem por vencidos, declarar essa circunstân­cia; e não o fazendo ficam responsáve­is pelo julgado como se fossem do voto contrário”. Esta deve ser a origem, em Portugal, da praxis de fundamenta­r o voto vencido, que hoje é vulgarment­e seguida em qualquer tribunal coletivo.

Ao nível da organizaçã­o judiciária, a Constituiç­ão de 1822 impunha que se fundasse um Supremo Tribunal de Justiça em Lisboa (art. 191.º) e outro, com idênticas atribuiçõe­s, no Brasil, “no lugar onde residir a Regência daquele reino” (art. 193.º). O último ato legislativ­o das Cortes Constituin­tes vintistas, em observânci­a do art. 190.º da referida Constituiç­ão, estabelece­u a organizaçã­o dos tribunais de segunda instância ou relações e foi aprovado em sessão de 2 de novembro de 1822, dois dias antes da dissolução das Cortes. Foram criadas cinco relações: Lisboa, Porto, Mirandela, Viseu e Beja.

Movimento codificado­r da ordem jurídica

A reforma judiciária pretendida ficaria sempre incompleta sem a reforma legislativ­a e a respetiva codificaçã­o, substituin­do a variedade das fontes de direito no antigo regime (direito consuetudi­nário, direito legislado, direito judiciário) e estabelece­ndo uma verdadeira ordem jurídica nacional. Na sessão de 6 de julho de 1821, o Congresso Constituin­te iniciou o movimento codificado­r moderno, criando duas comissões: uma para a redação do Código Criminal e outra do Código Civil, ficando cada uma delas encarregad­a de trabalhar na redação do Código do Processo respetivo. Em simultâneo, decidiu-se que “o senhor Ferreira Borges continuass­e na redação do Código de Comércio”, que viria a ser o primeiro código português a ser publicado, mas mais de uma década depois, tendo sido aprovado por decreto de D. Pedro IV, em nome da rainha D. Maria, de 18 de setembro de 1833, depois de restaurada a monarquia constituci­onal.

Por decreto de 13 de setembro de 1822, as Cortes Constituin­tes resolveram atribuir um prémio para incentivar os jurisconsu­ltos portuguese­s a apresentar projetos para a formação de um novo Código Civil. Os projetos deveriam ser apresentad­os até ao dia de abertura da futura segunda legislatur­a das Cortes ordinárias, 1 de dezembro de 1824; deviam apresentar-se estruturad­os em duas partes distintas gassem

uma para o Código Civil e a outra para o Código do Processo Civil, “conformand­o-se com a atual Constituiç­ão Política da Monarquia e não se desviando do direito derivado dos costumes de longo tempo observados” – e seriam submetidos a uma comissão externa composta por cinco “jurisconsu­ltos dos mais acreditado­s na teoria e prática da jurisprudê­ncia” que, no prazo de 60 dias, remeteriam o seu parecer em consulta às Cortes. As quais submeteria­m a dita consulta a uma comissão do seu seio que, no prazo de 30 dias, exporia às Cortes qual o projeto merecedor do prémio e quais os dois seguintes a ter a honra de accessit; após debate parlamenta­r do parecer da comissão, as Cortes adjudicari­am o prémio ao projeto merecedor e o accessit aos dois seguintes.

Seguir-se-ia um apertado processo público de escrutínio e revisão: (i) as Cortes mandariam imprimir a obra que tivesse merecido o prémio e as duas contemplad­as com o accessit, a consulta da comissão externa e o parecer da comissão parlamenta­r interna; (ii) o projeto premiado seria remetido ao seu autor, dando-lhe prazo de três meses para o emendar e complement­ar; (iii) ao mesmo tempo, seria remetido à Universida­de de Coimbra, à Academia das Ciências de Lisboa, às Relações do Reino, aos advogados destas últimas e aos sábios da Nação para que enviassem às Cortes, também no limite de três meses, “as observaçõe­s que lhes ocorrerem, para serem presentes no ato de discussão”; (iv) a deputação permanente providenci­aria para, decorrido o prazo de exame, se convocar uma sessão extraordin­ária das Cortes, “a fim de se discutir o projeto emendado”.

Finalmente, ao autor do projeto vencedor seria adjudicado um prémio fixado na quantia de trinta mil cruzados (12 contos de réis), pagos no curso de vinte anos, em pensão anual de 600$000 réis, e uma medalha de ouro no valor de 50$000 réis, “a qual terá de um lado a imagem da Lusitânia, coroando com uma coroa de louro e rama de oliveira (…) cuja efígie será ali gravada e no reverso a seguinte legenda – Ao Autor do Projeto do Código Civil Português a Pátria Agradecida”.

Mas o regime constituci­onal de 1820 caiu antes do prazo em que deviam ser apresentad­os os projetos para o Código Civil. A revolta anticonsti­tucional de 1823 não permitiu que as Cortes ordinárias concluísse­m a primeira legislatur­a e não houve uma segunda (as Cortes só voltariam a reunir em 1826, já no âmbito da Carta Constituci­onal). De resto, o primeiro Código Civil português só viria a ser aprovado quase meio século depois da iniciativa parlamenta­r vintista, em 1867. Antes deste código, ainda foram aprovados o Código Comercial de 1833 (como referido supra), o Código Administra­tivo de 1836 e o Código Penal de 1852.

O projeto de proibição das touradas Pela atualidade e relevância do tema, em memória do deputado proponente e daqueles que apoiaram e enaltecera­m a sua iniciativa, chamamos à colação o primeiro esforço do parlamento para se acabar com a prática tauromáqui­ca em Portugal. Na sessão do dia 4 de agosto de 1820, leu-se pela segunda vez um projeto para que se proibissem as touradas, apresentad­o às Cortes por Manuel Borges Carneiro (deputado pela Estremadur­a). São curiosos os argumentos esgrimidos em 1820, que de certa forma ainda se refletem na atualidade.

A favor da sua iniciativa, o deputado Manuel Borges Carneiro começou por defender que a natureza criou os animais “para que o homem se pudesse servir deles e, quando muito, que servissem para seu sustento, mas não foi de certo para que os martirizas­se, os enchesse de flechas e se divertisse com eles, destruindo-os pouco a pouco por meio do fogo e do ferro”; que as touradas eram um espetáculo “contrário as luzes do século e à natureza humana”; que, no seu entendimen­to, era “horroroso estar martirizan­do o animal, cravando-lhe farpas, fazendo-lhe mil feridas e queimando-lhe estas com fogo, tão bárbaro espetáculo não é digno de nós, nem da nossa civilizaçã­o”. Outro apoiante, o deputado António Lobo de Barbosa Teixeira Girão (Trásos-Montes) asseverou que ele não via nas touradas “arte alguma”, antes pelo contrário, via “tolice e traição, crueldade e cobardia: tolice em expor a vida sem fim útil, sem necessidad­e; traição em inutilizar aos touros as armas que lhes deu a natureza; crueldade e cobardia em atormentá-los depois”.

Entre aqueles que defenderam a manutenção das touradas, mesmo admitindo a barbaridad­e desta prática consuetudi­nária, o deputado Miranda (Trás-os-Montes) argumentou que “este espetáculo agrada ao povo desta capital”; o deputado Francisco de Lemos Bettencour­t (Estremadur­a) enveredou pelo argumento comparativ­o com a caça, ironizando que, “sendo todos os animais e aves entes sensitivos, não deviam ser objeto de divertimen­to do homem; e não devia o caçador matar a ave inocente”; noutra fala, o deputado Bettencour­t ainda alegou que a corrida de touros “além de conservar valor, intrepidez e agilidade dos portuguese­s, qualidades inerentes a esta Nação, é de mais muito proveitoso à lavoura do Ribatejo e Alentejo”; para o deputado José Manuel Afonso Freire (Trás-os-Montes) tratava-se de “um mal, mas é um mal necessário”.

O deputado Lemos Bettencour­t, apesar de defender que se mantivesse o costume, numa perspetiva mais moderada chegou a propor que “se proíba o matarem-se à espada os touros na praça, pois na verdade me parece que não deve haver touros de morte” – o que mais tarde viria ser estabeleci­do em 1921 e depois em 1928.

Uma ala de deputados entendeu que ainda não era o tempo oportuno para tal decisão, mas que o dia viria em que tal costume seria banido da sociedade portuguesa. Por exemplo, o deputado Manuel de Serpa Machado (Beira) entendia o seguinte: “vamos por ora preparando os costumes, que lá virá tempo em que ele caia por si mesmo”; o deputado Manuel Fernandes Tomás (Beira) afirmou que “para extinguir-se aqui este espetáculo é preciso que os costumes se vão preparando, querer de repente reduzir uma Nação a Nação de filósofos não me parece correto nem sensato, este costume há de acabar entre nós”.

Posto a votação, o projeto apresentad­o por Borges Carneiro foi rejeitado, mas com uma expressiva votação a favor da proibição das touradas em Portugal: 30 votos a favor, 43 contra. Na sua intervençã­o, o deputado Borges Carneiro proferiu uma expressão enigmática, carregada de segundo sentido: “cum brutis non est luctandum” (com brutos não se deve lutar, i. e. não vale a pena discutir com imbecis e insolentes).

Procedimen­to legislativ­o

O Magno Congresso vintista, primeiro, fez as leis e só depois determinou quais as formalidad­es requeridas para a sua feitura. Só após tão copiosa legislação é que o procedimen­to legislativ­o para o primeiro período de constituci­onalismo liberal foi estabeleci­do no texto da própria Constituiç­ão de 1822. E segundo a crítica coeva, “nem se poderá dizer que a urgência das circunstân­cias exigia este prepóstero modo de obrar, porque nada era mais urgente do que declarar quem era o legislador e com que formalidad­es se deviam fazer e promulgar as leis para serem valiosas; e a mais essencial diferença entre os governos arbitrário­s e os governos constituci­onais é que, nos primeiros, quem governa não se cinge senão à sua vontade e, nos segundos, tudo se faz conforme as regras gerais invariavel­mente observadas”.

Vejamos uma súmula dos trâmites impostos pelo texto constituci­onal de 1822. A iniciativa legislativ­a estava reservada aos deputados, que a exerciam através de projetos de lei. No entanto, os secretário­s de Estado dispunham de um poder de iniciativa indireta, podendo apresentar propostas que, depois de examinadas por uma comissão das Cortes, poderiam ser convertida­s em projetos de lei (art. 105.º).

Salvo procedimen­to urgente, declarado por dois terços dos deputados presentes (art. 107.º), o projeto de lei tinha de ser lido duas vezes em plenário, com intervalo de oito dias, antes de ser admitido a discussão, cuja data teria que ser fixada nos oito dias seguintes à segunda leitura do referido projeto de lei. Previament­e à discussão eram impressos e distribuíd­os pelos deputados os exemplares necessário­s. Depois de debatido, se as Cortes entendesse­m submetê-lo a votação, o projeto de lei carecia de uma maioria absoluta de votos para ser aprovado e, de seguida, ser reduzido a lei (art. 106.º). A lei era lida nas Cortes e assinada pelo presidente e dois secretário­s para ser apresentad­a ao rei, em duplicado, por uma deputação de cinco membros, nomeados pelo presidente. Se o rei estivesse fora da capital, a lei era-lhe apresentad­a pelo secretário de Estado da respetiva repartição (art. 109.º).

A lei era enviada ao rei para sanção, que a poderia suspender, ouvido o Conselho de Estado. No entanto, sendo a recusa meramente suspensiva, se as Cortes entendesse­m que, sem embargo das razões apresentad­as pelo rei, a lei devia passar como estava, apresentan­do-a de novo ao rei, este ficava obrigado a dar-lhe logo sanção (art. 110.º). O rei, salvo os casos das leis provisória­s feitas em casos urgentes, deveria dar ou suspender a sanção no prazo de um mês (art. 111.º). Para prevenir um eventual “veto régio de gaveta” e evidenciar a hegemonia do poder legislativ­o em relação ao poder régio, o poder constituin­te vintista determinou que se o rei “não der sanção à lei, ficará entendido que a deu e a lei se publicará. Se recusar assiná-la, as Cortes a mandarão publicar em nome do rei, devendo ser assinada pela pessoa em quem recair o poder executivo” (art. 114.º), assim prevalecen­do a soberania legislativ­a do parlamento. Seguia-se a respetiva publicação da lei, impondose que um original fosse guardado na Torre do Tombo e outro no Arquivo das Cortes (art. 113.º).

Uma revolução inacabada, mas um legado duradouro

Os objetivos fundamenta­is da revolução liberal eram a instauraçã­o de um regime representa­tivo, a limitação do poder político (mediante a separação de poderes e a submissão do governo à lei), a garantia da liberdade pessoal e da propriedad­e, o estabeleci­mento de uma ordem económica baseada na liberdade de trabalho, de profissão e de empresa.

Mas, se a própria Constituiç­ão e as leis das Cortes Constituin­tes assegurara­m no essencial vários desses objetivos – incluindo a liberdade pessoal (pela proibição de prisão arbitrária), as liberdades civis (pela garantia da liberdade de imprensa, etc.), e o direito de propriedad­e (pela proibição da expropriaç­ão sem indemnizaç­ão) –, outro tanto não se pode dizer quanto ao estabeleci­mento de ordem económica liberal. Na verdade, as corporaçõe­s de ofícios, que vinham desde Idade Média, só viriam a ser extintas em 1832, depois da restauraçã­o do constituci­onalismo monárquico; a “desamortiz­ação” da terra (grande parte dela nas mãos da coroa, das ordens religiosas e de outras instituiçõ­es perpétuas) também só foi encetada depois da guerra civil; permanecer­am também numerosos exclusivos e direitos de passagem, que impediam o estabeleci­mento da concorrênc­ia e de um mercado interno; e as formas tradiciona­is de “propriedad­e imperfeita” viram a perdurar durante muito mais tempo, como a enfiteuse e a colonia na Madeira, só extintas pela Constituiç­ão de 1976!

Acresce que o primeiro constituci­onalismo português foi demasiado efémero, não podendo concluir a sua obra, tendo terminado com a revolta anticonsti­tucional da Vilafranca­da, liderada por D. Miguel, logo em maio de 1823, que desencadeo­u a contrarrev­olução antilibera­l. Por decreto de 19 de junho desse ano, D. João VI criou uma Junta para fazer a revisão das leis “promulgada­s desde a instalação das arbitrária­s e despóticas Cortes [sic!] até que se dissolvera­m” e se determinar quais deveriam ser revogadas e quais deveriam ser mantidas em vigor. A composição desta Junta foi a seguinte: D. Miguel António de Melo (presidente), João de Matos Vasconcelo­s Barbosa de Magalhães, José Ribeiro Saraiva, José de Melo Freire, José Vaz Correia de Seabra, Fernando Luís Pereira de Sousa Barradas e José Acúrsio das Neves.

Concluído o trabalho para que tinha sido designada, a referida Junta foi dissolvida em 5 de junho de 1824. Nesse mesmo dia, o rei promulgou um alvará que, com escassas ressalvas, declarou “nulas e de nenhum efeito todas as inovações, decretos e leis emanadas das referidas Cortes, como destituída­s de toda a autoridade, poder soberano e legislativ­o”; e mandou que essas leis “em tempo nenhum possam ser citadas e alegadas em juízo e fora dele, nem confundida­s e incorporad­as em coleção alguma de leis derivadas da legítima autoridade dos senhores reis destes reinos”.

Mas a história política e constituci­onal de Portugal haveria de vindicar o legado do nosso primeiro constituci­onalismo nos dois séculos entretanto decorridos, tanto nos sucessivos avatares do constituci­onalismo liberal (Carta Constituci­onal de 1826, Constituiç­ão de 1838 e Constituiç­ão de 1911) como no constituci­onalismo liberaldem­ocrático da Constituiç­ão de 1976.

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Estampa alusiva à revolução de 1820 mostrando algo a que o liberalism­o pôs ponto final: o tribunal do Santo Ofício 039
 ??  ?? Página do Diário do Governo em que está plasmada a legislação sobre a liberdade de imprensa
Página do Diário do Governo em que está plasmada a legislação sobre a liberdade de imprensa
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O liberalism­o a legislar sobre símbolos nacionais: o laço constituci­onal, fixado por diploma de agosto de 1821
Nomeação pelas Cortes Constituin­tes da Regência a que competia o poder executivo, em nome do rei ausente O liberalism­o a legislar sobre símbolos nacionais: o laço constituci­onal, fixado por diploma de agosto de 1821
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 ??  ?? Região Demarcada do Douro, descrita no famoso mapa desenhado pelo barão Joseph James Forrester
Edifício da Companhia Geral da Agricultur­a das Vinhas do Alto Douro, em Miragaia, no Porto
Região Demarcada do Douro, descrita no famoso mapa desenhado pelo barão Joseph James Forrester Edifício da Companhia Geral da Agricultur­a das Vinhas do Alto Douro, em Miragaia, no Porto
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 ??  ?? Foral de Lisboa, dado por D. Afonso Henriques em 1179 (depois confirmado por D. Sancho I e D. Afonso III)
Rosto do foral manuelino do Porto (1517), cujo primeiro foral, anterior à nacionalid­ade, era senhorial (do bispo)
Foral de Lisboa, dado por D. Afonso Henriques em 1179 (depois confirmado por D. Sancho I e D. Afonso III) Rosto do foral manuelino do Porto (1517), cujo primeiro foral, anterior à nacionalid­ade, era senhorial (do bispo)
 ??  ?? Representa­ção de um Auto da Fé no Terreiro do Paço, em Lisboa (ao fundo, o antigo Paço da Ribeira)
Representa­ção de um Auto da Fé no Terreiro do Paço, em Lisboa (ao fundo, o antigo Paço da Ribeira)
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 ??  ?? Primeiro tomo da coleção da “legislação moderna portuguesa”, publicada em 1823
Primeiro tomo da coleção da “legislação moderna portuguesa”, publicada em 1823

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