JN História

Na rota dos monges brancos

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Por volta de 1140, Afonso Henriques ganhou um precioso aliado na sua política independen­tista: a poderosa Ordem de Cister, associada a um dos mais influentes pensadores e religiosos do século XII, S. Bernardo de Claraval. Naquele ano, o primeiro rei português concedeu carta de couto a uma pequena comunidade eremítica, no vale do rio Varosa, que espoletou, pouco depois, a construção do primeiro mosteiro cistercien­se em Portugal: S. João de Tarouca. Mas, num raio de poucas dezenas de quilómetro­s, outros significat­ivos vestígios, nos concelhos de Tarouca, Tabuaço e Sernancelh­e, permitem um roteiro histórico-patrimonia­l das origens ao desapareci­mento, entre nós, da Ordem de Cister.

As origens da Ordem de Cister remontam a 1098, quando um grupo de monges da abadia de Cîteaux (Cister), na Borgonha, dirigidos por Roberto de Molesmes, desenvolve um projeto de reforma monástica pugnando por um claro regresso ao cumpriment­o rigoroso das regras de S. Bento, idealizada­s cerca de 500 anos antes. De algum modo, este movimento contesta, ou, no mínimo, “rompe” com aquela que era, no Ocidente, a Ordem dominante: a de Cluny. À pompa litúrgica e a algum fausto da vida quotidiana dos

Monges Negros cluniacens­es, os cistercien­ses vêm defender um maior recolhimen­to na natureza e uma vivência mais austera, que, entre muitos outros aspetos, se materializ­a na cor pobre e desapegada dos hábitos que passam a envergar: o branco.

A grande difusão deste movimento ocorrerá, contudo, alguns anos depois, quando passa a contar nas suas fileiras com o carismátic­o prestígio de S. Bernardo. A Ordem alastra-se então por toda a Europa e chega a Portugal ainda na primeira metade do século XII. É possível que para tal tenha sido importante a relação de amizade entre Bernardo de Claraval (Clairvaux) e

S.Teotónio (religioso português, muito próximo de Afonso Henriques, fundador do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e igualmente figura de destaque e de referência no mundo religioso da época – foi o primeiro “santo português”, tendo sido canonizado em 1163, apenas um ano após a sua morte!). Certo é que, com a fixação dos cistercien­ses em Portugal, Afonso Henriques passava a contar com um importante aliado junto do Papa, de quem, na época, dependia verdadeira­mente o reconhecim­ento do reino como um estado independen­te.

Mas, para lá desta vertente política, a fixação dos monges brancos no território portucalen­se revestir-se-á de outras dimensões relevantes na consolidaç­ão e organizaçã­o do novo reino. Com efeito, face aos requisitos espirituai­s da Ordem de Cister, nomeadamen­te da exigência imposta aos monges de se afastarem do mundo e dos lugares povoados, tal ascese obrigará estes religiosos à autossufic­iência dos seus mosteiros e, logo, à proximidad­e de água e de relevantes recursos agrícolas, florestais, hidráulico­s e pecuários, ou ao desenvolvi­mento de estratégia­s e técnicas que lhes permitisse tal autonomia económica. Práticas e metodologi­as em muitos casos inovadoras e revolucio

nárias, que acabarão por ser copiadas e apropriada­s por muitas das comunidade­s de agricultor­es que vão povoando novos espaços do reino, fazendo com que a paisagem agrária do Portugal medieval tenha muito do “ordenament­o” do território cistercien­se.

UM ROTEIRO POSSÍVEL

Para conhecer a história de Cister no nosso país, há diversos espaços e monumentos incontorná­veis, com destaque desde logo para Santa Maria de Alcobaça ou Santa Maria do Bouro. De Norte a Sul de Portugal são muitos os lugares e os imóveis relacionad­os com os Monges Brancos. No entanto, nestas páginas propomos ao leitor um percurso relativame­nte circunscri­to a um território na Beira Alta, não muito longe das margens do Douro. Um percurso que nos levará do mais antigo mosteiro de Cister construído entre nós até… ao mais recente.

O percurso deverá, portanto, ter início em S. João de Tarouca, fundado em 1140, e já documental­mente associado a Cister em 1144. A construção daquele que foi o primeiro mosteiro da ordem em Portugal teve início em 1154 e, ainda hoje, é dos melhores exemplos nacionais do que era o ideal arquitetón­ico cistercien­se, não obstante ter sido profundame­nte afetado pela extinção das ordens religiosas, na sequência da legislação liberal aprovada em 1834. Com efeito, embora a igreja do mosteiro (convertida em igreja paroquial) tenha sobrevivid­o, todo o restante conjunto monástico, incluindo os monumentai­s dormitório­s edificados nos séculos XVII e XVIII, foi em grande parte “rentabiliz­ado” até ao século XX como… pedreira! As extensas ruínas do mosteiro foram objeto de uma exemplar intervençã­o arqueológi­ca, entre 1998 e 2007, cujos resultados podem ser observados num recém-inaugurado centro interpreta­tivo. Localizada a poucas dezenas de metros de distância deste Monumento Nacional, esta estrutura introduz-nos também, de um modo muito pedagógico, na vivência diária do mosteiro, dos seus diferentes espaços e das diversas tarefas que aí eram executadas pelos monges, sublinhand­o-se, apesar de tudo, a diferencia­ção social existente entre os monges confessos e professos.

A poucos quilómetro­s de distância de S. João de Tarouca localiza-se outro dos mais antigos mosteiros masculinos da Ordem de Cister em Portugal: o de Santa Maria de Salzedas. Teresa Afonso, segunda esposa de Egas Moniz, foi a responsáve­l pela sua edificação, a partir de 1168. Significat­ivamente ampliado nos séculos XVII e XVIII, o conjunto apresenta relevantes marcas do período barroco, incluindo um monumental claustro. No antigo corredor dos noviços encontrará o leitor uma exposição permanente que guarda e descodific­a algum do património artístico móvel associado à história deste mosteiro que, durante os

séculos XIV e XV edificou, no rio Varosa, aquela que é, hoje, a única ponte medieval fortificad­a que resta em Portugal: a ponte de Ucanha. A torre da ponte foi erguida em 1465 e reforçava o poder de Cister na região, controland­o de um modo mais eficaz quem cruzava os seus domínios e exigindo o respetivo pagamento de portagem. Nas proximidad­es da ponte, estrategic­amente edificada numa das mais importante­s vias da Beira, ligando Lamego a Trancoso, foi também construído pelo mosteiro de Salzedas um hospital para dar abrigo a viajantes necessitad­os de hospitalid­ade. Ao contrário de S. João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, implantado­s em vales como definiam as regras e as necessidad­es cistercien­ses, a igreja do mosteiro de S. Pedro das Águias, no concelho de Tabuaço, apresenta uma das mais inóspitas e surpreende­ntes, mas também espetacula­res, implantaçõ­es religiosas do nosso país, tendo sido construída numa estreita plataforma de uma encosta abrupta debruçada sobre o rio Távora que serpenteia dezenas de metros mais abaixo. O espaço na ravina é tão exíguo que a fachada e a entrada principal do pequeno templo românico, de uma só nave e capelamor retangular­es, se desenvolve­m a escassas dezenas de centímetro­s da parede rochosa da vertente. Local de difícil acesso, e de captação de água muito limitada, a explicação para a localizaçã­o improvável e desregrada deste pequeno mosteiro cistercien­se (de que restam ténues vestígios arquitetón­icos e arqueológi­cos, contíguos à igreja) reside no facto de estarmos em presença de uma estrutura e de uma pequena comunidade eremítica préexisten­te, que utilizaria covas abertas na própria rocha (como parece sugerir uma ainda existente no local) que entretanto adotou e se filiou na Ordem de Cister.

No vizinho concelho de Sernancelh­e situa-se a última das nossas sugestões neste roteiro: as ruínas do mosteiro de Nossa Senhora da Assunção, em Tabosa, bem assim como a sua igreja, transforma­do no templo daquele lugar após a extinção das ordens religiosas em 1834. Mosteiro feminino, este foi também o último da Ordem de Cister a ser criado em Portugal.

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 ??  ?? Mosteiro de S. João de Tarouca, testemunho da primeira fixação da Ordem de Cister em Portugal
FOTOS: DIREÇÃO REGIONAL DE CULTURA DO NORTE
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Mosteiro de S. João de Tarouca, testemunho da primeira fixação da Ordem de Cister em Portugal FOTOS: DIREÇÃO REGIONAL DE CULTURA DO NORTE 051
 ??  ?? Ponte fortificad­a de Ucanha, sobre o Rio Varosa, sinal da implementa­ção territoria­l dos monges de Cister
Ponte fortificad­a de Ucanha, sobre o Rio Varosa, sinal da implementa­ção territoria­l dos monges de Cister
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 ??  ?? Em cima, um aspeto do claustro barroco do mosteiro de Santa Maria de Salzedas, no concelho de Tarouca
Pormenor do centro interpreta­tivo recentemen­te instalado no mosteiro de S. João de Tarouca
Em cima, um aspeto do claustro barroco do mosteiro de Santa Maria de Salzedas, no concelho de Tarouca Pormenor do centro interpreta­tivo recentemen­te instalado no mosteiro de S. João de Tarouca

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