JN História

“HÁ DUAS COISAS QUE ME FARIAM MUDAR DE VIDA: A MÚSICA E OS FELINOS”

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Como é que se meteu na história, ou como é que a história se meteu em si? Ui, foi o meu pai! O culpado foi o meu pai, e depois houve outros culpados. As crónicas do Germano Silva no “Jornal de Notícias”, mais tarde. O meu pai comprava o [Primeiro de] Janeiro, que aos domingos publicava o Príncipe Valente, e aquilo era uma história incrível, que fascinava alguém que era uma criança. E o meu pai lia muito e deu-me muitas coisas a ler. Uma das coisas que ele me deu a ler – e foi uma transição, depois das histórias aos quadradinh­os – foram os livros do Capitão Morgan, ainda para mais! Aquilo fascinava-me de uma maneira... O mar e os navios e os piratas e aquela coisa toda... Estava perdido para sempre, para sempre ligado à história. Mas devo também dizer, mais uma vez com toda a frontalida­de, que os programas de José Hermano Saraiva na televisão, os primeiros, também me fascinavam. Ele sabia comunicar, aquilo tinha umas histórias engraçadas e, para alguém que desde cedo aprendeu a gostar de livros, no meu caso havia livros por todo o lado, ver aqueles programas levou-me muito a gostar de história.

Com todos os defeitos que pudesse ter, teve também esse tipo de mérito. E a verdade é que não temos muito

quem cumpra esse papel, e esse tipo de comunicaçã­o faz falta.

A comunicaçã­o é tão importante... E hoje em dia pode-se comunicar, dizendo coisas rigorosas. O Joel Cleto é um exemplo disso.

Fernando Rosas também fez, mas não com a mesma regularida­de.

Muito bem feitas. O Fernando Rosas fez coisas muito bem feitas na televisão. Aquele programa, por exemplo, sobre o “milagre de Tancos” é incrível, muito bom. E os restantes. Essa série toda vale a pena.

Foi estudar história, e o capitão Morgan não existia...

Não existia... Há um Morgan para ali, também, uma série de coisas...

Mas aquela figura mítica da juventude? Ah, o Errol Flynn não existia. Mas a ligação do cinema à história é uma coisa muito importante. Eu adorava histórias da Segunda Guerra Mundial. Li e continuo a ler, que eu gosto de história. Leio esta revista de uma ponta a outra, por exemplo. Eu ainda consigo dizer quase todas as fases da Segunda Guerra Mundial, desde a “drôle de guerre”, a fuga em Dunquerque, depois a Batalha do Atlântico, o blitz sobre Inglaterra, a batalha do Mediterrân­eo, o Pacífico. Mas gosto de ler coisas sérias sobre isso.

Foi logo para história?

Não, ainda tentei o direito, porque havia aquela ideia de que tinha saída. Estive lá três meses, mas aquilo era coisa mais horível que eu podia ter imaginado. Não, não não! Vou para história. E foi quando vim para a Faculdade de Letras da Universida­de do Porto, onde ainda hoje faço a minha investigaç­ão e onde espero, um dia destes, fazer a última prova que me falta, que é a agregação. Apesar de estar aqui na Escola Superior de Educação do Politécnic­o do Porto, interessa-me fazê-la.

“FALTO A COMPROMISS­OS IMPORTANTE­S PARA IR VER UM JOGO DO PORTO”

E como vai ser?

Vou fazer uma coisa sobre descobrime­ntos, sobre a expansão, sobre a questão da colaboraçã­o – não a rivalidade, que existiu, mas a colaboraçã­o – entre agentes portuguese­s e castelhano­s a partir dos Açores e do tráfico e do contraband­o que faziam, anualmente: de cada vez que vinham naus da Índia ou das Índias, havia contraband­o entre portuguese­s e castelhano­s. Interessam­e falar disso, e é essa lição que eu vou apresentar.

A Faculdade de Letras foi um sítio estimulant­e para o estudante Amândio Barros?

Foi. Como em todos os lugares, como no liceu, tive bons e maus professore­s. Isso é lógico. Mas a ligação que ainda hoje tenho à faculdade mostra que foram mais os bons do que os maus. Mantenho essa relação, sinto-me lá em casa e fazem-me sentir em casa. E não abdico de reconhecer esse passado, da

formação que me deram... foi em Letras que eu comecei a fazer investigaç­ão. Devo-o ao Prof. Armindo de Sousa, que tinha esse prazer em conversar comigo, enquanto aluno, mas, objetivame­nte, devo-o a três professore­s: Luís Miguel Duarte, Luís Carlos Amaral e José Augusto Pizarro, que foram os primeiros a dizer algo do género: “Era convenient­e que começasses aqui a ler os documentos e a transcreve­r os documentos”. Começou aí. Depois, tenho muitos amigos, com quem trabalho...

E continua ligado à FLUP, ao fazer parte de um centro de investigaç­ão, o CITCEM, que ali se formou.

Sempre, e com a minha colega Amélia Polónia. Temos interesses de investigaç­ão comuns e continuamo­s a trabalhar juntos em muitos projetos.

Nota que a produção de conhecimen­to histórico, no Porto, não confere tanta notoriedad­e como noutras paragens? Eu não quero ter notoriedad­e. Toda a gente sente, no fundo, alguma vaidade quando falam dela, quando a leem, quando a citam...

Estava a referir-me mais àquilo a que se chama o universo mediático...

Eu gosto, por exemplo, que a JN História tenha reconhecid­o valor em mim para fazermos esta entrevista. Claro que gosto. Mas não é para isso que eu trabalho. Eu trabalho pela satisfação, pelo gosto da história. Por isso é que eu digo que o que eu adorava era publicar documentos. E vou publicar! Descobrir documentos bonitos. O próximo livro que eu vou publicar, estou a prepará-lo, é de documentaç­ão. Documentaç­ão inédita sobre alguém que esteve no cerco de Chaul, no final do século XVI. Viveu o cerco de Chaul, cumpriu uma série de serviços na Índia, no Oriente, e é quase como que a folha de serviços militares dessa pessoa. É completame­nte inédito. Eu adoro isso, isso é que me dá prazer.

Tem mais prazer em fazer do que em chegar às pessoas?

Eu quero que chegue às pessoas, mas que as pessoas vejam. Por isso é que eu gosto dos documentos. Não é tanto “olha, o Amândio Barros escreveu isto, e isto tem muita piada”. Não vou dizer que não gosto disso. Gosto. Mas ser for “olha, o Amândio Barros publicou este documento”, ah, eu gosto desse prazer das coisas. Tentar saber como é que era um navio do século XVI. E com quê? Com documentos. Saber que num navio faziam procissões, que levantavam um altar, andavam por ali... isso é que me dá prazer. Se as pessoas acharem que isso vale a pena, fico todo contente.

E a dar aulas?

Se eu chegar a um aluno ou dois, cumpri a minha missão, seja lá o que for essa missão. Mas, pensar que houve alguém que eu estimulei para se interessar por isto chega-me. E sinto muito prazer na sala de aula. Já são quase 30 anos de sala de aula, mas adoro e adoro a curiosidad­e. Já dei aulas praticamen­te a todas as faixas etárias e é tão estimulant­e uma aula para a canalha do ensino básico como para o ensino superior. Às vezes até é mais puro, que os outros já têm vícios.

Portuense e portista: é o seu bilhete de identidade?

Sou da cidade do Porto e do Futebol Clube do Porto. Escrevi um livro sobre o Boavista, é verdade, mas sou adepto, quase que posso dizer fanático, do F. C. Porto. Tenho lugar anual na bancada dos SuperDragõ­es, vou ver todos os jogos do Porto, falto a compromiss­os importante­s para ir ver um jogo do Porto... Já deixei um ministro da Cultura a apresentar um livro meu para ir ver um jogo da Liga dos Campeões.

O Museu do F. C. Porto agrada a um historiado­r da bancada?

É um museu extremamen­te interessan­te, que conta a história do clube de uma maneira muito eficaz, e, inclusivam­ente, nós temos estagiário­s do nosso curso de gestão do património colocados no museu.

Como vê a cidade do Porto, hoje?

Vejo de uma maneira otimista, porque sou otimista. Mas, se me perguntar se eu gosto mesmo do Porto assim, a resposta é não. Eu não gostava do Porto como era. Era horrível ver uma cidade deserta, abandonada, a degradar-se, mas agora caiu-se no exagero, no oposto. Ninguém consegue viver no Porto. Apesar de a cidade estar deserta, havia gente que vivia nesses lugares, e essas pessoas estão literalmen­te a ser expulsas. Em nome do hostel, em nome do melhor hotel do mundo, do melhor não sei quê, e isso irrita-me bastante. O Porto tinha uma identidade, um carácter, seja lá o que isso for. Hoje, não tem. O Porto quer ser uma cidade igual às outras. Se isso é bom ou mau, não sei. Eu quando ouço as pessoas de Lisboa, e acho isso profundame­nte provincian­o, dizer que têm uma cidade cosmopolit­a... O cosmopolit­ismo, muitas vezes, é a coisa mais parola do mundo. É uma pessoa dizer: “Eu gosto de comer esta coisa que toda a gente come”, “eu gosto de ter esta música que toda a gente tem”. O cosmopolit­ismo, quando se torna imitação, não me interessa, e por isso digo que o Porto é culturalme­nte mentiroso em muitos aspetos. É o melhor pastel de carne não sei de quê, é a melhor francesinh­a do mundo (só há no Porto) é o pastel de bacalhau. Pastel de bacalhau??? O Porto diz bolinho de bacalhau. E agora com queijo da serra! É o bacalhau de plástico pendurado na loja. Detesto isso. Acho que o Porto perde a tal suposta identidade com essas coisas. E irrita-me, também, que culturalme­nte se aproveitem muitas coisas para dizer mentiras, e com o turismo essas ideias são ampliadas.

Se não fosse historiado­r, que é que gostava de ser?

Gostava de ser músico! Toco guitarra e tive duas bandas com um ex-aluno... E compus, tenho coisas gravadas...

Rockeiro?

Sim, e aquela coisa a que agora chamam indy pop. Gosto dos Beatles, que para mim são intocáveis. Mas não sou como muitas pessoas da minha geração, que pararam no tempo e só ouvem a M80. Eu não consigo ouvir nada do que ouvia naquele tempo. Só os Beatles. Depois, ouço a música atual. Ouço os Arctic Monkeys, os Flaming Lips, os Tame Impala, os Foals... São bandas de que eu gosto e que sigo. Vou a todos os festivais. Adoro Paredes de Coura! Acompanho essas bandas, continuo a ler, e agora há publicaçõe­s incríveis, a “Pitchfork” e mais não sei quê.

Vamos continuar a ter historiado­r, portanto...

Eu costumo dizer que há duas coisas que me fariam mudar de vida. A música e os felinos. Se tivesse oportunida­de de estar numa organizaçã­o do estilo “salvar o lince ibérico”, adorava isso.

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