AS ÁGUAS NEGRAS DE ÉVIAN-LES-BAINS
m novembro de 1938, a Noite de Cristal funcionou, para o regime nazi, como um teste à população da Alemanha e dos territórios por ela então anexados, no sentido de perceber como reagiriam a algo que se preparava (ou de algum modo preconizava): levar às últimas consequências a ideologia de “purificação da raça”. Isto no caso da população judia. O resultado desse teste, digamos assim, foi animador para Adolf Hitler e seus seguidores: maioritariamente, a população “ariana” (estes conceitos têm de ser colocados entre muitas aspas) reagiu com indiferença ou apoiou a política de ódio que viria, durante a Segunda Guerra Mundial, a resultar na “solução final”, no Holocausto. Mas o problema não era apenas alemão. Meses antes da Kristallnacht, que foi objeto de desenvolvimento na edição N.º 20 da JN História, o resto do mundo havia também mostrado indiferença, numa reunião que ficou conhecida como “a conferência da vergonha”.
Na margem meridional do Lago Léman (ou apenas o Léman, pois a palavra, de raiz não totalmente clara, significa lago; ou ainda o Lago de Genebra), Évian-les-Bains, em território francês, ganhou sonoridade global por causa da água que ali é engarrafada e dali parte para todo o mundo. No cenário que aqui traçamos, porém, a localidade adquiriu uma imagem que não é clara como água, antes negra como pez. No Hotel Royal, que ainda hoje ostenta o brilho das suas cinco estrelas na encosta sobranceira à cidade, a denominada conferência de Évian juntou as delegações de 32 países, à margem da Sociedade das Nações, que ia subsistindo ali perto, na suíça Genebra, para decidirem o que fazer em relação à onda de refugiados judeus que se avolumava com a consolidação do regime nazi. O resultado resume-se numa frase: praticamente todos lhes viraram as costas.
Em julho de 1938, por iniciativa dos Estados Unidos, delegações de 32 países reuniram-se em França, junto ao Lago Léman, buscando soluções para acolher a vaga de refugiados judeus que queriam fugir da Alemanha. Praticamente todas as portas foram fechadas
Foi a Alemanha nazi que levou a cabo o genocídio. Seis milhões de judeus mortos. Mas o episódio de Évian, entre 6 e 16 de julho de 1938, não pode ser esquecido enquanto manifestação de cumplicidade por negligência.
Da Anschluss à Kristallnacht Realizada por impulso do presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, a reunião do Comité Intergovernamental para os Refugiados Políticos – assim se chamava, oficialmente, a conferência de Évian – foi a primeira tentativa de cooperação internacional para fazer face a uma crise de refugiados. O fiasco pelo qual se saldou constitui evidente motivo de reflexão para os tempos recentes, em que tais crises, além de serem permanentes no curso do tempo, multiplicam-se pelo globo e tocam de forma direta e trágica (em múltiplas dimensões que não têm aqui espaço de desenvolvimento) o espaço europeu, pátria dos direitos humanos e da tolerância (ou nem por isso).
Por mais que as pessoas (a comunidade internacional, chamemos-lhe assim) não vissem ou fingissem não ver, terá de ser claro que, em 1938, mesmo que meses antes da Kristallnacht, a iminência de graves problemas abatendo-se sobre os judeus europeus era uma evidência, e a prova disso, por muito que não se adivinhasse a dimensão do genocídio que viria a ser perpetrado pela Alemanha nazi, é a realização da conferência. Consumada a tranquila anexação da Áustria pela Alemanha – a Anschluss – em março desse ano, era fácil de perceber que a permanência dos judeus no espaço germanófono estava mais do que comprometida. A “questão judaica” era muito clara nas teses políticas de Adolf Hitler, a adesão popular a estas era crescente, e a ideia de partir daquele espaço que se lhes tornava crescentemente hostil, já em prática desde a chegada de Hitler ao poder (um exemplo: Albert Einstein fixou residência nos Estados Unidos em 1933), intensificou-se substancialmente por aquela altura: entre o espetro do extermínio e a transformação em cidadãos de categoria inferior e despojados dos seus bens, os judeus do espaço alemão começavam a ver na partida para outras paragens a única escapatória (isto para além do movimento sionista, que se fortificava desde o século XIX).
Esse novo fadário do judeu errante não significava, evidentemente, que essas pessoas se fizessem à estrada de trouxa às costas, numa Alemanha em estado de pré-guerra (para os nazis, a guerra era um objetivo e não uma contingência). Teria de haver aceitação por parte dos países de acolhimento, ou ficariam numa espécie de limbo (veja-se o que veio a suceder mais tarde, nesse ano de 1938, quando os na
expulsaram os judeus de origem polaca, e a Polónia lhes fechou a porta). Desde 1930, quando 130 membros do Partido Nacional-Socialista foram eleitos para o Reichstag, havia entre os alemães judeus sinais de desejo de fuga (não é inocente escrever alemães judeus e não judeus alemães, pois, antes do advento do nazismo, tratava-se de pessoas que se viam a elas próprias como cidadãos alemães que professavam a religião do judaismo). A chegada ao poder de Hitler, como referimos, representou um incremento desse desejo, em 1933, ano em que o incêndio do Reichstag, pelo qual foram culpados os comunistas (e logo surgiu a tendência de sinonimizar judeus e comunistas), também contribuiu para intensificar a apreensão, bem como diversa produção legislativa que foi dando forma ao regime ditatorial. Nessa prizis meira fase de construção do monstro, que se pode estender até 1935, de acordo com o alto comissário para os refugiados da Alemanha na Sociedade das Nações, James McDonald, mais de 80 mil pessoas haviam deixado a Alemanha, um quinto das quais, grosso modo, eram não arianos (seja isso o que for) ou arianos cristãos que se opunham ao nazismo. França era, de longe, o principal destino, mesmo que sendo ponto de passagem para outras paragens (a Palestina, os Estados Unidos...), seguindo-se a Holanda e a Checoslováquia.
Com a criação das chamadas Leis de Nuremberga (antissemitas), em setembro de 1935, voltou a crescer entre os judeus alemães (a inversão dos fatores mostra que já haviam sido reduzidos a cidadãos de categoria inferior) a vontade de fugir. No período subsequente, tanto árabes como britânicos restringiam o acesso à Palestina, que assim deixou de ser o principal destino final. Em 1938, a Anschluss acentuava a ideia de beco sem saída, e a Noite de Cristal viria a incrementar de novo a ânsia de fuga entre os judeus dos territórios alemães, sobre quem,
nesse momento, pesava também o resultado da Conferência de Évian, a “conferência da vergonha”.
Até ao início da Segunda Guerra Mundial, em agosto de 1939, Joseph Tenenbaum estima, no artigo “The Crucial Year 1938” (Yad Vashem Studies 2, 1958), que tenham fugido da Alemanha e dos territórios anexados (Áustria e partes da Checoslováquia), cerca de 380 mil judeus.
Portugal ficou fora
É nesse contexto que Roosevelt toma a iniciativa de convocar a conferência sobre refugiados. Como notámos, a Suíça, cuja permanente neutralidade e posição geográfica a tornariam natural escolha para acolher um evento do género, foi posta de lado para esse efeito, por ali estar sediada a Sociedade das Nações. Assim surgiram França e Évian neste mapa da história dos refugiados judeus, um mapa para o qual Portugal (salazarista e então tendencialmente germanófilo) não foi convidado (embora se equacionasse a possibilidade de Angola e Moçambique acolherem refugiados). Outros países não foram convidados, sendo a Alemanha um caso evidente, mas somando-se-lhe Espanha (mergulhada na Guerra Civil), Polónia, Hungria, Roménia, Checoslováquia ou Grécia. Curiosamente, a Itália fascista recebeu convite, mas declinou, em solidariedade com a aliada Alemanha, embora usando uma retórica rebuscada: Gian Galeazzo Ciano, conde de Cortellazzo e Buccari e ministro dos Negócios Estrangeiros de Mussolini, justificou a ausência dizendo que, apesar de partilhar as preocupações humanitárias, considerava que a ida à reunião poderia gerar contestação ao governo italiano, devido à questão dos refugiados políticos antifascistas no estrangeiro, e tinha de ter em conta os estreitos laços diplomáticos e económicos com Berlim.
Também a União Soviética se recusou a participar na cimeira (pouco mais de um ano depois firmaria com a Alemanha o Pacto Molotov-Ribbentrop, evocado no N.º 19 da JN História), o mesmo sucedendo com a Islândia e El Salvador. Já a Irlanda, sem ter sido formalmente convidada, enviou uma delegação a Évian. Houve ainda uma enorme quantidade de observadores, incluindo numerosas organizações ligadas à causa judaica a que não foi dada a possibilidade de expressar qualquer tipo de opinião. A própria Golda Meir, figura central na formação do Estado judaico, cujo governo veio a liderar entre 1969 e 1974, esteve presente, na qualidade de observadora da comunidade judaica da Palestina, e lamentou, à época – e mais tarde, nas suas memórias –, não ter sido autorizada a participar num debate em torno do destino do seu próprio povo.
Ao cabo de nove dias de retórica oca, a cimeira saldou-se pela indisponibili
dade de praticamente todos os participantes para acolher refugiados judeus, sob os mais variados pretextos (ou desculpas). Houve uma única exceção, que, todavia, constitui um paradoxo. Só a República Dominicana se mostrou disponível para acolher refugiados, exigindo para tal elevadas contrapartidas financeiras. Lembre-se que este país era liderado pelo sangrento ditador Rafael Leónidas Trujillo Molina, que no ano anterior havia ordenado a erradicação da população haitiana presente no território dominicano, conhecida como o “massacre da salsa” (“masacre del perejil”), que resultou num número indeterminado de mortos, estimado entre 17 e 40 mil. O batismo da carnificina com o nome da comum erva aromática tem a ver com a técnica usada pelos esbirros de Trujillo para diferenciar os negros e mulatos haitianos dos dominicanos: era-lhes ordenado que pronunciassem em voz alta a palavra “perejil” (salsa), em espanhol, exercício que denunciaria os falantes de crioulo haitiano e francês, abatidos logo no ato. Virgilio Trujillo Molina, delegado na conferência e irmão do ditador, foi a Évian alardear a estabilidade social e muitas outras virtudes da República Dominicana, que daria aos refugiados terras para se estabelecerem e contribuírem para o desenvolvimento agrário do país, mas é claro que aquilo mais não era do que uma tentativa de branqueamento do regime. É ainda relevante notar que os dominicanos se referiam ao “problema haitiano” do mesmo modo que os nazis falavam do “problema judaico”.
Grande Depressão e xenofobia
Que havia consciência da existência de uma crise de refugiados não pode haver dúvidas, ou o encontro de Évian não se teria realizado. E, mesmo que não fosse possível imaginar o que viria a ser a “solução final”, desencadeada pelos nazis durante a guerra, eram muitos os sinais, no seio do Reich e percetíveis do exterior, de que a existência dos judeus naquele espaço era um crescente pesadelo, não sendo de esperar nada de bom. E é fácil perceber a posteriori que uma outra postura da comunidade internacional teria reduzido o tremendo impacto do que veio a ser o Holocausto. O que falhou, então? Falhou tudo. E talvez fosse essa a ideia desde o início. Veja-se o que escreve o historiador americano Dennis Ross Laffer: “Mantenho que a conferência foi montada para falhar, ao mesmo tempo que dava valor propagandístico às democracias participantes”.
O próprio Roosevelt, que, ao convocar a conferência, mostrava ter consciência da crise e da necessidade de lhe dar uma solução, não apresentou soluções nem abriu as portas à imigração judaica. A interpretação normalmente dada ao papel da delegação americana, chefiada por Myron C. Taylor, que mais não fez do que reconhecer a possibilidade de os Estados Unidos preencherem as quotas previamente estabelecidas para imigrantes alemães e austríacos, é conjuntural. Estes problemas surgem no contexto internacional, e muito particularmente americano, da Grande Depressão. A grande prioridade da política de Roosevelt era o “New deal”, isto é, a estratégia interna de combate à profundíssima crise económica e social, que se havia agravado no período em que a reunião de Évian se realizou. O desemprego afetava um quinto da população e a opinião pública era manifestamente desfavorável a qualquer mexida nas quotas de imigração. Na verdade, uma maioria da população queria o fim da imigração, e até entre a população judaica norte-americana havia muita gente que defendia maiores restrições na admissão de trabalhadores estrangeiros nos Estados Unidos. Aliás, na generalidade dos países afetados pela Grande Depressão, as enormes taxas de desemprego geravam forte animosidade contra os trabalhadores imigrantes, fenómeno que, mutatis mutandis, se reproduz ao longo dos tempos em situações associadas a crises de refugiados ou a fluxos migratórios em tempos de crise.
A depressão e as suas contingências internas nos diversos países foi, na verdade, o argumento mais usado para as diversas delegações presentes na conferência mostrarem indisponibilidade para serem solução para a crise dos refugiados judeus. Quanto à França, anfitriã do encontro, manifestou, pela voz do delegado Henri Bérenger, que o país tinha atingido o ponto de saturação, devido à vaga de imigrantes recebidos pelo país após a Grande Guerra. Sempre com uma retórica que colocava França, pátria da revolução, da cidadania, dos direitos do Homem, como o estandarte da solidariedade. Mas... Ora, esse “mas” era apoiado por muitos setores da sociedade, consistindo em sacrificar a vocação humanista em nome de um bem maior, “La France”. No jornal católico “La Croix”, solidário com a atitude da delegação francesa, escrevia-se que a admissão de mais imigrantes constituiria, para a nação francesa, “o perigo da auto-destruição no altar do amor pelo vizinho”.
Totalmente inconsequente
O abandono a que a comunidade internacional votou os judeus do Reich não se ficou pelo fracasso da Conferência de Évian, fracasso esse que era não só inevitável como, nos meandros diplomáticos, mais do que provavelmente era o único resultado esperado à partida. Se nessa altura já era clara a perceção de que grande perigo pairava sobre a população judia, a Noite de Cristal, em novembro de 1938, devia ter dissipado todas as dúvidas e vencido todas as hesitações.
Nos Congresso dos Estados Unidos, a violência da Kristallnacht foi bem percebida, e ali surgiu um projeto de lei que ficou conhecido como a Wagner-Rogers bill, por ter o patrocínio do senador Robert F. Wagner (democrata, eleito pelo Estado de Nova Iorque) e do membro da Câmara dos Representantes Edith Rogers (republicana, eleita pelo Massachusetts). Esse projeto de lei visava o acolhimento nos Estados Unidos de 20 mil crianças judias, com menos de 14 anos, oriundas da Alemanha nazi, dez
mil em 1939 e outras tantas em 1940. A ideia mereceu desde logo forte oposição de organizações nacionalistas americanas, nunca tendo chegado a ser votada, devido ao bloqueio exercido pelo senador Robert Rice Reynolds (democrata, Carolina do Norte), notoriamente antissemita, isolacionista e defensor do expansionismo nazi na Europa.
Sem desmerecimento da causa, é relevante notar que um outro projeto de lei feito posteriormente e destinado a abrir as portas dos Estados Unidos a crianças britânicas, fugindo de potenciais bombardeamentos e não das perseguições, foi claramente apoiado por Roosevelt e chegou à forma de lei.
Resumiu-se a Conferência de Évian a retórica oca e inconsequente e a alguns dias de faz-de-conta olhando o Lago Léman? De algum modo, sim, mesmo que tenha havido um aparente efeito produzido pela cimeira, a criação do Comité Intergovernamental para os Refugiados Políticos oriundos da Aledrow manha, cuja sede seria estabelecida em Londres. Outros organismos do género já existiam antes, mas este tinha um carácter especial, pois, pela primeira vez, o apoio dos Estados Unidos a uma organização do género era explícito. Seria uma alternativa ao comité do género que existia no âmbito da Sociedade das Nações (de que os Estados Unidos nunca fizeram parte, apesar de a ideia ter nascido do presidente americano Woo
Wilson, em 1918...), com o qual a Alemanha já havia recusado qualquer tipo de cooperação.
E que fez esse comité? Pouco ou nada. Resumindo-o a poucas palavras, não passou de uma forma de colorir a negra fotografia de Évian, sendo depois inoperante, existindo praticamente sem que lhe fossem dados autoridade e fundos, por parte dos países que o integravam.