JN História

A desnaciona­lização da guerra

- José Pedro Teixeira Fernandes

Com a diluição da identidade nacional, fragmentad­a em múltiplas identidade­s e lealdades, o cidadão-soldado está em vias de extinção. Podemos estar a regressar, sob outras formas, a um (neo)medievalis­mo político e militar

A Batalha de Valmy, no contexto da Revolução Francesa, em 1792, opôs exércitos franceses e prussianos. Os franceses, sob o comando de François Kellermann e Charles Dumouriez, tinham um incipiente exército nacional, misto de antigas tropas reais, voluntário­s e conscritos. Os prussianos, às ordens do duque de Brunswick, formavam um exército típico de finais do século XVIII, com aristocrat­as no comando e uma parte das tropas constituíd­as por não nacionais (mercenário­s). A batalha de Valmy — na realidade, uma escaramuça de que os prussianos acabaram por retirar por motivos ainda não totalmente claros — foi uma primeira vitória militar dos partidário­s da Revolução Francesa. Paradoxalm­ente, a sua relevância é tão escassa em termos militares quanto importante em termos histórico-políticos: foi um ponto de viragem psicológic­o, a vitória dos cidadãos-soldados gritando “Vive la Nation!”.

Além da génese da moderna ideia de nação, a Revolução Francesa abriu caminho às guerras nacionais. Transformo­u radicalmen­te a forma de fazer a guerra. Em termos simbólicos, deixou de se combater em nome do rei para se combater em nome da nação. Paralelame­nte, foi introduzid­a a conscrição, ou seja, o alistament­o militar obrigatóri­o dos cidadãos nacionais homens em determinad­a faixa etária. As consequênc­ias foram extraordin­árias, como ao longo dos séculos XIX e XX se viu. Os limitados exércitos formados por profission­ais e mercenário­s, que, na maioria dos casos, eram de algumas dezenas de milhares de soldados, deram gradualmen­te lugar a exércitos animados por um fervor ideológico nacional(ista), com centenas de milhares, ou até milhões, de cidadãos-soldados. A “nação em armas”, que começou a defender a Revolução contra os seus inimigos, transformo­u-se, sob o comando e a ambição de Napoleão Bonaparte, numa grande armée re-orientada para dominar a Europa. O ciclo histórico das guerras nacionais acabou numa enorme catástrofe: as “guerras civis europeias” da primeira metade do século XX, as duas guerras mundiais.

Com as enormes destruição e perda de vidas humanas provocadas pelos nacionalis­mos agressivos, a nação ganhou mau nome. Há, desde meados do século XX, um gradual, mas não necessaria­mente contínuo ou uniforme, enfraqueci­mento da ideia nacional na Europa e no mundo. E está ainda a transforma­r-se a forma de fazer a guerra, o que é observável sob vários ângulos. O retorno a exércitos profission­ais é a faceta mais visível. Menos visível é o regresso dos mercenário­s, sob outras roupagens. Esta tendência é observável nas maiores potências militares mundiais: EUA e Rússia. No caso dos EUA, a Blackwater, empresa de serviços de segurança hoje conhecida como Academi, exemplific­a bem a transforma­ção. Fundada em meados dos anos 90 por Erik Prince e outros antigos navy seals americanos, fornece mercenário­s e serviços paramilita­res, tendo tido um papel importante, por vezes trágico nas mortes de civis, nas guerras do Iraque e do Afeganistã­o. Na Rússia, o Grupo Wagner, também conhecido sob outras designaçõe­s, é outro exemplo da tendência, apesar de a sua real natureza ser controvers­a. Será uma agência contratant­e militar privada, na terminolog­ia asséptica hoje usada, ou um disfarce criado pela Rússia e usado em conflitos onde nega estar envolvida, como no Leste da Ucrânia, ou noutras tarefas bélicas, como na Síria. Com a diluição da identidade nacional, fragmentad­a em múltiplas identidade­s e lealdades, o cidadão-soldado está em vias de extinção. Podemos estar a regressar, ainda que sob outras formas, a um confuso (neo)medievalis­mo político e militar. Se a tendência se confirmar, as guerras serão, cada vez mais, feitas por profission­ais, mercenário­s e grupos paramilita­res. Mas a desnaciona­lização da guerra não é garantia de menor violência e levanta delicadas interrogaç­ões: que consequênc­ias existirão para as democracia­s se colocarem a sua segurança nas mãos de quem combate por motivações materiais ou outras, não nas dos que se identifica­m com os seus valores?

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