A desnacionalização da guerra
Com a diluição da identidade nacional, fragmentada em múltiplas identidades e lealdades, o cidadão-soldado está em vias de extinção. Podemos estar a regressar, sob outras formas, a um (neo)medievalismo político e militar
A Batalha de Valmy, no contexto da Revolução Francesa, em 1792, opôs exércitos franceses e prussianos. Os franceses, sob o comando de François Kellermann e Charles Dumouriez, tinham um incipiente exército nacional, misto de antigas tropas reais, voluntários e conscritos. Os prussianos, às ordens do duque de Brunswick, formavam um exército típico de finais do século XVIII, com aristocratas no comando e uma parte das tropas constituídas por não nacionais (mercenários). A batalha de Valmy — na realidade, uma escaramuça de que os prussianos acabaram por retirar por motivos ainda não totalmente claros — foi uma primeira vitória militar dos partidários da Revolução Francesa. Paradoxalmente, a sua relevância é tão escassa em termos militares quanto importante em termos histórico-políticos: foi um ponto de viragem psicológico, a vitória dos cidadãos-soldados gritando “Vive la Nation!”.
Além da génese da moderna ideia de nação, a Revolução Francesa abriu caminho às guerras nacionais. Transformou radicalmente a forma de fazer a guerra. Em termos simbólicos, deixou de se combater em nome do rei para se combater em nome da nação. Paralelamente, foi introduzida a conscrição, ou seja, o alistamento militar obrigatório dos cidadãos nacionais homens em determinada faixa etária. As consequências foram extraordinárias, como ao longo dos séculos XIX e XX se viu. Os limitados exércitos formados por profissionais e mercenários, que, na maioria dos casos, eram de algumas dezenas de milhares de soldados, deram gradualmente lugar a exércitos animados por um fervor ideológico nacional(ista), com centenas de milhares, ou até milhões, de cidadãos-soldados. A “nação em armas”, que começou a defender a Revolução contra os seus inimigos, transformou-se, sob o comando e a ambição de Napoleão Bonaparte, numa grande armée re-orientada para dominar a Europa. O ciclo histórico das guerras nacionais acabou numa enorme catástrofe: as “guerras civis europeias” da primeira metade do século XX, as duas guerras mundiais.
Com as enormes destruição e perda de vidas humanas provocadas pelos nacionalismos agressivos, a nação ganhou mau nome. Há, desde meados do século XX, um gradual, mas não necessariamente contínuo ou uniforme, enfraquecimento da ideia nacional na Europa e no mundo. E está ainda a transformar-se a forma de fazer a guerra, o que é observável sob vários ângulos. O retorno a exércitos profissionais é a faceta mais visível. Menos visível é o regresso dos mercenários, sob outras roupagens. Esta tendência é observável nas maiores potências militares mundiais: EUA e Rússia. No caso dos EUA, a Blackwater, empresa de serviços de segurança hoje conhecida como Academi, exemplifica bem a transformação. Fundada em meados dos anos 90 por Erik Prince e outros antigos navy seals americanos, fornece mercenários e serviços paramilitares, tendo tido um papel importante, por vezes trágico nas mortes de civis, nas guerras do Iraque e do Afeganistão. Na Rússia, o Grupo Wagner, também conhecido sob outras designações, é outro exemplo da tendência, apesar de a sua real natureza ser controversa. Será uma agência contratante militar privada, na terminologia asséptica hoje usada, ou um disfarce criado pela Rússia e usado em conflitos onde nega estar envolvida, como no Leste da Ucrânia, ou noutras tarefas bélicas, como na Síria. Com a diluição da identidade nacional, fragmentada em múltiplas identidades e lealdades, o cidadão-soldado está em vias de extinção. Podemos estar a regressar, ainda que sob outras formas, a um confuso (neo)medievalismo político e militar. Se a tendência se confirmar, as guerras serão, cada vez mais, feitas por profissionais, mercenários e grupos paramilitares. Mas a desnacionalização da guerra não é garantia de menor violência e levanta delicadas interrogações: que consequências existirão para as democracias se colocarem a sua segurança nas mãos de quem combate por motivações materiais ou outras, não nas dos que se identificam com os seus valores?