Miguel Carvalho desata os nós da memória
foi preparando (além de fazer outros trabalhos de menor impacto, mas importantes para se conhecer a presença de estudantes portugueses em universidades estrangeiras, na Época Moderna) a essencial dissertação de doutoramento, justamente “O reinado de D. António prior do Crato”, que constituiu um salto enorme para o conhecimento do período que desaguou na perda de independência, em 1580. Essa obra revela, com nitidez, o enorme rigor que sempre colocou no seu trabalho e um profundo conhecimento dos arquivos e brilhantismo na análise dos documentos.
Como docente universitário, fez carreira na Universidade de Lisboa, onde se notabilizou como pedagogo e formador de historiadores. Em 1974, no fulgor do período revolucionário, foi saneado. Mas regressou anos mais tarde, jamais se livrando da polémica (que nunca recusava), acesa ainda mais pelos livros que publicou sobre Marcelo Caetano (“Confidências no exílio”, em 1985, e “Correspondência com Marcello Caetano 1974-1980”, em 1994). Ainda na década de 1960 – de 1967 a 1972 – esteve fora da Universidade, assumindo a direção do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, cujo desenvolvimento incrementou de forma assinalável.
Não há aqui espaço para os prémios e distinções que acumulou, tampouco para a vasta bibliografia, em que sobressaem temas como o papel dos humanistas portugueses na Europa dos séculos XVI e XVII. Destaque apenas para aquela que, pela dimensão e pela qualidade do texto, foi a obra maior da sua vida: a “História de Portugal”, em 19 volumes, escrita exclusivamente por ele mesmo, tarefa que encetou nos anos 70 e deu por finda em 2011. De novo, o rigor e a honestidade intelectual não se questionam, mesmo que esse longo trabalho destoe de paradigmas ou escolas hoje dominantes. Joaquim Veríssimo Serrão foi um historiador, grande historiador, do tempo em que trabalhou. Muitas vezes com brilhantismo, sempre com total seriedade. O resto não é historiografia.
Se ainda persiste, em certas cabeças, a ideia de que a sociedade portuguesa se dividia, antes do 25 de Abril, entre fascistas e antifascistas, mais assim era no período turbulento a que genericamente se chamou PREC (Processo Revolucionário em Curso). Tanto miúdos de liceu acusavam de “fascista” qualquer professor de que não gostassem, podendo arranjar-lhe problemas sérios, como Amália Rodrigues (1920-1999), que só mais tarde foi devolvida à qualidade de ícone nacional, sofreu na pele a acusação de estar ligada ao regime e à PIDE. Esse nó na memória, causado por excessos revolucionários e invejas diversas, é desatado, espera-se que definitivamente, pelo jornalista Miguel Carvalho, autor do imprescindível “Amália – Ditadura e Revolução, a História Secreta” (Publicações Dom Quixote), recentemente lançado e de imediato catapultado para os lugares cimeiros das tabelas de vendas. Há que desfazer, desde já, alguns equívocos que o próprio autor, por elegância profissional, ajuda a alimentar, ao caracterizar o seu trabalho como um “olhar jornalístico”. É certo que o bom jornalismo de que Miguel Carvalho faz bandeira, visível também em livros como “A Última Criada de Salazar” (Oficina do Livro, 2013) ou “Quando Portugal Ardeu” (Oficina do Livro, 2017), deve ser encarado como um género maior, mas também não há que ter rebuço em dar a estes trabalhos, assentes num esforço de reconstrução do passado, tão verdadeira ou completa como o permitem as fontes, a dimensão historiográfica que por direito lhes cabe (mesmo num género como a biografia, particularmente permeável à aproximação emocional entre biógrafo e biografado). Ou seja, não haja dúvidas de que estamos perante um labor de escrita da história, na justa medida em que esta não é exclusiva do meio académico ou do reconhecimento oficial pelos pares.
Ora, este olhar jornalístico/historiográfico não busca a reconstituição genérica da personagem, como o seria uma biografia tout court, mas uma visão do percurso da fadista “à luz do Estado Novo, da revolução e da construção democrática, até por todas as clandestinidades e histórias marginais esquecidas e ignoradas em função da construção do mito”. No centenário do nascimento da fadista, este livro é a prenda devida à sua memória. De forma exaustiva, assente em documentação e numa vasta recolha de depoimentos, mostra-se que Amália não estava ligada ao regime salazarista embora este se servisse dela, explica-se como apoiou a oposição, descreve-se como foi injustamente atacada no período revolucionário, vindo a ser resgatada por uma geração artística mais jovem. Não é uma biografia política, porque a cantora não o era, mas é (também) o retrato de décadas de um Portugal político, no qual nem toda a gente fica bem. E, por falar em ficar, fica, da leitura, a certeza da Amália que, por uma ou outra razão, existe em todos nós. Se tudo isto é fado cada um dirá.