Heródoto de Halicarnasso
(século V a.C.)
Dizer que Heródoto é o “pai da história” não faz mal a ninguém, é um daqueles rótulos que se vulgarizaram. Mas merece algumas ressalvas: não só falamos de alguém que viveu muitos séculos antes de a história se aproximar do sentido que lhe damos, como ainda, a ser pai da dita, foi-o de um ponto de vista eurocêntrico, atendendo a que outras civilizações, em partes do mundo que os gregos clássicos ignoravam, também já se preocupavam com o passado. Todavia, o eurocentrismo está longe de ser o problema quando é usado esse rótulo, que já surge em escritos de Cícero. Tendo vivido no século V a.C., Heródoto de Halicarnasso foi contemporâneo de Sócrates e Eurípides e, como veremos, era historiador pela intenção, não tanto pela prática. O que não é pouco.
Grego nascido na Anatólia (a cidade turca de Bodrum está hoje no lugar de Halicarnasso), Heródoto tinha como horizonte a civilização helénica que se espraiava em redor do Mar Egeu e foi motivado, como ele mesmo escreveu, por uma preocupação até então descurada: “Impedir que caiam no esquecimento as grandes façanhas realizadas pelos gregos e os bárbaros”. Os “bárbaros” a que se reportava eram os persas (o Império Aqueménida, ou Primeiro Império Persa), e as grandes façanhas eram as incidências relacionadas com as Guerras Médicas (nesse mesmo século V a.C.). Ora, se o conceito de história que hoje temos, com as suas garantias de cientificidade (estatuto em que não há unanimidade dos historiadores), é algo cujas fundações estão sobretudo na contemporaneidade, é evidente que na Antiguidade clássica vamos encontrar outra coisa qualquer. Na única obra que lhe é conhecida (“Histórias” – ou “Inquirições”, numa interpretação mais fiel do significado que se atribuía ao original grego – compostas por nove livros, cada um deles ostentando o nome de uma musa, incluindo, claro, Clio, a musa da História), Heródoto faz remontar ao reinado de Ciro (549 a.C., cem anos antes dos eventos a tratar) o início do relato do que aconteceu no império persa e nas cidades gregas durante o conflito. E desde logo se afasta daquilo que hoje entendemos como o ofício de historiador. Como? Produzindo um trabalho que Charles-Olivier Carbonell rotula de “obra-prima inclassificável” em que o historiador (ou o cronista) se mistura com o geógrafo, o repórter (este termo, então, é completamente anacrónico) ou até o mitógrafo. Comecemos por este último aspeto. O recurso à mitologia não significa que Heródoto tomasse à letra um mundo em que mortais se cruzavam com deuses e semideuses, mas a verdade é que encontrava nesses relatos mitológicos algo que, por si, devia ser contado, pois constituía, digamos assim, o sal da narrativa. Ou seja, não havia uma preocupação de rigor historiográfico muito “avant la lettre” ou de cientificidade (o mais remoto embrião dessa cientificidade surgiria não muito depois, com Tucídides). O mesmo se aplicando a todas as longas descrições dos territórios, dos povos e dos seus costumes, ou seja, dos desvios de geógrafo ou jornalista. O retrato/relato das “Histórias” é vincadamente subjetivo, o que terá de ser associado ao próprio percurso de vida do autor. Por via das circunstâncias, a começar pelo facto de ter sido expulso de Halicarnasso por razões políticas, Heródoto foi um grande viajante (na dimensão do mundo então conhecido). Andou pela Mesopotâmia, foi ao Egito, esteve entre os citas (nómadas em territórios persas), permaneceu longamente em Atenas e Delfos e, finalmente, fixou-se numa colónia fundada por Péricles no Sul da Península Itálica. E maravilhava-se com o que via, contando-o também de forma maravilhosa. Preocupando-se mais em contar histórias do que em elaborar discurso histórico. Aliás, o método de que fazia uso pode parecer aberrante a quem entende a história como algo que tem de se basear em documentos. As fontes de Heródoto eram a opsis (a observação) e o aco (o ouvir dizer). Uma coisa é certa. Heródoto não era nada que se pareça com um bardo oficial da grandeza helénica. Pelo contrário. Aliás, outro grego que viveu na transição entre os dois primeiros séculos da Era Cristã, Plutarco, acusava-o de ser injusto para com os gregos, não obstante todo o mérito formal da sua obra. Daí que tenha dedicado um tratado inteiro a tentar desmontar as “Histórias”, intitulando-o “Da malignidade de Heródoto”. Mas não se esgotava aí o desdém com que a posteridade o tratou. Aristóteles reduziu-o à condição de mitologista, Aulo Gélio considerava-o um fabulador. Só com o Renascimento voltou a ser visto com bons olhos.
Foi o “pai da história”? Que importa isso? Com ele, semente de uma historiografia que ainda estava por germinar, nasceu algo que o atrás referido Carbonell resume bem: “Desde a infância, Clio é a musa de dois rostos, a que inspira tanto os investigadores como os narradores”.