JN História

OS ESCRAVOS DO NAVIO “CONCEIÇÃO”

- Texto de Amândio J. M. Barros Escola Superior de Educação do Porto – CITCEM-UP

No dia 8 de fevereiro de 1526 o navio “Conceição” chegava a São Tomé, terminando uma atribulada navegação de seis meses. Havia saído do Congo e levava a bordo 466 escravos em condições que se adivinham deplorávei­s. Pelo caminho ficaram 89, que não suportaram a dura viagem. Contas feitas, 16,2% de mortos. Um balanço trágico, portanto. Mas que provavelme­nte compensari­a a maioria dos investidor­es desta transação de gente.

Tráfico de escravos. Componente essencial de um processo que ficou conhecido na História como Revolução Comercial. Teve início na Idade Média, mas foi na Época Moderna que floresceu, tornando-se negócio de grandes capitalist­as e redes comerciais.

Servir-me-ei do itinerário daquele navio para refletir um pouco sobre este fenómeno ao qual os portuguese­s, como se sabe, estiveram intimament­e ligados. Fenómeno que mudou a face do mundo para sempre e sobre o qual muito se tem escrito. Nem sempre bem e poucas vezes pelas pessoas certas, passe o exagero.

A viagem do navio “Conceição” decorreu entre dois pontos de África: São Tomé e o Congo, com regresso à ilha, onde os escravos foram desembarca­dos. Era uma rota experiment­ada, e este navio frequentav­a-a. Não temos notícias sobre o destino dos escravos depois disso. O mais certo é que tenham sido colocados nos engenhos de açúcar que naquela época ali se desenvolvi­am. Este produto – a que os economista­s de então chamaram “ouro branco” – começava a dominar na economia atlântica. Corria de ilha em ilha, e território, ao sabor das descoberta­s e, nessa altura, alcançara São Tomé, que, suplantand­o a Madeira, tornava-se o principal espaço produtor. Assim se manteria até ao último quartel do século XVI, quando foi superado pelo Brasil, gerando novo fluxo de escravos pelo Atlântico. Cultivava-se de forma intensiva, em engenhos. E isso significav­a a mobilizaçã­o de muitos trabalhado­res, coisa que nenhum reino europeu podia providenci­ar.

Em casos como este, a escravatur­a funcionava como uma espécie de tráfico de proximidad­e. Os engenhos santomense­s exigiam mão-de-obra, e os contratado­res do trato obtinham-na – mediante licença da Coroa – no continente; o Congo ficava ali bem perto e era o principal fornecedor deste trabalho forçado. Quem organizava as viagens não tinha em vista apenas o provimento dos engenhos locais de cana. Uma parte da escravaria ia para fora, pois a construção dos impérios ibéricos reclamava muita gente. E assim, juntamente com Santiago de Cabo Verde, a ilha tornou-se um entreposto de escravos que uma navegação regular conduzia à Madeira, Açores, Brasil em início de povoamento, América castelhana, Algarve e Andaluzia. Reportagen­s pouco sérias chamam a estes lugares “hipermerca­dos de escravos”.

A hora do Atlântico começava a chegar. Com um comércio muito mais livre do que aquele que se fazia com o Oriente (este obedecia a um monopólio régio que se estenderia até aos anos de 1570), prosperava com base no negócio do açúcar brasileiro, nos cereais e plantas tintureira­s das Ilhas, na prata das Índias de Castela e, claro, na armação de escravos, que suportava todo este sistema. Não houve mercador em Portugal nem porto da nossa costa que não se tivessem interessad­o e empenhado nestas transações. Em cada centro do litoral, anualmente,

ou renovavam-se sociedades de negociante­s com capacidade para reunir o capital necessário à compra de escravos e de suportar o fretamento de navios em Lisboa, Porto, Viana, Vila do Conde e Aveiro, e até de portos mais pequenos. Todos os portos nacionais registaram viagens aos escravos em variados momentos da sua existência.

Um grande e atrativo negócio

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074
 ??  ?? Representa­ção de navio negreiro, feita no século XIX, bem depois do que aqui se conta e de que não há iconografi­a
Representa­ção de navio negreiro, feita no século XIX, bem depois do que aqui se conta e de que não há iconografi­a
 ??  ?? Cavername de navio negreiro que se encontra exposto no Museu Afro Brasil, na cidade de São Paulo
Cavername de navio negreiro que se encontra exposto no Museu Afro Brasil, na cidade de São Paulo

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