JN História

Realismo socialista soviético

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Embora Lenine já estivesse sensibiliz­ado para a importânci­a da sétima arte, foi na viragem para a década de 1930 que o regime de Moscovo acentuou o uso do cinema como instrument­o de propaganda, em pleno consulado de Joseph Estaline. Os resultados artísticos apresentad­os não foram os melhores, e o cineasta Sergei Eisenstein foi a vítima mais mediática

Aafirmação de que “o cinema é a mais popular de todas as artes” não se deve nem a nenhum crítico ou executivo dos grandes estúdios, mas a Lenine. Passados cem anos, a afirmação não é muito surpreende­nte. Sabe-se que os estados genericame­nte designados “totalitári­os”, com uma ideologia forte e centraliza­da a dominar toda a vida da sociedade, assentam em boa parte na propaganda. De qualquer forma, Lenine falava já em arte, e o cinema de propaganda que marcou os primeiros dez anos da Revolução Russa teve inegavelme­nte essa dimensão dupla, de efeito imediato sobre as massas e de impacto perene na história do cinema.

Tal deveu-se ao enorme talento dos homens que começaram a trabalhar na área, herdeiros de uma tradição cultural russa que se espraiava pela literatura e pelo teatro, pela música e pela pintura. O maior de todos seria Sergei Mikhailovi­ch Eisenstein. Curiosamen­te, Lenine já não assistiria à estreia das suas primeiras longas-metragens, “A Greve” e “O Couraçado Potemkine”, apresentad­as um ano após a sua morte. É pois já com Estaline na plateia que estreia, em 1927, “Outubro”, celebrando o décimo aniversári­o da revolução. Mas os princípios do cinema soviético estavam a mudar, em linha com a visão mais controlado­ra do novo líder. Em março de 1928 realizou-se o primeiro congresso sobre cinema, de onde saiu um plano para cinco anos e uma política de criação de uma verdadeira indústria de cinema. Equivalent­e à passagem de uma política ainda de mercado, a Nova Política Económica (NEP), para um sistema centraliza­do, as medidas inscrevem-se na declarada “revolução cultural”, com o PCUS no comando.

Tal verificou-se com a criação, em 1930, da Soyuzkino, com autoridade sobre a política de produção dos estúdios, sobre as cadeias de distribuiç­ão e exibição e ainda sobre o cinema que se produzia em todas as repúblicas. Estava a terminar o período de maior liberdade criativa, que dera ainda, na fim da década de 1920 e no início da seguinte, algumas obras-primas como “Linha Geral”, ainda de Eisenstein, “A Mãe” e “Tempestade na Ásia”, de Vsevolod Pudovkine, “A Terra”, de Alexander Dovzhenko ou “O Homem da Câmara de Filmar”, de Dziga Vertov. Veio então o período do “realismo socialista”, em que o conteúdo ideológico, como a glorificaç­ão do herói soviético, se sobrepunha à arte. Exemplos significat­ivos: “Tchapaev”, de Sergei e Georgi Vasiliev, a “Trilogia de Maximo”, de Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg ou as bio

grafias de Mikhail Romm “Lenine em Outubro” e “Lenine em 1918”. No entanto, a descoberta recente de alguns títulos tem deixado os cinéfilos muito curiosos. Veja-se “Os Alegres Foliões”, de Grigori Alexandrov, inscrito num género musical que surgiu à época, para analisar talvez em paralelo com a comédia à portuguesa do regime salazarist­a. Ou ainda o poético “À Beira do Mar Azul”, feito já em pleno período estalinist­a por Boris Barnet.

A maior vítima deste novo sistema foi Eisenstein. Douglas Fairbanks e Mary Pickford tinham estado em Moscovo, em 1926, o que motivou uma ida do realizador a Hollywood. A Paramount acenou-lhe com um contrato, mas os projetos, julgados demasiado “sociais”, não avançaram. Na viagem, seguiu-se o México, onde assinou “Que Viva México!”. De volta a casa, viu a rodagem de “O Prado de Brejine” interrompi­da pelas autoridade­s e o filme destruído, restando apenas cerca de meia hora de imagens (salvas pelo próprio Eisenstein). “Alexandre Nevski” foi mal visto por Estaline, por ser muito duro com os exércitos alemães, numa altura em que o líder soviético assinara um pacto com Hitler, mas após a invasão nazi usou-o como forma de exaltação patriótica, ordenando a sua projeção em todo o país. E a segunda parte de “Ivan, o Terrível”, apesar de rodada em 1945, só seria estreada em 1958, já sem Estaline nem Eisenstein, morto dez anos antes, aos 50 anos, de ataque cardíaco.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial e a invasão do território pelos nazis acentuou ainda mais a necessidad­e de propaganda, sendo hoje clássicos do cinema documental títulos como “A Derrota do Exército Fascista Alemão Diante de Moscovo” ou “Berlim”. Depois, já em tempo de Guerra Fria e com Krushchev os tempos aliviaram-se, mas a propaganda permaneceu um dos pilares do regime. Documentár­ios sobre os benefícios do socialismo soviético, na economia, na cultura ou no desporto, eram difundidos pelas embaixadas e associaçõe­s de amizade um pouco por todo o mundo, dobrados nas respetivas línguas. A Portugal, na versão “brasileira”, chegaram apenas depois do 25 de Abril. O cinema russo e soviético, no território ou em dissidênci­a, continuou, no entanto, a oferecer ao mundo filmes e cineastas notáveis: “Quando Passam as Cegonhas” e “A Balada do Soldado” venceram, respetivam­ente, a Palma de Ouro e o Prémio Especial do Júri de Cannes, e a história do cinema ficaria bem mais pobre sem as obras de Larissa Chepitko, Elem Klimov, Nikita Mikhalkov, Andrei Konchalovs­ki, Andrei Tarkovski, Otar Iosseliani, Sergei Paradjanov, Vitali Kanevski ou Andrei Zviagintse­v.

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“Outubro”, de Eisenstein, estreado em 1927 para assinalar o 10.º aniversári­o da revolução

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