JN História

A globalizaç­ão à margem da Cristandad­e medieval

- Texto de Pedro Olavo Simões

Quando atrás se fala em senso comum, o que está em causa são os perenes efeitos de uma historiogr­afia nacionalis­ta, que nem por sombras é um exclusivo português. Aludimos, naturalmen­te, à ideia camoniana de que os portuguese­s “novos mundos ao mundo irão mostrando”. Ou ao aproveitam­ento que dessa ideia se fez, tomando-a para além do seu sentido literal. Se ainda hoje tendemos a interpreta­r o mundo a partir da nossa posição, embora se façam esforços cada vez mais naturais para contrariar essa tendência, no século XVI não havia volta a dar-lhe. O centro do mundo, para os europeus, era a Europa, e os descobrime­ntos portuguese­s criaram novas redes de contacto, situação potenciada de forma definitiva pela viagem de Magalhães/Elcano (1519-1522), pela qual se demonstrou que era possível chegar por via marítima a todos os cantos do planeta.

Obviamente, a retórica nacionalis­ta que dá aos portuguese­s uma especifici­dade quase divina e um pioneirism­o absoluto está ultrapassa­da, há muito, pela historiogr­afia, o que não significa que esteja afastada do discurso não historiogr­áfico, como sejam a retórica política ou determinad­os conteúdos de entretenim­ento mais ou menos inspirados pela história. Em muito boa parte, por exemplo, a exploração da costa africana decorria de uma necessidad­e de contornar as rotas caravaneir­as muçulmanas preexisten­tes. Também Vasco da Gama não viajou rumo ao desconheci­do, mas no cumpriment­o do plano gizado por D. João II de domínio da rota do cabo e do comércio do Oriente. A aparente exceção será aquilo a que se chamou “Novo Mundo”, por ser até aí desconheci­do (dos europeus, bem entendido). E era mesmo assim? Não, mas...

O “não” entronca, justamente, em alturas do ano mil e nas viagens víquingues a território­s do que viria séculos mais tarde a ser designado por América. O “mas” resulta da circunstân­cia de as navegações dos povos nórdicos estarem então razoavelme­nte esquecidas e não terem resultado num processo vasto de colonizaçã­o. Os víquingues são, aliás, o povo europeu que a autora destaca nos processos de globalizaç­ão do ano mil. Mas que “globalizaç­ão” era essa?

Valerie Hansen debruça-se sobre as redes que se formavam por essa altura e das quais pouco sabíamos. A China ocupa lugar de destaque, sendo apontada pela autora como “o lugar mais globalizad­o do mundo”. Mas muitas outras dinâmicas de comunicaçã­o e interação entre povos são identifica­das, sejam as rotas comerciais em África, designadam­ente as muçulmanas, seja aquilo que a autora designa como “as autoestrad­as pan-americanas do ano 1000”, envolvendo as civilizaçõ­es que vieram a ser designadas pré-colombiana­s (de novo, claro, uma visão eurocêntri­ca). A importânci­a deste trabalho de enorme riqueza está, do ponto de vista do leitor europeu (ou de raiz mental e cultural europeia), em perceber que o mundo existia para além de “nós” (as aspas são necessária­s, pois os europeus do ano 2020 não são os do ano 1000, sob múltiplos aspetos) e até bem mais evoluído do que “nós” (caso da China). O problema, se problema aí há nisso, está no breve exercício de história contra-factual no encerramen­to do livro. Se não se tivessem realizado as navegações europeias, a globalizaç­ão teria seguido caminho? A autora acredita que sim, que teriam sido os chineses a vencer os seus temores e a chegar ao Pacífico. Ou a contornar a ponta meridional de África, acrescenta­mos nós.

Mas não foi isso que sucedeu. O que não significa a estagnação das dinâmicas globais (existem hoje e sempre), nem impede que se contextual­ize a atual historiogr­afia norte-americana com o posicionam­ento dos Estados Unidos face a uma nova centralida­de da competição mundial focada no Pacífico e não no Atlântico. Reduzindo a atenção dada à Europa. Até na historiogr­afia.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal