A globalização à margem da Cristandade medieval
Quando atrás se fala em senso comum, o que está em causa são os perenes efeitos de uma historiografia nacionalista, que nem por sombras é um exclusivo português. Aludimos, naturalmente, à ideia camoniana de que os portugueses “novos mundos ao mundo irão mostrando”. Ou ao aproveitamento que dessa ideia se fez, tomando-a para além do seu sentido literal. Se ainda hoje tendemos a interpretar o mundo a partir da nossa posição, embora se façam esforços cada vez mais naturais para contrariar essa tendência, no século XVI não havia volta a dar-lhe. O centro do mundo, para os europeus, era a Europa, e os descobrimentos portugueses criaram novas redes de contacto, situação potenciada de forma definitiva pela viagem de Magalhães/Elcano (1519-1522), pela qual se demonstrou que era possível chegar por via marítima a todos os cantos do planeta.
Obviamente, a retórica nacionalista que dá aos portugueses uma especificidade quase divina e um pioneirismo absoluto está ultrapassada, há muito, pela historiografia, o que não significa que esteja afastada do discurso não historiográfico, como sejam a retórica política ou determinados conteúdos de entretenimento mais ou menos inspirados pela história. Em muito boa parte, por exemplo, a exploração da costa africana decorria de uma necessidade de contornar as rotas caravaneiras muçulmanas preexistentes. Também Vasco da Gama não viajou rumo ao desconhecido, mas no cumprimento do plano gizado por D. João II de domínio da rota do cabo e do comércio do Oriente. A aparente exceção será aquilo a que se chamou “Novo Mundo”, por ser até aí desconhecido (dos europeus, bem entendido). E era mesmo assim? Não, mas...
O “não” entronca, justamente, em alturas do ano mil e nas viagens víquingues a territórios do que viria séculos mais tarde a ser designado por América. O “mas” resulta da circunstância de as navegações dos povos nórdicos estarem então razoavelmente esquecidas e não terem resultado num processo vasto de colonização. Os víquingues são, aliás, o povo europeu que a autora destaca nos processos de globalização do ano mil. Mas que “globalização” era essa?
Valerie Hansen debruça-se sobre as redes que se formavam por essa altura e das quais pouco sabíamos. A China ocupa lugar de destaque, sendo apontada pela autora como “o lugar mais globalizado do mundo”. Mas muitas outras dinâmicas de comunicação e interação entre povos são identificadas, sejam as rotas comerciais em África, designadamente as muçulmanas, seja aquilo que a autora designa como “as autoestradas pan-americanas do ano 1000”, envolvendo as civilizações que vieram a ser designadas pré-colombianas (de novo, claro, uma visão eurocêntrica). A importância deste trabalho de enorme riqueza está, do ponto de vista do leitor europeu (ou de raiz mental e cultural europeia), em perceber que o mundo existia para além de “nós” (as aspas são necessárias, pois os europeus do ano 2020 não são os do ano 1000, sob múltiplos aspetos) e até bem mais evoluído do que “nós” (caso da China). O problema, se problema aí há nisso, está no breve exercício de história contra-factual no encerramento do livro. Se não se tivessem realizado as navegações europeias, a globalização teria seguido caminho? A autora acredita que sim, que teriam sido os chineses a vencer os seus temores e a chegar ao Pacífico. Ou a contornar a ponta meridional de África, acrescentamos nós.
Mas não foi isso que sucedeu. O que não significa a estagnação das dinâmicas globais (existem hoje e sempre), nem impede que se contextualize a atual historiografia norte-americana com o posicionamento dos Estados Unidos face a uma nova centralidade da competição mundial focada no Pacífico e não no Atlântico. Reduzindo a atenção dada à Europa. Até na historiografia.