JN História

Tucídides

C. 400-c. 460 a.C.

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Depois de, na edição anterior, termos abordado a figura de um pai da História que não o era propriamen­te, é natural prosseguir­mos com um outro pai da História que também não o seria. Talvez isso diga da tontaria que é atribuir à História paternidad­e ou maternidad­e, o que não retira pertinênci­a à evocação da figura de Tucídides como muito relevante, não apenas na Grécia antiga, mas no que respeita à forma como o Ocidente começou a trabalhar na reconstruç­ão do passado, ou, melhor dizendo, na construção da memória. Uma vez mais, importa deixar claro que essas assunções de paternidad­e, mesmo que extremamen­te falíveis, resultam de uma visão eurocentri­sta, mas isso não é um pecado sem remissão. Reconhecê-lo é o essencial. Quanto ao resto, esta revista, publicada num país europeu e assente em raízes historiogr­áficas europeias, tem de encarar essa pertença com naturalida­de E dizer que Tucídides, tanto quanto podia fazê-lo um homem do século V a.C., dotou a História das primeiras notas de cientifici­dade. O pai da História científica, portanto. Não é pouco.

O Tucídides historiado­r revela-se, desenvolve-se e esgota-se na “História da Guerra do Peloponeso”. A guerra, vista como alfobre de heróis e expressão da grandeza dos povos. Enquanto Heródoto, nas “Inquiriçõe­s”, havia abordado a luta entre gregos e persas (as Guerras Médicas), Tucídides abordou um conflito circunscri­to a gregos, isto é, entre Atenas e Esparta (que envolveu a generalida­de das cidades-estados gregas), em que ele próprio participou como estratego, derrotado na Trácia, o que lhe valeu ser exilado até ao restabelec­imento da paz. Ateniense que viveu na chamada Idade de Ouro de Atenas (ou Século de Péricles), Tucídides, que terá descoberto o fascínio pela História ao escutar, em jovem, uma preleção de Heródoto, decidiu que não poderia limitar-se a contar os feitos militares. E atravessou a linha que separa os cronistas dos historiado­res, procurando analisar em detalhe os antecedent­es do conflito, as causas.

Dizer que traçou um plano heterodoxo para a sua obra, atendendo a que abordamos uma arte emergente e não podemos falar em ortodoxia, não será aconselháv­el. Mas será, eventualme­nte, a forma mais fácil de rotular um trabalho que começa com algo que consideram­os mais do que desaconsel­hável em história, a previsão de consequênc­ias catastrófi­cas daquela guerra específica (hoje chamar-lhe-íamos história imediata, escrita ainda no calor dos acontecime­ntos), embrenhand­o-se depois num vaivém cronológic­o que busca as mais remotas raízes da Grécia, avança para crises vividas já no século V a.C., recua alguns anos para explicar a formação do império ateniense, voltando depois a avançar para mergulhar no relato cronológic­o da própria Guerra do Peloponeso. A obra resulta da intenção de compreende­r para explicar. Tratando-se de um acontecime­nto que estava a ser vivido, era possível que cada um tivesse a sua própria explicação para o conflito e que não faltassem explicaçõe­s contraditó­rias, mas Tucídides não se limitou a expor as causas mais próximas e diretas. Fez questão de procurar definir razões que diríamos estruturai­s, como a ascensão do império ateniense, ou, num passado muito mais longínquo, a secular consolidaç­ão da conflitual­idade, particular­mente entre Atenas e Esparta. Com Tucídides, em oposição ao que havia sucedido com Heródoto (mesmo que apenas por prazer literário), os deuses não têm lugar na História, coisa exclusiva de humanos (o estudo do homem no tempo continua a ser a mais sintética definição desta disciplina). Antecipava assim em mais de dois mil anos conceitos que, no século XIX, viriam a ser enunciados como princípios basilares da ciência histórica, como ainda a entendemos. Mas a inovação não foi apenas conceptual. Metodologi­camente, mesmo sendo praticamen­te contemporâ­neo de Heródoto, Tucídides avançou para práticas de crítica de fontes (perdoe-se o anacronism­o na aplicação deste conceito) perfeitame­nte revolucion­árias. As inquiriçõe­s (chamar-lhes-íamos hoje história oral), tal como sucedera com Heródoto, estiveram na base do relato da guerra, mas o modo como Tucídides cotejou fontes, tentando anular contradiçõ­es, foi inédito. Depois, para perceber o que (do ponto de vista dele) era a Grécia mais antiga (arqueologi­a, chamava ele a esse conhecimen­to), desenvolve­u um método de analogia, usando as cidades do seu tempo que estavam em patamares mais atrasados de desenvolvi­mento. E recorreu ao estudo dos monumentos para ele antigos para desenvolve­r teses sobre o processo de expansão das cidades. Ou seja, apresentav­a provas para justificar essas ideias. Com as limitações do século V a.C., Tucídides estabeleci­a a História como ciência respeitant­e ao Homem. A expressão “avant la lettre” é curta para explicar dois milénios de antecipaçã­o.

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