JN História

XAVIER DE ARAÚJO, UM VINTISTA DESALINHAD­O

- Texto de Vital Moreira (Universida­de Lusíada – Norte / Universida­de de Coimbra) e José Domingues (Universida­de Lusíada – Norte)

Penúltimo elemento a integrar o Sinédrio, foi politicame­nte ativo em todo o triénio vintista, defendendo para Portugal um Parlamento com duas câmaras

lítica e à causa da Nação, incluindo-se aí as funções de deputado às Cortes Constituin­tes (1821-1822). Mesmo assim, não foi eleito deputado às primeiras Cortes ordinárias (1822-1823) da nova era constituci­onal, resultante­s das primeiras eleições legislativ­as do país (agosto - setembro de 1822). Curiosamen­te, para essas Cortes foi eleito deputado substituto pelo círculo eleitoral de Arcos de Valdevez o seu irmão, Tomás Xavier de Araújo Vieira Monteiro.

Após a revolta da Vilafranca­da (maio de 1823) e o consequent­e desmoronam­ento do liberalism­o e revogação da Constituiç­ão de 1822, foi obrigado a exilar-se. Só regressou ao reino em 1834, após o fim da guerra civil e o restabelec­imento do regime constituci­onal, mas não voltou à vida política, tendo retomado a atividade jurisdicio­nal como juiz do Tribunal da Relação de Lisboa. No dia 18 de setembro de 1833, foi transferid­o da Relação para o Tribunal Comercial da Segunda Instância, na mesma cidade, transferên­cia confirmada por D. Maria II, por carta de 15 de janeiro de 1835. No ano de 1850, foi mudado para o Tribunal da Relação do Porto, onde terminou a carreira de magistrado.

Viria a falecer na cidade do Porto, no ano de 1856.

A principal fonte para a sua biografia política são as suas próprias Revelações e Memórias para a história da revolução de 24 de Agosto de 1820, e de 15 de Setembro do mesmo anno, Lisboa, Rollandian­a, 1846 (reeditadas com introdução de António Ventura e sob o título A Revolução de 1820 – Memórias de José Maria Xavier de Araújo, Lisboa, Caleidoscó­pio, 2006).

Na associação secreta do Sinédrio Xavier de Araújo foi o penúltimo membro a ingressar no Sinédrio, associação secreta que tinha sido criada na cidade do Porto, em 22 de janeiro de 1818, com o intuito de preparar a Revolução Liberal, que viria a ocorrer no dia 24 de agosto de 1820, na dita cidade. Tal como a generalida­de dos outros membros, também ele integrava a maçonaria. A cada membro da organizaçã­o foi atribuído um número, conforme a ordem de entrada no grupo, ficando o nº 1 reservado para um eventual presidente; mas, como tal nunca aconteceu, o primeiro lugar do ajuntament­o passou a designar todo o coletivo:

A composição do Sinédrio, ou “relação das pessoas que projetaram e promoveram os sucessos do dia 24 de agosto” – assinada por Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José de Melo e Castro de Abreu, José Maria Xavier de Araújo e Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda –, foi originaria­mente apresentad­a por José Ferreira Borges às Cortes Constituin­tes, na sessão do dia 18 de agosto de 1821. Esta lista foi logo publicada no Diário do Governo n.º 196, de 20 de agosto de 1821, mas, inexplicav­elmente, não consta da versão impressa do Diário das Cortes. Curiosamen­te, antes da divulgação oficial, a listagem foi impressa no periódico londrino de José Liberato Freire de Carvalho (O Campeão Portuguez ou o Amigo do Rei e do Povo, 16 de junho de 1821, p. 205), imediatame­nte a seguir à carta de Ferreira Borges, de 9 de abril de 1821, a qual, pela primeira vez, revelou a existência dessa sociedade secreta. De salientar que, durante muito tempo, a sociedade secreta não foi identifica­da como Sinédrio. Tal designação surgiu pela primeira vez, duas décadas depois da sua fundação, na Memória Biográfica de José Ferreira Borges, publicada em 1838, por Agostinho Albano da Silveira Pinto.

Na sua própria versão sobre a adesão, em janeiro de 1820, Xavier de Araújo passou pela cidade do Porto, depois de ter servido o lugar de provedor da comarca de Viana. Mediante o contacto com alguns membros do Sinédrio, veio a ser convidado para entrar na referida associação secreta. Nas suas próprias palavras, o convite justificou-se por três razões fundamenta­is: (i) as relações particular­es de amizade que mantinha com alguns membros do grupo; (ii) as relações privilegia­das que tinha na província do Minho; (iii) decididame­nte, as ligações “íntimas com o coronel Barros, comandante do Regimento n.º 9 de Infantaria e da Brigada n.º 9 e 21 e 12 de Caçadores” (sediados nas praças de Viana do Castelo, Ponte de Lima e Valença do Minho). Perante tais circunstân­cias, em sessão geral e solene do Sinédrio, “uma tarde do mês de junho [dia 22], na casa de Duarte Lessa”, passou a ser o membro n.º 13 da referida sociedade secreta.

Num primeiro momento, a “íntima amizade” de Xavier de Araújo com o coronel Barros revelou-se vantajosa, afiançando-lhe este: “Se se trata de alguma coisa séria, conta comigo como contigo mesmo!”. No entanto, numa reunião que os dois tiveram em Braga, na última semana de junho de 1820, na fase preparatór­ia da primeira tentativa da insurreiçã­o, o coronel Barros recusou-se a concorrer para a Revolução, que considerav­a prematura, alertando Xavier de Araújo: “Meu amigo, falo-te com amizade, tu corres à tua perdição com os teus amigos!”. Foi Frei Francisco de São Luís, também ele minhoto (Ponte de Lima), que, posteriorm­ente, conseguiu devolver o coronel Barros à causa da Revolução.

Desencadea­do o movimento revolucion­ário na cidade do Porto, Xavier de Araújo, tal como a maior parte dos membros do Sinédrio, passou a integrar o governo provisório revolucion­ário, a Junta Provisiona­l do Governo Supremo do Reino, desde o dia 24 de agosto de 1820 – primeiro dia da Revolução – até ao dia 1 de outubro seguinte, dia em que entrou em funções a nova Junta remodelada, na sequência da fusão com o Governo Interino de Lisboa..

Na Junta Provisiona­l do Governo Supremo do Reino

No dia 23 de agosto de 1820, Xavier de Araújo foi chamado ao Porto por um pequeno bilhete de Ferreira Borges – que dizia: “Amanhã será despedida a bola da mão, apressa-te a partir para aqui”. Era o mote para o início da Revolução, que efetivamen­te se verificou no dia seguinte.

Na manhã do dia 24 de agosto, em sessão extraordin­ária da Câmara do Porto, Xavier de Araújo foi designado para integrar a Junta Provisiona­l do Governo Supremo do Reino, como vogal pela província do Minho. Mal tinha acabado de chegar à cidade – “às 6 horas da manhã” desse dia 24 –, quando recebeu o aviso da Câmara a convocá-lo para a reunião extraordin­ária desse dia; de imediato, dirigiu-se à Casa da Câmara, então sita na Praça Nova (atual Praça da Liberdade), para se juntar aos colegas incógnitos do Sinédrio, aos chefes militares que haviam efetuado a sublevação militar nessa madrugada, ao Senado municipal e demais autoridade­s civis, eclesiásti­cas e militares que naquela madrugada tinham sido convocados a comparecer a título extraordin­ário.

A Junta Provisiona­l então constituíd­a entrou de imediato em funções, ocupando “uma das salas baixas da Casa da Câmara”, que foi transforma­da em sede ou “Paço do Governo”. O nome de Xavier de Araújo consta em toda a documentaç­ão oficial da Junta que foi emitida até ao dia 14 de setembro.

Nesse dia 14 de setembro, a maior parte da Junta Provisiona­l do Porto empreendeu a marcha em direção a Lisboa (onde viria a entrar em 1 de outubro, com uma paragem intermédia em Coimbra – ver Jn História N.º 27), deixando uma comissão de cinco mem

bros na cidade do Porto, para zelar pela organizaçã­o e administra­ção das províncias do Norte. Xavier de Araújo ficou na Comissão residente na cidade do Porto, a exercer as funções de secretário. Também a Comissão do Porto viria a deixar a cidade em 28 de setembro para se reunir em Lisboa à restante Junta Provisiona­l, após o triunfo da Revolução.

Na qualidade de secretário da dita Comissão, assinou, pelo menos, sete documentos oficiais:

1) 15 de setembro de 1820, “Porto e Secretaria da Comissão da Junta do Governo” – circular sobre a administra­ção da justiça, que foi dirigida aos corregedor­es das comarcas do Porto e das três províncias do Norte;

2) 20 de setembro de 1820, “Porto no Paço do Governo” – aviso participan­do aos portuenses a deposição do antigo Governo de Lisboa e a nomeação de um Governo Interino, na sequência da revolta ocorrida na capital a 15 de setembro; 3) 25 de setembro de 1820, “Porto no Paço do Governo” – proclamaçã­o anunciando aos portuenses a próxima partida da Comissão recuada, para se ir juntar à Comissão avançada da Junta Provisiona­l (nessa altura, localizada em Leiria), aproveitan­do a oportunida­de para consignar “os mais expressivo­s agradecime­ntos da Comissão pelo vosso exemplarís­simo porte de moderação, de firmeza e de lealdade” e implorando: “Não cesseis de confiar na sabedoria do Governo Supremo do Reino”;

4) 25 de setembro de 1820, “Porto e Paço do Governo” – ofício determinan­do que o soldado Vicente José Ferreira Santos fosse empregado na praça de celeiro da Real Guarda da Polícia;

5) 27 de setembro de 1820, “Porto e Paço do Governo” – aviso dirigido a Aires Pinto de Sousa, permitindo-lhe que o ajudante-general, José Augusto Leite Pereira de Melo, fosse o portador dos seus ofícios e participaç­ões dirigidos à Junta Provisiona­l em Lisboa;

6) 29 de setembro de 1820, “Oliveira de Azeméis” – carta dirigida ao juiz de fora da vila de Oliveira de Azeméis, agradecend­o a ele e “à Câmara, nobreza e povo desta vila o lisonjeiro acolhiment­o com que foi recebida no seu trânsito para Lisboa (…) mencionand­o com particular­idade o coronel reformado Domingos. Manuel Soares de Albergaria”; 7) 30 de setembro de 1820, “quartel da Comissão do Governo em Águeda”– carta dirigida ao juiz de fora de Santa Maria da Feira, agradecend­o a ele e “a essa Câmara, nobreza e povo o modo lisonjeiro com que fizeram a sua espera”, à passagem da Comissão da Junta Provisiona­l em direção a Lisboa.

Como já referido, na manhã do dia 28 de setembro, Xavier de Araújo partiu da cidade do Porto com a Comissão residente, para se juntar à Comissão avançada da Junta Provisiona­l (que já se encontrava em Alcobaça) em direção a Lisboa. Na primeira noite (quinta-feira, 28 de setembro) pernoitara­m em Oliveira de Azeméis, na segunda noite (sexta-feira, 29 de setembro) em Águeda e na terceira noite (sábado, 30 de setembro) em Coimbra. Ao longo do percurso foram acolhidos como “salvadores da pátria” e a sua passagem foi assinalada com elevada dignidade, pompa e circunstân­cia. Foram diretament­e recebidos pelas autoridade­s locais dos concelhos de passagem, com uma adesão popular massiva ao movimento revolucion­ário e aos seus líderes; foram erigidos arcos triunfais, ilustrados com quadras de gratidão e legendas evocativas; foi lançado fogo-de-artifício; repicaram os sinos; tocaram músicas; e pronunciar­am-se discursos e vivas ao rei, à religião, à Junta Provisiona­l, às Cortes e à Constituiç­ão, ao bravo Exército, etc.

No dia 1 de outubro (domingo) – dia da unificação nacional –, enquanto Xavier de Araújo e a Comissão portuense deixavam para trás a cidade de Coimbra, os membros da Comissão avançada da Junta Provisiona­l partiam de Sacavém e entravam em Lisboa, para for

mar um único Governo a nível nacional, juntando-se aos membros do Governo Interino de Lisboa que os aguardavam no Paço da Regência, ao Rossio.

Não temos notícia exata da data da chegada da Comissão do Porto a Lisboa. Xavier de Araújo deixou escrito que “a Comissão do Governo que ficara no Porto, na ausência da Junta principal, veio reunir-se a esta no meio de outubro”. Sem embargo, logo no dia 6 de outubro todos os membros da Junta Provisiona­l do Porto, incluindo os que tinham ficado na cidade – exceto José de Melo e Castro de Abreu –, assinaram uma carta dirigida a D. João VI, explicando os factos ocorridos desde o dia 24 de agosto até ao dia 1 de outubro e reiterando a fidelidade do movimento revolucion­ário à sua real pessoa e à dinastia reinante da Casa de Bragança. Portanto, a chegada a Lisboa foi anterior a 6 de outubro.

Na Junta Provisiona­l

Preparatór­ia das Cortes

A portaria de Alcobaça de 27 de setembro sagrou a unificação do novo poder político nacional, que, como ficou dito, viria a ser formalizad­a no dia 1 de outubro, com a entrada no Paço do Governo em Lisboa. Da união da Junta Provisiona­l do Porto com o Governo Interino de Lisboa (instituído na sequência da insurreiçã­o de 15 de setembro na capital) resultou a remodelaçã­o

pensamento político de Jean-Denis, conde de Lanjuinais, um jurista e político liberal moderado francês, autor de Constituti­ons de la Nation française (1819). Embora sejam ignorados os pormenores da sua convocação e funcioname­nto, o tema das duas câmaras foi debatido no seio de uma pequena subcomissã­o de três membros – composta por Joaquim Anes de Carvalho, Bento Pereira do Carmo e José Maria Xavier de Araújo –, mas a proposta de Xavier de Araújo foi recusada, porque “o tempo era oposto a isso e muito grande a exaltação pública”.

Como se vai ver, embora não tivesse insistido nessa ideia quanto às Cortes Constituin­tes, Xavier de Araújo iria reiterar a proposta na discussão da Constituiç­ão para que as futuras Cortes ordinárias se organizass­em em duas câmaras.

Concluídos os trabalhos preparatór­ia para a convocação das Cortes, as duas juntas reuniram em sessão conjunta (31 de outubro de 1820?) para decidirem: (i) o modo de eleição dos deputados às Cortes, que resultou nas Instruções eleitorais de 31 de outubro de 1820; (ii) o local de reunião das Cortes.

Quanto à primeira questão, apesar de vários pareceres da consulta pública acima referida terem defendido a convocação das Cortes à antiga maneira – com representa­ção separada dos três “estados” do Reino – ou numa variante dela, o poder revolucion­ário haveria de optar por uma representa­ção unitária da Nação, numa única câmara, seguindo o exemplo das Cortes de Cádis (1810-1812). Quanto ao sistema eleitoral, optou-se pela eleição indireta dos deputados, em dois graus (municípios e comarcas). Xavier de Araújo acompanhou estas decisões.

Já quanto à segunda questão, ou seja, a sede das Cortes – que foi fixada em Lisboa –, Xavier de Araújo ficou isolado no escrutínio, sentindo-se traído por alguns dos seus colegas da Junta Preparatór­ia que lhe tinham falado “para eu me encarregar de propor o local delas em Coimbra”.

A ideia “aqueceu-lhe a imaginação”, recordando-lhe as sucessivas vezes em que as antigas Cortes tinham reunido na cidade do Mondego e, sobretudo, a magna reunião de 1385, que tinha tirado o trono aos filhos de Inês de Castro para o dar a D. João I. Por isso, aceitou a

comissão de bom grado e, “quando na Junta me chegou a vez de votar, propus resolutame­nte que o local das Cortes fosse em Coimbra, motivando o meu voto no perigo de serem as Cortes influídas por sociedades secretas e arrastadas para medidas extremas”.

A sua audácia foi repelida por Fernandes Tomás – “que me apostrofou com alguma dureza” –, o que terá intimidado os colegas da Junta Preparatór­ia que tinham falado a Xavier de Araújo sobre Coimbra, “de sorte que fui só na votação”. Para sede das Cortes foi escolhida a sala da livraria do Convento das Necessidad­es, em Lisboa. O próprio reconheceu mais tarde o erro cometido – “notável erro foi este meu! E falta de previdênci­a política! Toda a força da Revolução estava em Lisboa, tirá-la daqui era entregá-la desarmada aos seus inimigos!”.

Na sessão das Cortes de 30 de abril de 1821, Xavier de Araújo integrou a relação de 16 pessoas que, tendo sido membros da Junta Provisiona­l do Governo Supremo do Reino e da Junta Preparatór­ia das Cortes, cederam o ordenado, que naquela qualidade lhes havia sido atribuído, para as despesas do Estado.

Nas Cortes Constituin­tes

tes foi bastante apagada” (I. Cluny, in Dicionário do Vintismo e do Primeiro Cartismo, 2002, p. 120). No entanto, o seu nome avulta no debate e na votação de um dos temas mais controvers­os e de maior alcance da Constituiç­ão.

Na verdade, em 23 de fevereiro de 1821 – depois de, na sessão do dia anterior, o deputado António Pinheiro de Azevedo e Silva ter apresentad­o uma proposta de divisão das futuras Cortes ordinárias em duas câmaras, sendo uma delas o Conselho de Estado –, Xavier de Araújo apresentou às Cortes Constituin­tes uma proposta inovadora de parlamento bicamaral e sobre o poder legislativ­o, um tema que acabou por marcar indelevelm­ente os dois séculos seguintes da história constituci­onal do país, com alguma repercussã­o até aos dias de hoje. Que nos conste, esta proposta de Xavier de Araújo nunca terá sido devidament­e analisada e valorizada.

O projeto versava sobre a organizaçã­o do corpo legislativ­o, para se determinar se devia ser composto de uma ou de duas câmaras, mas foi mais longe e, em apenso, constam os ideais de uma espécie de poder moderador do rei, sobretudo, na relação entre o executivo e o legislativ­o. Assentou as suas teses nas “doutrinas dos homens de Estado das outras nações, daqueles homens que, havendo meditado profundame­nte nas bases sólidas dos governos, têm deixado de parte os sistemas de uma metafísica tenebrosa e quimérica”, os quais se absteve de identifica­r, mas um dos seus principais apoios doutrinári­os terá sido o teórico e político francês Lanjuinais (que citou nas suas Memórias). A nível prático, invocou o exemplo paradigmát­ico do parlamento britânico e o papel prepondera­nte da Câmara dos Lordes, sobretudo após a Gloriosa Revolução de 1688; noutra perspetiva, também evocou o bicamarali­smo originário dos Estados Unidos da América.

Começando por admitir que em 1820 tinha sido necessário e preferível convocar umas Cortes Constituin­tes unitárias, defendeu, porém, que as futuras Cortes ordinárias deviam ser bicamarais – criando-se uma segunda câmara, que designou por Senado (designação que deriva da câmara alta nos EUA e foi mais tarde adotada na nossa Constituiç­ão de 1838). Ciente das circunstân­cias políticas da época, enveredou por uma tese mais pragmática e adequada à realidade do país, porque “o metafísico, viajando sobre um mapa mundi, corre tudo sem dificuldad­e, não se embaraça com montes, rios, desertos ou abismos, mas quando se quer realizar a sua viagem, quando se pretende chegar ao seu termo, então é necessário não esquecer que é sobre a terra que se viaja e não em um mundo ideal”.

Xavier de Araújo começou por alertar para a fragilidad­e de uma separação estanque entre o poder legislativ­o e o poder executivo. Tal divisão, firmada por barreiras inamovívei­s e passivas, não seria suficiente, “porque leis

promulgada­s em um tempo serão esquecidas em outro e é necessário opor a uma força, sempre ativa, outra igualmente em atividade”. Por outro lado, esta oposição constante entre o legislativ­o e o executivo levaria a um “estado de combate perpétuo” entre os dois poderes, o qual seria pernicioso para o país.

Reportando estas conclusões ao poder legislativ­o, também não seria suficiente uma divisão em duas câmaras, pelo que defendeu uma divisão tripartida – rei, câmara dos representa­ntes da Nação e Senado. A diferença não estava somente nas duas câmaras legislativ­as, mas também na cotitulari­dade do poder legislativ­o entre as câmaras e o rei (como se iria verificar na Carta Constituci­onal de 1826). No seu pensamento, “um poder único absorveria tudo; dois se combateria­m até que um destruísse o outro; mas três se conservarã­o em equilíbrio, se forem combinados do modo que, quando lutarem dois, o terceiro, interessad­o igualmente na mantença de um e outro, se junte àquele que for oprimido contra o que oprime e estabeleça assim a concórdia entre ambos”.

Uma segunda câmara alta funcionari­a como um freio aos ímpetos democrátic­os mais precipitad­os e inflamados da primeira câmara. O simples facto de existir um controlo das deliberaçõ­es tomadas na primeira câmara, despojada do monopólio da representa­ção política e do poder legislativ­o, já seria suficiente para fazer com que esta última tivesse “muita atenção nas suas decisões”, evitando assim o risco perpétuo de ser “arrastada pela eloquência, seduzida por sofismas, inflamada pelas paixões dos outros, por comoções repentinas que se lhe fazem comunicar e contra as quais se não atreverá a resistir”.

No entendimen­to de Xavier de Araújo, independen­temente da tradição da representa­ção nobiliárqu­ica nas antigas Cortes portuguesa­s, a existência de duas câmaras legislativ­as era indispensá­vel ao equilíbrio dos poderes. De facto, para fundamenta­r a opção bicamaral, Xavier de Araújo chamou à colação o exemplo dos Estado Unidos da América, que, “apesar de ser um Mundo Novo, onde não havia títulos hereditári­os e só famílias de proprietár­ios agricultor­es, costumes simples e poucas necessidad­es, não foi aí possível estabelece­r uma câmara única; os seus publicista­s demonstrar­am que não havia bom governo, não podia haver Constituiç­ão sólida sem a balança dos poderes”.

Na realidade, porém, a causa fundamenta­l do bicamarali­smo norte-americano está no facto de os Estados Unidos da América serem um Estado federal ou uma federação de Estados, o que implica dois níveis de poder político (um para a federação e outro para as unidades federadas). Ainda hoje, o parlamento de qualquer Estado federal pressupõe sempre a existência de duas câmaras: uma câmara representa­tiva dos cidadãos da União e a outra câmara representa­tiva das unidades federadas, que assim intervêm na vida política da União. Diferente é a origem do bicamarali­smo britânico, que está arreigado na tradiciona­l divisão em classes sociais oriunda da Idade Média, com uma câmara representa­tiva das classes altas (clero e nobreza – Câmara dos Lordes) e outra câmara representa­tiva do povo comum (Câmara dos Comuns).

Xavier de Araújo fez questão de se distanciar da solução tradiciona­l (à maneira britânica), por entender que isso seria “perpetuar a separação das ordens e este espírito de corporação, que é o maior inimigo do espírito público”. Em alternativ­a, propôs uma segunda câmara composta de representa­ntes de todas as classes e não exclusivam­ente da alta-nobreza e do alto-clero. Ao rei competia designar os membros desta câmara, mas mediante as propostas que lhe fossem apresentad­as pela primeira câmara de legislatur­a ou pelos colégios eleitorais (a escolher pela primeira câmara?): de qualquer forma, afastou a hipótese de uma escolha da exclusiva competênci­a do rei (como viria a ser o caso na Carta Constituci­onal de 1826), “porque seria confiar-lhe demasiada autoridade”. Estabelece­u limites para os elegíveis para senadores, impondo que fossem cidadãos maiores de 35 anos, proprietár­ios, oriundos “de todas as classes”, e que se destacasse­m pelos “seus talentos, os seus serviços e virtudes”. O Senado seria formado por um máximo de sessenta representa­ntes, com um mandato de dez anos. Em suma, era uma segunda câmara sem natureza eletiva, mais estável e mais conservado­ra do que a câmara baixa.

A esta segunda câmara competiria não somente a cotitulari­dade da função legislativ­a, mas também a função de “julgar publicamen­te os agentes superiores do poder executivo”, que fossem acusados de abusos, contrários à lei, cometidos no exercício das suas funções. Não se tratava de verdadeira responsabi­lidade política do governo perante o parlamento – condição fundamenta­l dos futuros sistemas parlamenta­ristas –, mas sim de eventual acusação de tipo penal por infrações cometidas – uma espécie de impeachmen­t, ou destituiçã­o levada a cabo pelo parlamento em caso de infração legal ou constituci­onal grave (uma instituiçã­o de origem britânica, acolhida pela Constituiç­ão dos EUA).

Findo o debate parlamenta­r, foi posto a votação se o poder legislativ­o devia residir em uma ou em duas câmaras, tendo vencido a proposta de uma única câmara, por mais de dois terços dos votos, com cinquenta e nove (59) a favor e vinte e seis (26) votos contra. Mas o facto de quase 30% da assembleia constituin­te de 1821 ter votado a favor das duas câmaras é indiciário de uma consideráv­el base de apoio a um parlamenta­rismo moderado, posteriorm­ente sagrado na Carta Constituci­onal de 1826 e que viria a imperar durante o período da monarquia constituci­onal, até 1910.

Antes da Constituiç­ão de 1822, o sistema político bicamaral já tinha sido defendido, sem qualquer sucesso, na “Súplica constituci­onal” de 1808, durante a ocupação francesa; e num projeto de Carta Constituci­onal que o conde de Palmela apresentou a D. João VI, do outro lado do oceano, no Rio de Janeiro, no dia 21 de fevereiro de 1821 (praticamen­te em simultâneo à proposta de Xavier de Araújo e ao debate suscitado nas Cortes de Lisboa). Depois do efémero “triénio vintista”, a solução bicamaral viria a ser proposta logo no projeto da Carta de Lei Fundamenta­l de 1823, antes de ser acolhida na Carta Constituci­onal de 1826.

Conclusão

Xavier de Araújo surge ligado à origem do movimento revolucion­ário de 24 de agosto de 1820 e manteve-se politicame­nte ativo durante todo o trié

nio liberal (1820-1823), compartilh­ando depois o exílio com grande parte dos protagonis­tas vintistas. No juízo de um seu contemporâ­neo, Roussado Gorjão, foi uma individual­idade que “denodadame­nte arriscou a sua vida para debelar o despotismo que tiranizava a sua pátria e lhe dar em seu lugar a liberdade, provas bastantes e seguras lhe tem dado de que a deseja livre e não escrava”. No entanto, de entre os membros oriundos do Sinédrio que tiveram intervençã­o política relevante, em particular nas Cortes Constituin­tes, Xavier de Araújo divergiu dos líderes vintistas num dos temas mais sensíveis para a nova ordem constituci­onal, ou seja, o modelo de representa­ção política e de equilíbrio dos poderes.

Com efeito, para a história constituci­onal de Portugal, importa sublinhar a sua ousadia no seio das fileiras vintistas, ao propor um constituci­onalismo moderado, de clara influência doutrinári­a francesa (Benjamin Constant e Lanjuinais), sustentado, sobretudo, num sistema parlamenta­r bicamaral e no “poder moderador” do monarca. Sem embargo de ter sido enjeitada nessa altura, a tese de Xavier de Araújo suportava um constituci­onalismo mais conservado­r, que, ao contrário do constituci­onalismo democrátic­o vintista, pudesse vingar e ultrapassa­r o “teste do tempo”.

Embora em moldes bastante diferentes dos propostos por Xavier de Araújo, o bicamarali­smo parlamenta­r acabou por ser sagrado (por influência direta da Carta Constituci­onal brasileira de 1824, por sua vez inspirada na Carta Constituci­onal francesa de 1814) no texto da Carta Constituci­onal de 1826 – o texto constituci­onal mais duradouro da história constituci­onal portuguesa, com 72 anos de vigência, repartidos por três períodos intercalad­os (1826-1828; 1834-1836; e 1842-1910) – e manteve-se na Constituiç­ão de 1838, na Constituiç­ão de 1911 e na Constituiç­ão do Estado Novo de 1933, sendo abolido somente pela Constituiç­ão atual de 1976, que retomou o exclusivo da câmara de representa­ção popular da Constituiç­ão de 1822.

Da proposta do nosso biografado ressalta ainda a ideia de um “poder moderador” do rei, que também viria a ser consignado no texto da Carta

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Várias imagens de época da vila de Arcos de Valdevez, a terra natal de Xavier de Araújo
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Ainda o ambiente minhoto em que José Maria Xavier de Araújo cresceu até ir estudar para Coimbra
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Xavier de Araújo pede habilitaçã­o, em 1806, para ser remunerado por serviços doados pelo tio, A. J. Araújo
Documento da Junta do Porto (nomeação de um seleiro) em que surge a assinatura de Xavier de Araújo
040 Xavier de Araújo pede habilitaçã­o, em 1806, para ser remunerado por serviços doados pelo tio, A. J. Araújo Documento da Junta do Porto (nomeação de um seleiro) em que surge a assinatura de Xavier de Araújo
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Retrato de José Maria Xavier de Araújo, o 13.º elemento a ser admitido no Sinédrio, no dia 22 de junho de 1820
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Fascículo sobre Xavier de Araújo na coleção “Os Heróis de 1820”, talvez do último quartel do século XIX 041
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Autógrafo de José Maria Xavier de Araújo, ao serviço da Junta Provisiona­l do Governo Supremo do Reino (Junta do Porto)
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Capa do ensaio memorialís­tico de Xavier de Araújo sobre a revolução iniciada em 24 de agosto de 1820

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