XAVIER DE ARAÚJO, UM VINTISTA DESALINHADO
Penúltimo elemento a integrar o Sinédrio, foi politicamente ativo em todo o triénio vintista, defendendo para Portugal um Parlamento com duas câmaras
lítica e à causa da Nação, incluindo-se aí as funções de deputado às Cortes Constituintes (1821-1822). Mesmo assim, não foi eleito deputado às primeiras Cortes ordinárias (1822-1823) da nova era constitucional, resultantes das primeiras eleições legislativas do país (agosto - setembro de 1822). Curiosamente, para essas Cortes foi eleito deputado substituto pelo círculo eleitoral de Arcos de Valdevez o seu irmão, Tomás Xavier de Araújo Vieira Monteiro.
Após a revolta da Vilafrancada (maio de 1823) e o consequente desmoronamento do liberalismo e revogação da Constituição de 1822, foi obrigado a exilar-se. Só regressou ao reino em 1834, após o fim da guerra civil e o restabelecimento do regime constitucional, mas não voltou à vida política, tendo retomado a atividade jurisdicional como juiz do Tribunal da Relação de Lisboa. No dia 18 de setembro de 1833, foi transferido da Relação para o Tribunal Comercial da Segunda Instância, na mesma cidade, transferência confirmada por D. Maria II, por carta de 15 de janeiro de 1835. No ano de 1850, foi mudado para o Tribunal da Relação do Porto, onde terminou a carreira de magistrado.
Viria a falecer na cidade do Porto, no ano de 1856.
A principal fonte para a sua biografia política são as suas próprias Revelações e Memórias para a história da revolução de 24 de Agosto de 1820, e de 15 de Setembro do mesmo anno, Lisboa, Rollandiana, 1846 (reeditadas com introdução de António Ventura e sob o título A Revolução de 1820 – Memórias de José Maria Xavier de Araújo, Lisboa, Caleidoscópio, 2006).
Na associação secreta do Sinédrio Xavier de Araújo foi o penúltimo membro a ingressar no Sinédrio, associação secreta que tinha sido criada na cidade do Porto, em 22 de janeiro de 1818, com o intuito de preparar a Revolução Liberal, que viria a ocorrer no dia 24 de agosto de 1820, na dita cidade. Tal como a generalidade dos outros membros, também ele integrava a maçonaria. A cada membro da organização foi atribuído um número, conforme a ordem de entrada no grupo, ficando o nº 1 reservado para um eventual presidente; mas, como tal nunca aconteceu, o primeiro lugar do ajuntamento passou a designar todo o coletivo:
A composição do Sinédrio, ou “relação das pessoas que projetaram e promoveram os sucessos do dia 24 de agosto” – assinada por Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José de Melo e Castro de Abreu, José Maria Xavier de Araújo e Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda –, foi originariamente apresentada por José Ferreira Borges às Cortes Constituintes, na sessão do dia 18 de agosto de 1821. Esta lista foi logo publicada no Diário do Governo n.º 196, de 20 de agosto de 1821, mas, inexplicavelmente, não consta da versão impressa do Diário das Cortes. Curiosamente, antes da divulgação oficial, a listagem foi impressa no periódico londrino de José Liberato Freire de Carvalho (O Campeão Portuguez ou o Amigo do Rei e do Povo, 16 de junho de 1821, p. 205), imediatamente a seguir à carta de Ferreira Borges, de 9 de abril de 1821, a qual, pela primeira vez, revelou a existência dessa sociedade secreta. De salientar que, durante muito tempo, a sociedade secreta não foi identificada como Sinédrio. Tal designação surgiu pela primeira vez, duas décadas depois da sua fundação, na Memória Biográfica de José Ferreira Borges, publicada em 1838, por Agostinho Albano da Silveira Pinto.
Na sua própria versão sobre a adesão, em janeiro de 1820, Xavier de Araújo passou pela cidade do Porto, depois de ter servido o lugar de provedor da comarca de Viana. Mediante o contacto com alguns membros do Sinédrio, veio a ser convidado para entrar na referida associação secreta. Nas suas próprias palavras, o convite justificou-se por três razões fundamentais: (i) as relações particulares de amizade que mantinha com alguns membros do grupo; (ii) as relações privilegiadas que tinha na província do Minho; (iii) decididamente, as ligações “íntimas com o coronel Barros, comandante do Regimento n.º 9 de Infantaria e da Brigada n.º 9 e 21 e 12 de Caçadores” (sediados nas praças de Viana do Castelo, Ponte de Lima e Valença do Minho). Perante tais circunstâncias, em sessão geral e solene do Sinédrio, “uma tarde do mês de junho [dia 22], na casa de Duarte Lessa”, passou a ser o membro n.º 13 da referida sociedade secreta.
Num primeiro momento, a “íntima amizade” de Xavier de Araújo com o coronel Barros revelou-se vantajosa, afiançando-lhe este: “Se se trata de alguma coisa séria, conta comigo como contigo mesmo!”. No entanto, numa reunião que os dois tiveram em Braga, na última semana de junho de 1820, na fase preparatória da primeira tentativa da insurreição, o coronel Barros recusou-se a concorrer para a Revolução, que considerava prematura, alertando Xavier de Araújo: “Meu amigo, falo-te com amizade, tu corres à tua perdição com os teus amigos!”. Foi Frei Francisco de São Luís, também ele minhoto (Ponte de Lima), que, posteriormente, conseguiu devolver o coronel Barros à causa da Revolução.
Desencadeado o movimento revolucionário na cidade do Porto, Xavier de Araújo, tal como a maior parte dos membros do Sinédrio, passou a integrar o governo provisório revolucionário, a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, desde o dia 24 de agosto de 1820 – primeiro dia da Revolução – até ao dia 1 de outubro seguinte, dia em que entrou em funções a nova Junta remodelada, na sequência da fusão com o Governo Interino de Lisboa..
Na Junta Provisional do Governo Supremo do Reino
No dia 23 de agosto de 1820, Xavier de Araújo foi chamado ao Porto por um pequeno bilhete de Ferreira Borges – que dizia: “Amanhã será despedida a bola da mão, apressa-te a partir para aqui”. Era o mote para o início da Revolução, que efetivamente se verificou no dia seguinte.
Na manhã do dia 24 de agosto, em sessão extraordinária da Câmara do Porto, Xavier de Araújo foi designado para integrar a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, como vogal pela província do Minho. Mal tinha acabado de chegar à cidade – “às 6 horas da manhã” desse dia 24 –, quando recebeu o aviso da Câmara a convocá-lo para a reunião extraordinária desse dia; de imediato, dirigiu-se à Casa da Câmara, então sita na Praça Nova (atual Praça da Liberdade), para se juntar aos colegas incógnitos do Sinédrio, aos chefes militares que haviam efetuado a sublevação militar nessa madrugada, ao Senado municipal e demais autoridades civis, eclesiásticas e militares que naquela madrugada tinham sido convocados a comparecer a título extraordinário.
A Junta Provisional então constituída entrou de imediato em funções, ocupando “uma das salas baixas da Casa da Câmara”, que foi transformada em sede ou “Paço do Governo”. O nome de Xavier de Araújo consta em toda a documentação oficial da Junta que foi emitida até ao dia 14 de setembro.
Nesse dia 14 de setembro, a maior parte da Junta Provisional do Porto empreendeu a marcha em direção a Lisboa (onde viria a entrar em 1 de outubro, com uma paragem intermédia em Coimbra – ver Jn História N.º 27), deixando uma comissão de cinco mem
bros na cidade do Porto, para zelar pela organização e administração das províncias do Norte. Xavier de Araújo ficou na Comissão residente na cidade do Porto, a exercer as funções de secretário. Também a Comissão do Porto viria a deixar a cidade em 28 de setembro para se reunir em Lisboa à restante Junta Provisional, após o triunfo da Revolução.
Na qualidade de secretário da dita Comissão, assinou, pelo menos, sete documentos oficiais:
1) 15 de setembro de 1820, “Porto e Secretaria da Comissão da Junta do Governo” – circular sobre a administração da justiça, que foi dirigida aos corregedores das comarcas do Porto e das três províncias do Norte;
2) 20 de setembro de 1820, “Porto no Paço do Governo” – aviso participando aos portuenses a deposição do antigo Governo de Lisboa e a nomeação de um Governo Interino, na sequência da revolta ocorrida na capital a 15 de setembro; 3) 25 de setembro de 1820, “Porto no Paço do Governo” – proclamação anunciando aos portuenses a próxima partida da Comissão recuada, para se ir juntar à Comissão avançada da Junta Provisional (nessa altura, localizada em Leiria), aproveitando a oportunidade para consignar “os mais expressivos agradecimentos da Comissão pelo vosso exemplaríssimo porte de moderação, de firmeza e de lealdade” e implorando: “Não cesseis de confiar na sabedoria do Governo Supremo do Reino”;
4) 25 de setembro de 1820, “Porto e Paço do Governo” – ofício determinando que o soldado Vicente José Ferreira Santos fosse empregado na praça de celeiro da Real Guarda da Polícia;
5) 27 de setembro de 1820, “Porto e Paço do Governo” – aviso dirigido a Aires Pinto de Sousa, permitindo-lhe que o ajudante-general, José Augusto Leite Pereira de Melo, fosse o portador dos seus ofícios e participações dirigidos à Junta Provisional em Lisboa;
6) 29 de setembro de 1820, “Oliveira de Azeméis” – carta dirigida ao juiz de fora da vila de Oliveira de Azeméis, agradecendo a ele e “à Câmara, nobreza e povo desta vila o lisonjeiro acolhimento com que foi recebida no seu trânsito para Lisboa (…) mencionando com particularidade o coronel reformado Domingos. Manuel Soares de Albergaria”; 7) 30 de setembro de 1820, “quartel da Comissão do Governo em Águeda”– carta dirigida ao juiz de fora de Santa Maria da Feira, agradecendo a ele e “a essa Câmara, nobreza e povo o modo lisonjeiro com que fizeram a sua espera”, à passagem da Comissão da Junta Provisional em direção a Lisboa.
Como já referido, na manhã do dia 28 de setembro, Xavier de Araújo partiu da cidade do Porto com a Comissão residente, para se juntar à Comissão avançada da Junta Provisional (que já se encontrava em Alcobaça) em direção a Lisboa. Na primeira noite (quinta-feira, 28 de setembro) pernoitaram em Oliveira de Azeméis, na segunda noite (sexta-feira, 29 de setembro) em Águeda e na terceira noite (sábado, 30 de setembro) em Coimbra. Ao longo do percurso foram acolhidos como “salvadores da pátria” e a sua passagem foi assinalada com elevada dignidade, pompa e circunstância. Foram diretamente recebidos pelas autoridades locais dos concelhos de passagem, com uma adesão popular massiva ao movimento revolucionário e aos seus líderes; foram erigidos arcos triunfais, ilustrados com quadras de gratidão e legendas evocativas; foi lançado fogo-de-artifício; repicaram os sinos; tocaram músicas; e pronunciaram-se discursos e vivas ao rei, à religião, à Junta Provisional, às Cortes e à Constituição, ao bravo Exército, etc.
No dia 1 de outubro (domingo) – dia da unificação nacional –, enquanto Xavier de Araújo e a Comissão portuense deixavam para trás a cidade de Coimbra, os membros da Comissão avançada da Junta Provisional partiam de Sacavém e entravam em Lisboa, para for
mar um único Governo a nível nacional, juntando-se aos membros do Governo Interino de Lisboa que os aguardavam no Paço da Regência, ao Rossio.
Não temos notícia exata da data da chegada da Comissão do Porto a Lisboa. Xavier de Araújo deixou escrito que “a Comissão do Governo que ficara no Porto, na ausência da Junta principal, veio reunir-se a esta no meio de outubro”. Sem embargo, logo no dia 6 de outubro todos os membros da Junta Provisional do Porto, incluindo os que tinham ficado na cidade – exceto José de Melo e Castro de Abreu –, assinaram uma carta dirigida a D. João VI, explicando os factos ocorridos desde o dia 24 de agosto até ao dia 1 de outubro e reiterando a fidelidade do movimento revolucionário à sua real pessoa e à dinastia reinante da Casa de Bragança. Portanto, a chegada a Lisboa foi anterior a 6 de outubro.
Na Junta Provisional
Preparatória das Cortes
A portaria de Alcobaça de 27 de setembro sagrou a unificação do novo poder político nacional, que, como ficou dito, viria a ser formalizada no dia 1 de outubro, com a entrada no Paço do Governo em Lisboa. Da união da Junta Provisional do Porto com o Governo Interino de Lisboa (instituído na sequência da insurreição de 15 de setembro na capital) resultou a remodelação
pensamento político de Jean-Denis, conde de Lanjuinais, um jurista e político liberal moderado francês, autor de Constitutions de la Nation française (1819). Embora sejam ignorados os pormenores da sua convocação e funcionamento, o tema das duas câmaras foi debatido no seio de uma pequena subcomissão de três membros – composta por Joaquim Anes de Carvalho, Bento Pereira do Carmo e José Maria Xavier de Araújo –, mas a proposta de Xavier de Araújo foi recusada, porque “o tempo era oposto a isso e muito grande a exaltação pública”.
Como se vai ver, embora não tivesse insistido nessa ideia quanto às Cortes Constituintes, Xavier de Araújo iria reiterar a proposta na discussão da Constituição para que as futuras Cortes ordinárias se organizassem em duas câmaras.
Concluídos os trabalhos preparatória para a convocação das Cortes, as duas juntas reuniram em sessão conjunta (31 de outubro de 1820?) para decidirem: (i) o modo de eleição dos deputados às Cortes, que resultou nas Instruções eleitorais de 31 de outubro de 1820; (ii) o local de reunião das Cortes.
Quanto à primeira questão, apesar de vários pareceres da consulta pública acima referida terem defendido a convocação das Cortes à antiga maneira – com representação separada dos três “estados” do Reino – ou numa variante dela, o poder revolucionário haveria de optar por uma representação unitária da Nação, numa única câmara, seguindo o exemplo das Cortes de Cádis (1810-1812). Quanto ao sistema eleitoral, optou-se pela eleição indireta dos deputados, em dois graus (municípios e comarcas). Xavier de Araújo acompanhou estas decisões.
Já quanto à segunda questão, ou seja, a sede das Cortes – que foi fixada em Lisboa –, Xavier de Araújo ficou isolado no escrutínio, sentindo-se traído por alguns dos seus colegas da Junta Preparatória que lhe tinham falado “para eu me encarregar de propor o local delas em Coimbra”.
A ideia “aqueceu-lhe a imaginação”, recordando-lhe as sucessivas vezes em que as antigas Cortes tinham reunido na cidade do Mondego e, sobretudo, a magna reunião de 1385, que tinha tirado o trono aos filhos de Inês de Castro para o dar a D. João I. Por isso, aceitou a
comissão de bom grado e, “quando na Junta me chegou a vez de votar, propus resolutamente que o local das Cortes fosse em Coimbra, motivando o meu voto no perigo de serem as Cortes influídas por sociedades secretas e arrastadas para medidas extremas”.
A sua audácia foi repelida por Fernandes Tomás – “que me apostrofou com alguma dureza” –, o que terá intimidado os colegas da Junta Preparatória que tinham falado a Xavier de Araújo sobre Coimbra, “de sorte que fui só na votação”. Para sede das Cortes foi escolhida a sala da livraria do Convento das Necessidades, em Lisboa. O próprio reconheceu mais tarde o erro cometido – “notável erro foi este meu! E falta de previdência política! Toda a força da Revolução estava em Lisboa, tirá-la daqui era entregá-la desarmada aos seus inimigos!”.
Na sessão das Cortes de 30 de abril de 1821, Xavier de Araújo integrou a relação de 16 pessoas que, tendo sido membros da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino e da Junta Preparatória das Cortes, cederam o ordenado, que naquela qualidade lhes havia sido atribuído, para as despesas do Estado.
Nas Cortes Constituintes
tes foi bastante apagada” (I. Cluny, in Dicionário do Vintismo e do Primeiro Cartismo, 2002, p. 120). No entanto, o seu nome avulta no debate e na votação de um dos temas mais controversos e de maior alcance da Constituição.
Na verdade, em 23 de fevereiro de 1821 – depois de, na sessão do dia anterior, o deputado António Pinheiro de Azevedo e Silva ter apresentado uma proposta de divisão das futuras Cortes ordinárias em duas câmaras, sendo uma delas o Conselho de Estado –, Xavier de Araújo apresentou às Cortes Constituintes uma proposta inovadora de parlamento bicamaral e sobre o poder legislativo, um tema que acabou por marcar indelevelmente os dois séculos seguintes da história constitucional do país, com alguma repercussão até aos dias de hoje. Que nos conste, esta proposta de Xavier de Araújo nunca terá sido devidamente analisada e valorizada.
O projeto versava sobre a organização do corpo legislativo, para se determinar se devia ser composto de uma ou de duas câmaras, mas foi mais longe e, em apenso, constam os ideais de uma espécie de poder moderador do rei, sobretudo, na relação entre o executivo e o legislativo. Assentou as suas teses nas “doutrinas dos homens de Estado das outras nações, daqueles homens que, havendo meditado profundamente nas bases sólidas dos governos, têm deixado de parte os sistemas de uma metafísica tenebrosa e quimérica”, os quais se absteve de identificar, mas um dos seus principais apoios doutrinários terá sido o teórico e político francês Lanjuinais (que citou nas suas Memórias). A nível prático, invocou o exemplo paradigmático do parlamento britânico e o papel preponderante da Câmara dos Lordes, sobretudo após a Gloriosa Revolução de 1688; noutra perspetiva, também evocou o bicamaralismo originário dos Estados Unidos da América.
Começando por admitir que em 1820 tinha sido necessário e preferível convocar umas Cortes Constituintes unitárias, defendeu, porém, que as futuras Cortes ordinárias deviam ser bicamarais – criando-se uma segunda câmara, que designou por Senado (designação que deriva da câmara alta nos EUA e foi mais tarde adotada na nossa Constituição de 1838). Ciente das circunstâncias políticas da época, enveredou por uma tese mais pragmática e adequada à realidade do país, porque “o metafísico, viajando sobre um mapa mundi, corre tudo sem dificuldade, não se embaraça com montes, rios, desertos ou abismos, mas quando se quer realizar a sua viagem, quando se pretende chegar ao seu termo, então é necessário não esquecer que é sobre a terra que se viaja e não em um mundo ideal”.
Xavier de Araújo começou por alertar para a fragilidade de uma separação estanque entre o poder legislativo e o poder executivo. Tal divisão, firmada por barreiras inamovíveis e passivas, não seria suficiente, “porque leis
promulgadas em um tempo serão esquecidas em outro e é necessário opor a uma força, sempre ativa, outra igualmente em atividade”. Por outro lado, esta oposição constante entre o legislativo e o executivo levaria a um “estado de combate perpétuo” entre os dois poderes, o qual seria pernicioso para o país.
Reportando estas conclusões ao poder legislativo, também não seria suficiente uma divisão em duas câmaras, pelo que defendeu uma divisão tripartida – rei, câmara dos representantes da Nação e Senado. A diferença não estava somente nas duas câmaras legislativas, mas também na cotitularidade do poder legislativo entre as câmaras e o rei (como se iria verificar na Carta Constitucional de 1826). No seu pensamento, “um poder único absorveria tudo; dois se combateriam até que um destruísse o outro; mas três se conservarão em equilíbrio, se forem combinados do modo que, quando lutarem dois, o terceiro, interessado igualmente na mantença de um e outro, se junte àquele que for oprimido contra o que oprime e estabeleça assim a concórdia entre ambos”.
Uma segunda câmara alta funcionaria como um freio aos ímpetos democráticos mais precipitados e inflamados da primeira câmara. O simples facto de existir um controlo das deliberações tomadas na primeira câmara, despojada do monopólio da representação política e do poder legislativo, já seria suficiente para fazer com que esta última tivesse “muita atenção nas suas decisões”, evitando assim o risco perpétuo de ser “arrastada pela eloquência, seduzida por sofismas, inflamada pelas paixões dos outros, por comoções repentinas que se lhe fazem comunicar e contra as quais se não atreverá a resistir”.
No entendimento de Xavier de Araújo, independentemente da tradição da representação nobiliárquica nas antigas Cortes portuguesas, a existência de duas câmaras legislativas era indispensável ao equilíbrio dos poderes. De facto, para fundamentar a opção bicamaral, Xavier de Araújo chamou à colação o exemplo dos Estado Unidos da América, que, “apesar de ser um Mundo Novo, onde não havia títulos hereditários e só famílias de proprietários agricultores, costumes simples e poucas necessidades, não foi aí possível estabelecer uma câmara única; os seus publicistas demonstraram que não havia bom governo, não podia haver Constituição sólida sem a balança dos poderes”.
Na realidade, porém, a causa fundamental do bicamaralismo norte-americano está no facto de os Estados Unidos da América serem um Estado federal ou uma federação de Estados, o que implica dois níveis de poder político (um para a federação e outro para as unidades federadas). Ainda hoje, o parlamento de qualquer Estado federal pressupõe sempre a existência de duas câmaras: uma câmara representativa dos cidadãos da União e a outra câmara representativa das unidades federadas, que assim intervêm na vida política da União. Diferente é a origem do bicamaralismo britânico, que está arreigado na tradicional divisão em classes sociais oriunda da Idade Média, com uma câmara representativa das classes altas (clero e nobreza – Câmara dos Lordes) e outra câmara representativa do povo comum (Câmara dos Comuns).
Xavier de Araújo fez questão de se distanciar da solução tradicional (à maneira britânica), por entender que isso seria “perpetuar a separação das ordens e este espírito de corporação, que é o maior inimigo do espírito público”. Em alternativa, propôs uma segunda câmara composta de representantes de todas as classes e não exclusivamente da alta-nobreza e do alto-clero. Ao rei competia designar os membros desta câmara, mas mediante as propostas que lhe fossem apresentadas pela primeira câmara de legislatura ou pelos colégios eleitorais (a escolher pela primeira câmara?): de qualquer forma, afastou a hipótese de uma escolha da exclusiva competência do rei (como viria a ser o caso na Carta Constitucional de 1826), “porque seria confiar-lhe demasiada autoridade”. Estabeleceu limites para os elegíveis para senadores, impondo que fossem cidadãos maiores de 35 anos, proprietários, oriundos “de todas as classes”, e que se destacassem pelos “seus talentos, os seus serviços e virtudes”. O Senado seria formado por um máximo de sessenta representantes, com um mandato de dez anos. Em suma, era uma segunda câmara sem natureza eletiva, mais estável e mais conservadora do que a câmara baixa.
A esta segunda câmara competiria não somente a cotitularidade da função legislativa, mas também a função de “julgar publicamente os agentes superiores do poder executivo”, que fossem acusados de abusos, contrários à lei, cometidos no exercício das suas funções. Não se tratava de verdadeira responsabilidade política do governo perante o parlamento – condição fundamental dos futuros sistemas parlamentaristas –, mas sim de eventual acusação de tipo penal por infrações cometidas – uma espécie de impeachment, ou destituição levada a cabo pelo parlamento em caso de infração legal ou constitucional grave (uma instituição de origem britânica, acolhida pela Constituição dos EUA).
Findo o debate parlamentar, foi posto a votação se o poder legislativo devia residir em uma ou em duas câmaras, tendo vencido a proposta de uma única câmara, por mais de dois terços dos votos, com cinquenta e nove (59) a favor e vinte e seis (26) votos contra. Mas o facto de quase 30% da assembleia constituinte de 1821 ter votado a favor das duas câmaras é indiciário de uma considerável base de apoio a um parlamentarismo moderado, posteriormente sagrado na Carta Constitucional de 1826 e que viria a imperar durante o período da monarquia constitucional, até 1910.
Antes da Constituição de 1822, o sistema político bicamaral já tinha sido defendido, sem qualquer sucesso, na “Súplica constitucional” de 1808, durante a ocupação francesa; e num projeto de Carta Constitucional que o conde de Palmela apresentou a D. João VI, do outro lado do oceano, no Rio de Janeiro, no dia 21 de fevereiro de 1821 (praticamente em simultâneo à proposta de Xavier de Araújo e ao debate suscitado nas Cortes de Lisboa). Depois do efémero “triénio vintista”, a solução bicamaral viria a ser proposta logo no projeto da Carta de Lei Fundamental de 1823, antes de ser acolhida na Carta Constitucional de 1826.
Conclusão
Xavier de Araújo surge ligado à origem do movimento revolucionário de 24 de agosto de 1820 e manteve-se politicamente ativo durante todo o trié
nio liberal (1820-1823), compartilhando depois o exílio com grande parte dos protagonistas vintistas. No juízo de um seu contemporâneo, Roussado Gorjão, foi uma individualidade que “denodadamente arriscou a sua vida para debelar o despotismo que tiranizava a sua pátria e lhe dar em seu lugar a liberdade, provas bastantes e seguras lhe tem dado de que a deseja livre e não escrava”. No entanto, de entre os membros oriundos do Sinédrio que tiveram intervenção política relevante, em particular nas Cortes Constituintes, Xavier de Araújo divergiu dos líderes vintistas num dos temas mais sensíveis para a nova ordem constitucional, ou seja, o modelo de representação política e de equilíbrio dos poderes.
Com efeito, para a história constitucional de Portugal, importa sublinhar a sua ousadia no seio das fileiras vintistas, ao propor um constitucionalismo moderado, de clara influência doutrinária francesa (Benjamin Constant e Lanjuinais), sustentado, sobretudo, num sistema parlamentar bicamaral e no “poder moderador” do monarca. Sem embargo de ter sido enjeitada nessa altura, a tese de Xavier de Araújo suportava um constitucionalismo mais conservador, que, ao contrário do constitucionalismo democrático vintista, pudesse vingar e ultrapassar o “teste do tempo”.
Embora em moldes bastante diferentes dos propostos por Xavier de Araújo, o bicamaralismo parlamentar acabou por ser sagrado (por influência direta da Carta Constitucional brasileira de 1824, por sua vez inspirada na Carta Constitucional francesa de 1814) no texto da Carta Constitucional de 1826 – o texto constitucional mais duradouro da história constitucional portuguesa, com 72 anos de vigência, repartidos por três períodos intercalados (1826-1828; 1834-1836; e 1842-1910) – e manteve-se na Constituição de 1838, na Constituição de 1911 e na Constituição do Estado Novo de 1933, sendo abolido somente pela Constituição atual de 1976, que retomou o exclusivo da câmara de representação popular da Constituição de 1822.
Da proposta do nosso biografado ressalta ainda a ideia de um “poder moderador” do rei, que também viria a ser consignado no texto da Carta