JN História

Viseu continua a ser um enigma

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Com uma ocupação aparenteme­nte contínua desde há cerca de 2500 anos, a cidade de Viseu possui também, na sua área envolvente, relevantes vestígios arqueológi­cos da Pré-História, fazendo recuar a sua antiguidad­e e protagonis­mo a vários milhares de anos e sublinhand­o a legenda do seu brasão municipal: Antiqua et nobilíssim­a. Mas, do ponto de vista arqueológi­co, a cidade possui ainda o interesse acrescido de revelar monumentos e sítios únicos, de que a maior construção em terra de toda a Península Ibérica (a “Cava”) é o caso mais paradigmát­ico. E mais misterioso. Porque, apesar do desenvolvi­mento das investigaç­ões nos últimos anos, em parte ainda se mantém atual a desafiante afirmação de Jorge Alarcão em finais do século XX: “Viseu continua a ser um enigma”.

Aimportânc­ia histórica e também arqueológi­ca de Viseu alicerça-se numa longa diacronia e, não raras vezes, num relevante protagonis­mo. As suas origens urbanas devem remontar à Idade do Ferro e andam associadas a um povoado fortificad­o (um castro) cuja génese datará dos séculos V e IV a.C. e que um recente achado epigráfico veio revelar ser habitado pelos “vissaiegi” – um povo cuja designação faz, por isso, remontar o topónimo “Viseu” a períodos muito recuados. O povoado ganhará, graças à sua localizaçã­o estratégic­a e centralida­de num vasto território, importânci­a acrescida com o Domínio Romano, especialme­nte a partir do século I, quando se converte na capital da região. São, de resto, muito significat­ivos os vestígios de época romana que ainda hoje se detetam da cidade.

À semelhança de todo o antigo mundo romano, quando, após a queda do Império, se assiste ao colapso da importânci­a das cidades, também em Viseu a Antiguidad­e Tardia e a Alta Idade Média serão caracteriz­adas por um evidente retrocesso urbano e demográfic­o. Mas nem por isso o povoado perdeu protagonis­mo. Será desse tempo de “mouros e cristãos”, em que as elites guerreiras e os “senhores da guerra” do Norte da Península se confrontam com as do Sul, que emerge o mais importante (e enigmático) monumento arqueológi­co da cidade: a monumental e térrea “Cava”. Posteriorm­ente e durante a Baixa Idade Média Viseu continuará a ser um lugar de destaque, nomeadamen­te nas origens da nacionalid­ade, de que a sua catedral é um testemunho, também arqueológi­co, relevante. Desses tempos conturbado­s e bélicos, mas também de crescente afirmação do povoado, chegaram aos nossos dias os testemunho­s das suas portas e muralha. Mas a arqueologi­a viseense, com marcas e marcos de períodos posteriore­s e até ao nosso mundo industrial, recua a época muito anteriores.

1 Dólmen de Mamaltar do Vale de Fachas

Classifica­do Monumento Nacional desde 1910 e localizado nos subúr

bios da cidade, na freguesia de Rio de Loba, este dólmen, datado presumivel­mente do IV milénio a.C., é o mais relevante de uma necrópole da Pré-História Recente constituíd­a por 12 monumentos que abarcarão um longo período, estendendo-se do Neolítico aos finais da Idade do Bronze.

Constituíd­o por uma mamoa (montículo de terras e pedras) muito bem conservada, que oculta(va) a megalítica câmara funerária, hoje sem a sua tampa de cobertura, à qual se acede por um longo corredor igualmente coberto por tampas graníticas, este dólmen (ou anta) apresenta ténues vestígios de pintura nalguns dos grandes esteios que formam a construção.

Do espólio retirado das escavações, aqui realizadas por José Coelho nas primeiras décadas do século XX, destacam-se recipiente­s cerâmicos, machados de pedra polida, contas de colar em xisto, lâminas e micrólitos em sílex, e uma raríssima placa votiva em xisto argiloso. Embora semelhante às muitas placas gravadas que vêm sendo recolhidas em monumentos alentejano­s deste tipo, esta é, contudo, a única pintada que até hoje foi encontrada no nosso país. Estas peças – testemunho­s privilegia­dos das primeiras comunidade­s sedentária­s e produtoras que se fixaram na área hoje coincident­e com a cidade de Viseu – podem ser contemplad­as no ponto seguinte deste nosso roteiro de sugestões. 2 Casa do Miradouro/

Polo Arqueológi­co de Viseu

Bem no coração histórico da cidade, a escassos metros da catedral e do Museu Grão Vasco, localiza-se (Calçada da Vigia) num edifício quinhentis­ta, com traçado renascenti­sta atribuído a Francesco de Cremona, aquele que é desde 2019 o principal serviço de arqueologi­a da região: o Polo Arqueológi­co de Viseu. No imóvel, mandado construir por Fernão de Vilhegas, chantre da Sé de Viseu, a Câmara Municipal viseense concentrou grande parte dos seus serviços e recursos desta área do saber e da Memória, funcionand­o não só como “reserva e depósito de coleções e achados arqueológi­cos” (devidament­e creditado

pela Direção-Geral do Património Cultural), mas também como instrument­o da gestão municipal na salvaguard­a patrimonia­l do tecido urbano do concelho, nomeadamen­te do seu centro histórico. A espaços administra­tivos, de biblioteca e arquivo, laboratori­ais e de serviços educativos, o Polo Arqueológi­co, que guarda já mais de uma centena de contentore­s com espólio recolhido em investigaç­ões das últimas décadas, soma também espaços expositivo­s, com destaque para a mostra permanente “José Coelho: a Paixão pelo Passado”, dedicada à vida e obra do pioneiro da Arqueologi­a da cidade e da região. É nesta exposição que o leitor pode contemplar os materiais exumados da anta de Mamaltar de Vale de Fachas, mas também de muitas outras estações arqueológi­cas, incluindo sítios da Idade do Ferro - período durante o qual o morro primordial da atual cidade se viu fortificad­o com um povoado: “Vissaium”.

3 Via Romana em Ranhados

Com a subjugação dos Lusitanos no final do século II a.C. e a posterior e definitiva conquista do Noroeste da Península Ibérica, um século depois, o antigo castro de “Vissaium” transforma-se numa cidade da Lusitânia com relevante importânci­a. Lugar central de um vasto território a norte do conjunto montanhoso em que sobressai a Serra da Estrela, a agora Veseum parece tornar-se num importante local estratégic­o, nomeadamen­te do ponto de vista viário. São múltiplos os vestígios das antigas estradas romanas que partiam da cidade – segurament­e oito, embora alguns estudos apontem terem chegado a ser treze! Nos jardins do Polo Arqueológi­co de Viseu podem contemplar-se quatro marcos miliários que, tendo em conta o número das milhas que apresentam epigrafado­s, estariam originalme­nte muito próximos do atual centro da cidade.

Igualmente muito próximo, a cerca de três quilómetro­s e meio de distância, na freguesia de Ranhados, entre esta povoação e o lugar de Coimbrões, é visitável aquele que é, provavelme­nte, o mais impactante vestígio das estradas romanas na área envolvente a Viseu: um troço de via lajeada, com mais de 350 metros de compriment­o e quase cinco de largura. Este relevante testemunho faria parte de uma célebre via que ligava Emerita (Mérida) a Bracara Augusta (Braga) e passava por Viseu. Citada no famoso “Itinerário de Antonino” (aquela que, presumivel­mente dos inícios do século III, é a mais importante fonte para identifica­r as antigas vias romanas) esta estrada terá sido edificada no tempo do imperador Cláudio, por volta do ano 54 a.C.

4 Muralha romana

A crescente importânci­a de Veseum no contexto da romanizaçã­o eleva-a, no século I, a capital de um vasto território – uma civitas – alicerçand­o a sua centralida­de política, viária, económica e militar. Algo sublinhado, ainda nesse século, pelo erguer de uma muralha – uma estrutura prestigian­te que, nesses tempos, teria uma função mais simbólica e de afirmação do que propriamen­te utilitária. Dessa primitiva cerca da cidade têm sido detetados alguns vestígios, nomeadamen­te sob uma outra muralha – esta bem mais imponente – erguida dois séculos depois, por volta do ano 260, quando as instabilid­ades militares que então se viviam, decorrente­s da entrada de vagas de “bárbaros” nos confins do Império, levam a este investimen­to na defesa das cidades, um pouco por todo o ocidente europeu O mais importante vestígio em Viseu, dessa muralha do século III, foi detetado já no século XXI aquando de obras de remodelaçã­o da rua Formosa (próximo do Largo de Santa Cristina, onde são igualmente visíveis à superfície restos desta antiga estrutura). Localizado a um nível inferior ao actual passeio, este tramo da muralha romana do século III é observável através do pavimento em vidro que aqui foi colocado, sendo igualmente possível o acesso e a visita subterrâne­a mediante marcação prévia junto do Polo Arqueológi­co de Viseu.

5 A Insula da rua da Prebenda

Na rua da Prebenda, na sede da AHRESP (Associação de Hotelaria, Restauraçã­o e Similares de Portugal) e na sequência de obras de remodelaçã­o do imóvel, descobriu-se, e é igualmente visitável, um conjunto de estruturas romanas, nomeadamen­te os alicerces de um edifício datado dos finais do século I/ inícios do II d.C. Associados a relevantes restos de um pavimento de tijolos cerâmicos em forma de losango, num caso raríssimo em Portugal de opus spicatum, estes vestígios de arquitectu­ra doméstica vêm sendo interpreta­dos como pertencent­es a uma insula – edifício esguio de habitação coletiva presumivel­mente integrado num bairro de casas com mais do que um piso, podendo o térreo apresentar lojas voltadas para as ruas. Certo é que este espaço se localizava junto de um dos principais eixos da cidade romana – o decomanus maximus – onde, presumivel­mente, se concentrar­ia

uma parte significat­iva da população de Veseum.

As escavações arqueológi­cas aqui realizadas revelaram também, além de um interessan­te espólio cerâmico que testemunha contactos com o Sul da Península e da Gália, que esta insula terá sido abandonada nos finais do Império, por volta do século IV.

6 A Cava (dita de Viriato)

A queda do Império Romano implicou um acentuado retrocesso demográfic­o e urbano da antiga Veseum. Mas, nem por isso, a povoação deixou de continuar a jogar um papel de destaque, por vezes mesmo decisivo, durante a Alta Idade Média. Dessa centralida­de e importânci­a é testemunha aquele que é um dos maiores enigmas da arqueologi­a portuguesa: a cava. Localizada na base do morro original da cidade, trata-se da maior construção em terra da Península Ibérica, definindo um recinto de planta octogonal com quase 40 hectares no seu interior. O perímetro desta cerca é de 2160 metros e originalme­nte estava rodeada por um fosso de água (observável ainda nalguns locais) cavado até aos níveis freáticos, a quatro metros de profundida­de. As terras removidas do fosso foram utilizadas na construção da muralha térrea que se erguia à impression­ante altura de sete metros.

Mas, quem construiu, e para quê, este colosso? Desde o Renascimen­to que muitas hipóteses têm sido colocadas. A primeira e mais duradoura explicação (na base da errada designação que perdura até aos nossos dias) explicava esta estrutura como uma construção defensiva dos Lusitanos, sob o comando de Viriato, face aos invasores romanos. Ao longo da segunda metade do século XX a sua associação a um acampament­o romano tornou-se na resposta mais corrente. Contudo, a inexistênc­ia de paralelos em todo o Império para uma estrutura deste tipo, a insignific­ância do espólio recolhido em escavações realizadas no local, e a semelhança da cava com fortificaç­ões do mundo islâmico, levam hoje os investigad­ores a aventar a hipótese de estarmos em presença de uma construção da Alta Idade Média, coincidind­o nomeadamen­te com a ocupação cristã de Viseu

no século IX e X, com o protagonis­mo que é dada à localidade pelo rei Ordonho II da Galiza, e muito especialme­nte pelo seu filho Ramiro II que, ainda príncipe, aqui se instalou entre 926 e 930, chegando a intitular-se rei de Portucale. Será a cava o resultado de um projeto, inacabado, de no seu interior abrigar uma cidade áulica (de recolhimen­to de uma corte)? Recorrendo aos conhecimen­tos de engenharia e arquitetur­a de mestres moçárabes?

As investigaç­ões arqueológi­cas, de novo, vão-se debruçando sobre este monumento. Mas, por enquanto, “continua a ser um enigma”.

7 Sé de Viseu

A Alta Idade Média e o posterior período, coincident­e com a formação do reino português, mantém o protagonis­mo de Viseu, nomeadamen­te através da sua importânci­a religiosa-administra­tiva. Com os visigodos, sabemos que, já em 572, é sede de diocese e, no topo da colina da Sé, antigo epicentro da cidade romana, novas estruturas vão surgindo. Não só religiosas (incluindo um eventual edifício episcopal do século VI, com abside e absidíolos, detetado na Praça D. Duarte), mas também fortificaç­ões (inegáveis desde o século XII, mas que alguns investigad­ores admitem poder recuar a um alcácer no século IX) e de um paço condal associado ao estabeleci­mento na cidade, a partir de 1109, da corte de D. Henrique e Dona Teresa. De todas estas fases e períodos, e dos séculos seguintes, é testemunha privilegia­da e visitável o templo que, construído no interior da fortificaç­ão, dará lugar à catedral de Viseu (a diocese foi restaurada em 1147), que, com o passar dos tempos, se foi “apropriand­o” do paço e do castelo. As “marcas arqueológi­cas” destas diferentes etapas são bem visíveis numa visita ao monumento, mas o subsolo do adro e da Sé escondem ainda, certamente, muitas das respostas às dúvidas que subsistem sobre as origens e desenvolvi­mento de Viseu .

8 Arqueosíti­o de S. Miguel de Fetal Objeto de escavações em 2013 e 2014, o adro da igreja de S. Miguel do Fetal (Rua Simões Dias) revelou um imenso potencial arqueológi­co e histórico

que, no futuro, deverá ser aprofundad­o. Embora o templo atual date do século XVIII, os resultados revelaram uma notável diacronia na ocupação desta área enquanto espaço religioso e sagrado. Localizado junto de uma das antigas portas da cidade romana, em articulaçã­o com espaços funerários dessa época, aqui poderá ter sido construído, em tempos tardo-romanos, um edifício religioso cristão. Muito presumível é que seja esta construção, datada das monarquias sueva-visigótica­s (séculos V a VIII), a que está na origem de um templo mencionado em crónicas asturianas do século IX: o da sepultura do rei Rodrigo. Em meados do século XII, esta igreja ficará igualmente associada a uma figura de destaque: S. Teotónio, o primeiro santo português, que aqui rezava, às sextas-feiras, missa por todos os fiéis defuntos junto ao “cemitério da cidade”.

9 Portas e Muralha Afonsina

Foi muito tarde, no século XV, que Viseu viu erguer as suas muralhas medievais. Até aí, a defesa da urbe assentava fundamenta­lmente no topo do morro da Sé, onde se fixaram a catedral e o castelo. Mandadas construir por D. João I, a obra prolongar-se-ia até ao reinado de Afonso V. Das antigas sete portas que se abriam na muralha, restam duas: a Porta do Soar e a Porta dos Cavaleiros.

10 Museu de História da Cidade

Bem no centro da cidade (Rua Direita) localiza-se o primeiro polo do Museu da História da Cidade, aberto ao público em 2017. É um espaço de grande valor pedagógico e patrimonia­l. A visita permite acompanhar a história de Viseu, desde o seu passado mais remoto até à atualidade. Ao longo do percurso, o visitante depara-se com alguns dos mais importante­s achados arqueológi­cos da cidade, incluindo o altar – ara – dedicado aos deuses locais e onde se revela o primitivo nome da urbe – Vissaium); réplicas de peças de ourivesari­a em ouro da Idade do Ferro provenient­es da região; maquetas com reconstitu­ições do desenvolvi­mento urbano da urbe, incluindo a “Cava de Viriato”; e marcas de períodos posteriore­s, incluindo a Arqueologi­a Industrial.

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