Dos pés na água às mãos na massa
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Se Tondela foi, nas circunstâncias de 1939, a pátria de Cláudio Torres, Mértola construiu-se, do final dos anos 70 para cá, como a definitiva identidade territorial do arqueólogo. Para lá chegar – a Mértola, à história e à arqueologia –, deu muitas voltas. Mesmo antes de se fazer ao mundo para escapar a uma guerra que o repugnava, chegando a Marrocos num barquinho que metia água, a espantosamente rica história de vida deste homem fez-se de mil e uma inflexões até ao momento em que, junto ao Guadiana, decidiu pôr os pés na terra e meter as mãos na massa, descobrindo e dando a descobrir uma forma de fazer história que o satisfez pela permanente insatisfação. Filho de Flausino Torres (1906-1974), um historiador que foi impedido de o ser, por nele ter falado mais alto o imperativo de se opor à ditadura, Cláudio criou a sua própria consciência política e fez-se militante comunista na juventude, sem saber que o pai o era. No Porto, para onde foi como estudante de Belas Artes, conheceu a companheira de toda a vida, a linguista e escritora Manuela Barros Ferreira, e aí conheceram ambos os calabouços da PIDE. E daí partiram para o exílio. Em Marrocos foram desenhadores de urbanismo, na Roménia foram locutores da emissão em língua portuguesa da Rádio Bucareste. Às duas filhas deram nomes originários dos países onde nasceram: Nádia (Marrocos) e Rossana (Roménia). A passagem pelo Leste europeu, em plena Guerra Fria, foi determinante para a vida de Cláudio Torres, sob vários aspetos. Sem abdicar dos seus princípios e ideias políticas, desvinculou-se do PCP após o esmagamento da “Primavera de Praga” pela União Soviética (1968). Depois, foi em Bucareste que decidiu estudar História, vindo a doutorar-se em Paris, onde estava quando se deu o 25 de Abril, daí tendo regressado a Portugal a bordo do mesmo avião em que viajou Álvaro Cunhal. Em outubro de 1974, por votação de braço no ar, ao jeito do momento, tornou-se professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tal como António Borges Coelho, com quem desenvolveu amizade e cumplicidade. Foi com ele que, em 1976, foi pela primeira vez a Mértola, onde criou o Campo Arqueológico e onde veio a fixar-se. Até hoje, embora a mulher só se tenha definitivamente fixado na vila depois da aposentação, também da Universidade de Lisboa. Em Mértola, Cláudio Torres foi uma verdadeira força transformadora, pois nunca deixou de associar o importantíssimo trabalho científico à criação e ao reforço de dinâmicas locais e regionais de desenvolvimento. Esse trabalho ímpar tem justificado múltiplas distinções: entre outras, note-se o Prémio Pessoa, em 1991, a grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique (1993), o doutoramento honoris causa pela Universidade de Évora (2001) ou, já em 2020, a medalha de mérito cultural atribuída pelo Ministério da Cultura.