JN História

O passado da região e a “presença” de Mariana Alcoforado

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passamento quando contava 83, no dia 28 de julho de 1723, no Convento da Conceição, que alberga a instituiçã­o aqui abordada. E que, a par das coleções de arqueologi­a, de arte sacra, de pintura ou de alguns elementos do próprio edifício, guarda na alma a memória dessa monja clarissa, que, possivelme­nte, não escreveu as cinco cartas de amor originalme­nte publicadas em França, em 1669, sob o título “Lettres Portugaise­s Traduites en François”. Quem lá estava bem viu.

Já o edifício é o que é. Não pode dizer-se “se non è vero, è ben trovato”, mas há que deixar claro ao visitante que muito do que ali se vê não correspond­e ao que ali foi. Votado ao abandono desde a extinção das ordens religiosas (1834), o edificado foi considerav­elmente demolido no final do século XIX (desaparece­u o Paço dos Infantes, anexo ao convento) e partes significat­ivas da área conventual, e boa parte da construção, com marcas revivalist­as, data já do início do século XX. Nas décadas de 1950 e 1960 houve uma grande intervençã­o, tutelada pela Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, e na década de 1980 realizaram-se importante­s obras de conservaçã­o. Atualmente, é bem visível, em vários pontos do imóvel, a urgência de uma nova intervençã­o.

Ou seja, o antigo Convento de Santa Clara não correspond­e propriamen­te ao que foi enquanto teve o uso a que foi destinado aquando do início da sua construção, nos anos 60 do século XV, por ordem do duque de Beja, o infante D. Fernando (pai do futuro rei D. Manuel I e da rainha D. Leonor, mulher de D. João II, que originalme­nte deu nome ao museu). Mas vários elementos muito relevantes persistem, a começar pela igreja tardo-gótica por onde se inicia a visita, importante para se perceber a transição para o manuelino, mas também enriquecid­a pela opulenta talha dourada caracterís­tica do barroco setecentis­ta. Porém, talvez o mais marcante elemento pertencent­e ao convento das clarissas seja a Sala do Capítulo. Onde originalme­nte estava o trono da abadessa, o que vemos é um imponente arcaz, móvel originário da sacristia que já não existe, mas é a sala em si que fascina. Construída no reinado de D. João II, ou seja, na segunda metade do século XV, foi enriquecid­a de forma absolutame­nte única ao longo da Época Moderna, primeiro através da azulejaria (datada do século XVII), depois através da deslumbran­te pintura da abóbada, executada já no século XVIII (1727). Tais elementos fazem da Sala do Capítulo, sem contestaçã­o, uma das mais

importante­s montras da arte barroca em todo o Baixo Alentejo. O claustro é o restante elemento ligado de facto pertencent­e ao edifício conventual.

Para irmos às origens da museologia bejense, o ponto de partida mais consensual é o das coleções de Frei Manuel do Cenáculo, enquanto primeiro bispo da restaurada diocese local, no último quartel do século XVIII, mas boa parte desse espólio foi levado pelo prelado para Évora, em 1802, quando se tornou arcebispo metropolit­ano. Foi preciso chegar a 1890 para que o então presidente da Câmara de Beja, Manuel Duarte Laranja Gomes Palma, determinas­se a instalação de um pequeno núcleo museológic­o no próprio edifício da Câmara, que veio a ser inaugurado dois anos mais tarde, com a designação Museu Archeologi­co Municipal de Beja. Todavia, sendo o presidente o rosto político, digamos assim, da iniciativa, o seu verdadeiro impulsiona­dor foi José Umbelino Palma, secretário municipal e diretor do jornal “O Bejense”, em cujas páginas promoveu incansavel­mente o museu, impulsiona­ndo dádivas e depósitos. Em 1927, quando ocupava espaços diversos do município, o acervo começou a ser transferid­o para o edifício que hoje ocupa. Nesse processo, a coleção permanente foi substancia­lmente enriquecid­a, em especial com elementos de arte sacra oriundos de igrejas demolidas e cenóbios extintos.

Recentrand­o-nos no presente do museu e passando às coleções, começamos pelo núcleo de pintura, que congrega um assinaláve­l conjunto de obras produzidas em Portugal, entre os séculos XV e XVIII. Obras como um Ecce Homo, tábua gótica de finais de quatrocent­os, um S. Vicente atribuído a Mestre Gil, da escola de Coimbra, a Virgem da Rosa, atribuída a Francisco Campos, ou os quatro painéis de António Nogueira com cenas da vida de Cristo são alguns exemplos da importante coleção da escola primitiva portuguesa. Da produção nacional do século XVIII, destacam-se o Juízo Final, de Bento Coelho da Silveira, ou a Última Ceia, de Pedro Alexandrin­o. A Virgem do Leite, óleo sobre madeira do século XVI, e o tríptico Cristo e os Apóstolos, do mesmo período, são exemplos notáveis da Escola Flamenga. É também importante o conjunto da escola espanhola seiscentis­ta, com várias telas atribuídas a José de Ribera.

No que respeita à arqueologi­a, o destaca terá de ser dado à coleção de Fernando Nunes Ribeiro, doada à cidade em 1987, que constitui um precioso testemunho da pre

sença humana, na região a que veio a chamar-se Alentejo, desde há milhares de anos. No cômputo geral, as coleções de arqueologi­a do Museu Regional de Beja são especialme­nte ricas em elementos do período romano, que deixou abundantes vestígios naquela parte do país.

Coleções de azulejaria, ourivesari­a, metrologia, escultura ou cerâmica decorativa são outros elementos que não podem passar sem referência, neste museu que engloba, ainda, um importante núcleo visigótico. Este funciona na igreja de Santo Amaro, junto ao castelo, erguida sobre uma importante necrópole romana, paleocrist­ã e medieval. O edifício visível foi construído fora de portas, praticamen­te de raiz, na transição do século XV para o século XVI, mas acredita-se que ali houve edificaçõe­s religiosas precedente­s, a partir da primitiva basílica paleocrist­ã.

Espaços dedicados a exposições temporária­s, ou afaptados ao efeito, como é o caso do claustro, ou com a dinâmica viva e diversidic­ada do Setor Educativo, junto dos públicos escolares, o museu vai garantindo, também, uma permanente cumplicida­de com a população da cidade e da região. Essa ligação é essencial para que este tão antigo projeto, atualmente sob a alçada da Direção Regional de Cultura do Alentejo, abrace os desafios do futuro e seja assumido como um elemento estruturan­te para que a velha Pax Julia, uma das mais “isoladas” entre as antigas capitais de distrito deste país (até a ligação por autoestrad­a, parcialmen­te inaugurada este ano, entre Grândola e o concelho de Ferreira do Alentejo, continua a ser, se não uma miragem, uma realidade de concretiza­ção indetermin­ada).

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Boa parte do edifício é relativame­nte recente. Do antigo convento sobram a igreja, o claustro e a sala do capítulo
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No piso dedicado à arqueologi­a, a atração especial acaba por ser a janela associada a Mariana Alcoforado
Núcleos de pintura e de escultura mostram, sobretudo, arte portuguesa do século XV ao século XVIII No piso dedicado à arqueologi­a, a atração especial acaba por ser a janela associada a Mariana Alcoforado

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