Delírios venusianos
Recuemos pouco mais de um mês. Em 14 de setembro, o mundo pôs-se num rebuliço com sabor a ciência, especulação e sonho: um grupo de cientistas (entre eles a portuguesa Clara Sousa-Silva) anunciou a deteção do composto químico fosfina na atmosfera de Vénus. O motivo da excitação? No nosso planeta, esse marcador químico tem como origem a biologia – embora tenha sido encontrado noutros lugares do Sistema Solar, em contextos físicos e ambientais insuportáveis para a vida como a conhecemos. Apesar de o artigo ter sido rigoroso no controlo da especulação (nunca se diz que foi detetada vida em Vénus), o rastilho acendeu-se: a comunicação e as redes sociais já imaginavam micróbios venusianos alados por todo o lado! Já entre quem tem conhecimentos básicos de Astronomia, o ceticismo foi mais forte: o mais quente planeta do Sistema Solar (480oC à superfície) teria capacidade para albergar vida? A dúvida é legítima, mas de rápida resposta: à medida que subimos na atmosfera venusiana, a temperatura baixa. E há uma gama de altitudes em que existe um ambiente térmico parecido com a amena temperatura da Terra. A fosfina terá sido detetada por aí. O estudo carece de futuras confirmações e, sobretudo, que se perceba uma questão fundamental: será que a fosfina, num contexto ambiental termicamente parecido com o nosso, só pode resultar da existência de vida? Ou estaremos perante um processo que ainda desconhecemos e nada tem a ver com a biologia? A comunidade científica parece apontar sobretudo para a segunda hipótese, mas só mais amplas análises poderão deslindar o enigma. Ora... vida num planeta infernal? A tentação astrobiológica é irresistível, mas as apostas não estavam neste planeta vizinho, antes em Marte, onde um notável astrónomo italiano do séc. XIX, Giovanni Schiaparelli, descreveu como “canali” um conjunto de riscos na superfície. Depois houve um erro de tradução em publicações americanas, surgindo “canais”, mas com o termo exclusivamente aplicado a construções humanas (canals, em vez de channels); Schiaparelli nunca disse estar perante sinais de vida no planeta vermelho, mas estava criada toda a loucura científica e ficcional sobre os (para já inexistentes) marcianos.
Menos conhecidos são os delírios biológicos sobre Vénus, planeta que soube sempre esconder a sua intimidade com uma atmosfera repleta de densas nuvens. Pois essa vestimenta gasosa foi a suprema provocação para os terrestres: se algo está escondido, mais destravada é a imaginação! O místico, filósofo e espécie de cientista sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772) descreveu em detalhe uma sociedade venusiana. Por comunicações psíquicas, descobriu que Vénus é habitado por duas raças inteligentes, cada uma gerindo o seu hemisfério. Raças antagónicas: uma privilegia o caos e a violência, a outra é mais dada à contemplação espiritual...
Numa História Fantástica de Vénus, o nome de Immanuel Velikovsky (1895-1979) é incontornável. Para o psiquiatra russo (que, em 1950, publicou “Mundos em Colisão”), há toda uma narrativa sobre Vénus, a sua origem, andanças e influência na Terra, que, sem qualquer evidência científica, enfeitiçou multidões, embrulhando Astronomia e religião num requintado enredo. Para ele, Vénus teve um nascimento absolutamente singular: há pouco mais de 4000 anos, um cometa terá iniciado, a partir de um vulcão de Júpiter (??), uma órbita muito elíptica rumo ao Sol, passando perto do nosso planeta; por artes mágicas nunca explicadas, o cometa transformou-se em Vénus. Mas o fervor criativo de Velikovsky era imparável: por volta de 1500 a.C., a Terra passou pela cauda do curioso cometa/planeta, com consequências não muito bonitas: uma poeira avermelhada apoderou-se da atmosfera e envenenou os nossos oceanos. Mas há mais. Uma colossal chuva de hidrocarbonetos venusianos explica as reservas de petróleo do nosso planeta. Os pólos magnéticos alteram-se, a crusta fragmenta-se, e é nesta última adversidade que passamos à religião: este efeito catastrófico na crusta terá sido a explicação e maior aliado de... Moisés! A travessia do Mar Vermelho pelos hebreus foi “cientificamente explicada” por raios elétricos saídos do cometa/planeta Vénus, que arrasaram as tropas do faraó Ramsés II. Mas nem tudo foi desastroso: o maná caído dos céus foi obra de Vénus...
O bilhar orbital deste Vénus de Velikovsky prosseguiu com mais uma aproximação rasante à Terra que alterou a sua velocidade de rotação (o que terá ajudado Josué na Batalha de Jericó), seguindo-se uma quase colisão com Marte. O que têm em comum estes cenários de Velikovsky? Rigorosamente nenhuma evidência científica ou histórica. Mas não vamos deixar que os factos estraguem uma novela tão estrondosa...
O sucesso do livro enfureceu a comunidade científica, e a poderosa editora americana Macmillan passou os direitos de publicação para uma chancela mais discreta (Doubleday), face à ameaça de os verdadeiros cientistas deixarem de publicar com eles. Não faltou quem visse a indignação dos cientistas por prismas conspirativos: alguém queria silenciar o génio criativo e “científico” de Velikovsky. Afinal, a obra estava repleta de citações bíblicas, fontes históricas, e encaixava na perfeição em tantas narrativas!...
Perante isto, a fosfina dos nossos dias parece minúscula e modesta. Cientificamente, desconfia-se que os dois planetas mais próximos da Terra até podem ter tido oceanos e paisagens muito “terrestres”, em passados mais ou menos distantes. Poderão até ter tido condições para albergar vida mais cedo do que o nosso planeta. Mas a provocação venusiana e marciana na alma e na mente dos terrestres é muitíssimo poderosa.