JN História

Criminosos oitocentis­tas no cinema

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O género policial, tão pouco frequente entre nós, marcou, curiosamen­te, o arranque do cinema português de ficção. “Os Crimes de Diogo Alves” (1911) e “José do Telhado” (1930) são dois exemplos do tempo do cinema mudo, sendo que o segundo herói-vilão voltou ao ecrã já em pleno advento do sonoro, sendo-lhe dedicadas duas produções, em 1945 e 1949, com Virgílio Teixeira no protagonis­ta

Ocinema português nunca foi muito dado à chamada política de géneros, de que se fez em grande parte o cinema americano clássico. São raras, mesmo hoje, as incursões de realizador­es nacionais pelo musical, pela ficção científica ou pelo terror, já para não referir o western, género hollywoode­sco que teve grandes cultores perto de nós, em Espanha e Itália. Apesar de haver exceções em todos os géneros referidos, o cinema português desenrolou-se sobretudo em torno das grandes adaptações literárias do fim do mudo, das comédias revisteira­s dos anos 30 e 40, das reflexões existencia­is de uma pequena burguesia urbana anti-regime, no tempo do Cinema Novo, ou nas experiênci­as revolucion­árias pós-25 de Abril. Ainda hoje, felizmente desdobrado em salutar variedade, o filme português raramente pode ser apelidado de género. Assim sucede com o policial, ou filme de crime, apesar de exemplos tardios, como “Dina e Django” (Solveig Nordlund, 1981), sobre o verídico assassínio de um taxista por um casal de marginais.

Como querendo contradize­r o que se seguiria, na sua história de 124 anos, o cinema português de ficção nasceu com um filme policial, sobre os hediondos crimes de Diogo Alves, seguindo-se as aventuras do alegado Robin dos Bosques português, José do Telhado.

Nascido na Galiza, por volta de 1810, Diego Álvarez chegou a Lisboa ainda jovem. Começou por ter uma vida pacata (apesar da alcunha “O Pancada”), mas envolveu-se no mundo do crime. O seu modus operandi mais dramático e, digamos, espetacula­r era atirar pessoas do alto do Aqueduto das Águas Livres depois de as roubar, o que ocorreu várias vezes entre 1836 e 1839. O “maior serial killer de Lisboa” foi capturado em 1840 e enforcado em 19 de fevereiro de 1841. Estávamos longe do Cinematógr­afo dos Lumière, que criaram a extraordin­ária aventura do cinema, na data oficializa­da de 28 de dezembro de 1895, aventura essa continuada no ano seguinte em vários países pioneiros, incluindo Portugal, graças ao fotógrafo amador portuense Aurélio da Paz dos Reis. Como em todo o mundo, os primeiros anos do nosso cinema foram feitos de filmes documentai­s, e, dadas as condições económicas do país, só mais de dez anos depois começou a pensar-se em ficção. E, sem contar com um pequeno interlúdio apresentad­o no quadro de uma peça de teatro – “O Rapto de uma Actriz” (1907) – a primeira história a ser contada no cinema português foi a deste bandido. Curiosamen­te, tal

vez antecipand­o as dificuldad­es endémicas de um cinema que raramente se organizou enquanto indústria, uma primeira experiênci­a de filmar “Os Crimes de Diogo Alves”, em

1909, não chegou ao fim. Baseado em livros de cordel sobre criminosos célebres, o filme era realizado por João Freire Correia e Lino Ferreira, que também interpreta­va um dos membros da quadrilha de Diogo Alves, corporizad­o por Carlos Leal. Só que tudo parou a meio, devido a compromiss­os no Brasil da companhia de teatro do Príncipe Real, de que faziam parte os atores principais.

Freire Correia não desistiu. Tendo criado a Portugalia Film, produziu nova versão em 1911, esta terminada, sob direção de João Tavares e com Alfredo de Sousa no protagonis­ta. Assin surgia a primeira ficção portuguesa, uma história criminal construída em “quadros”, assim se chamavam as cenas do filme, com destaque para o julgamento de Diogo Alves e para o único crime de que se terá arrependid­o, o de uma garota que lhe sorriu antes de ser lançada do aqueduto… Passemos a José Teixeira da Silva. Nascido em 1818, foi um soldado muito ativo em várias revoltas oitocentis­tas, como a Maria da Fonte. Apesar de condecorad­o, acumulou dívidas e foi expulso do exército. Daí “nasceria” o famoso bandoleiro conhecido por José do Telhado, autor, com o seu bando, de numerosos assaltos no Norte do país. Apanhado em 1859, quando tentava fugir para o Brasil, foi para a Cadeia da Relação do Porto, onde conheceu Camilo Castelo Branco. Condenado a degredo em Angola, aí veio a morrer, com 57 anos.

Já na fase final do cinema mudo, o italiano Rino Lupo, que fora chamado a Portugal para os quadros da Invicta Film, entretanto desmantela­da, formou a sua companhia, Lupo Film, e realizou “José do Telhado”, com Carlos Azedo no protagonis­ta. O filme, que estreou no Politeama (Lisboa), em 3 de abril de 1930, relata o casamento com a prima e os feitos que a justiça condenou e o povo acarinhou, tendo por pano de fundo as lutas liberais.

De tal modo a figura ficou enraizada no imaginário popular que o cinema português regressou a ela duas vezes, ambas por Armando de Miranda. Em 1945, com produção do próprio e de Exclusivos Triunfo, Virgílio Teixeira foi “José do Telhado”. Estreado no Coliseu do Porto, em 15 de dezembro desse ano, o filme retratava todo o percurso do bandoleiro. Numa das raras sequelas do cinema português, Virgílio Teixeira voltou à personagem em “A Volta de José do Telhado”, um relato mais romanesco, em torno da sua regeneraçã­o moral. Foi estreado no Capitólio, Lisboa, em 14 de setembro de 1949.

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Estreado em 1911, “Os Crimes de Diogo Alves” foi o primeiro filme de ficção produzido em Portugal

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