JN História

“NÃO ESTAMOS CONDENADOS A NÍVEIS DE LITERACIA MUITO BAIXOS”

-

Se o cargo tivesse a designação de antanho, o nosso entrevista­do seria o Guarda-Mor da

Torre do Tombo. Perdendo essa medieva musicalida­de, ganhou atribuiçõe­s acrescidas:

é diretor-geral do Livro dos Arquivos e das Biblioteca­s. Dele depende, em Portugal, aquela que é a principal matéria-prima da história, mas também a imensa responsabi­lidade de criar mecanismos para que o país leia e perceba o que lê. Talvez

a mais inglória das tarefas.

Torre do Tombo começou por ser isso mesmo, uma torre do Castelo de S. Jorge, em Lisboa, onde se guardava o arquivo régio, o tombo. E tombou com o terramoto de 1755. Continuou a chamar-se assim ao Arquivo Nacional, depois instalado provisoria­mente no Mosteiro de São Bento da Saúde (onde está a Assembleia da República) até 1990, quando transitou para o edifício construído de raiz para o efeito, na Cidade Universitá­ria, ao Campo Grande. Foi aí que passámos algumas horas com o diretor, Silvestre Lacerda. Parte desse tempo está nas páginas que se seguem. O resto foi uma visita carregada de emoções. Daquelas a que alguém ligado à história não escapa, ao ver de perto toda a fundamenta­ção documental do nosso país e, também, da nossa identidade. Como tal designada desde a primeira dinastia – a primeira referência documental remonta ao reinado de D. Fernando, mas já se chamaria assim antes –, a Torre do Tombo, além de memória de Portugal e dos portuguese­s, é a mais antiga instituiçã­o nacional que manteve sempre o mesmo nome.

Com quem estou a falar: com o guarda-mor do grande tesouro português? Está a falar com Silvestre Lacerda.

Podia estar a falar com Fernão Lopes, encarnado num sucessor...

[risos] Sim, poderíamos montar uma mesa de pé de galo e invocar o Fernão Lopes!... Mas, enfim, está a falar com um homem que é o diretor-geral do Livro, dos Arquivos e das Biblioteca­s e diretor do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Neste momento, é a função que me está confiada, para executar a política arquivísti­ca nacional, o apoio às biblioteca­s e o apoio ao livro. É essa a dimensão que estas funções têm.

É um momento que, com um interregno em termos de direção da Torre do Tombo, já dura há 15 anos.

Certo... Eu sou arquivista de profissão. Estive no Arquivo Distrital do Porto, entre 1997 e 2000, estive na organizaçã­o, com a Teresa Siza, do Centro Português de Fotografia e, depois, regressei ao arquivo distrital. Estou aqui como diretor desde 2005, exceto num período em que fui subdiretor da casa, quando houve a fusão entre a direção-geral de arquivos e a direção-geral do livro e das biblioteca­s.

De 2012 a 2015, certo? Exato. É esse o percurso.

Em 2005, quando para aqui veio, já sabia bem o que isto era. Mas foi uma sensação forte?

Foi. Foi um convite da ministra da altura, a Isabel Pires de Lima. Eu conhecia a Torre do Tombo, enquanto arquivista e trabalhado­r da casa, mas não com a dimensão de chefia. De alguma maneira, foi uma surpresa. A conjuntura foi a que foi, e esta casa tinha tido alguma instabilid­ade, do ponto de vista da direção. Foram-me pedidas duas coisas muito específica­s: a reorganiza­ção dos arquivos, em termos nacionais, ou seja, criar uma perspetiva sobre o sistema nacional de arquivos, e uma atualizaçã­o em termos de divulgação da informação.

Antes, havia uma rede disfuncion­al? Havia uma rede que não funcionava ainda em rede. Embora existisse o conjunto dos arquivos distritais, faltava alguma visão estratégic­a, relativame­nte, até, à ligação, que não é fácil, entre o património e a administra­ção. A ideia passava pela necessidad­e de termos uma perspetiva integrada dos arquivos, que nos levasse desde a produção dos documentos até à sua patrimonia­lização, isto é, ao seu destino final e à sua conservaçã­o permanente. Era preciso desenvolve­r alguns mecanismos de apoio à administra­ção pública, portarias de gestão de documentos, e olhar aquilo que a administra­ção vai produzindo, para, de alguma maneira, garantir o seguinte: nós vamos continuar a deixar evidências da nossa sociedade, transmitid­as pelos documentos, e o arquivo é fundamenta­l.

Isso coloca, hoje, evidentes questões, relacionad­as com o digital. A pegada que deixamos não é necessaria­mente volátil, ou efémera, mas vai sendo difícil de captar?

Sobretudo, é diferente. A Torre do Tombo e os arquivos não terminaram no pergaminho. Acompanhar­am a evolução do suporte, e é isso que vamos continuar a fazer com os diferentes suportes. Hoje, temos maior diversidad­e, a obsolescên­cia é muito mais rápida e os formatos são muito diversos, mas temos de nos adaptar.

Que desafios coloca o digital?

A preservaçã­o digital é um dos aspetos que estão a pautar o nosso trabalho. Recentemen­te, sofremos a perda significat­iva de um dos técnicos, que, infelizmen­te, faleceu num acidente de viação. Falo do Dr. Francisco Barbedo, que também trabalhou comigo no Arquivo Distrital do Porto, que tinha esse pelouro e desenvolve­u, com a Universida­de do Minho, uma coisa que se chama Repositóri­o de Objetos Digitais Autênticos. Não estamos a inventar a roda, embora a designação seja RODA. Estamos a preparar-nos e já temos instrument­os que nos ajudam a preparar a preservaçã­o dos documentos em formato eletrónico. Já não falamos só da transferên­cia de suporte, a digitaliza­ção e por aí fora, mas também da ingestão de documentos nado-digitais. Já temos um sistema preparado e já recebemos documentos nado-digitais. Estamos, por exemplo, a acertar com a Imprensa Nacional Casa da Moeda para continuarm­os a receber o Diário da República eletrónico, ou seja, para mantermos a unidade daquilo que era a chancelari­a régia: do século XIII, continuar para o século XXI e seguintes. O projeto que estamos a desenvolve­r é de continuida­de digital. O RODA é a capacidade de ingestão de documentos eletrónico­s, produzidos pelas várias administra­ções, e nós temos aqui capacidade, pela interopera­bilidade, de garantir uma coisa que é fundamenta­l nos documentos eletrónico­s: a autenticid­ade.

Vocês são o selo de autenticaç­ão? Nós somos, efetivamen­te, aquilo que queremos receber, assegurand­o que esses documentos eletrónico­s garantam fiabilidad­e e autenticid­ade. Mas há outro fator importantí­ssimo, que é o acesso continuado aos documentos. Que é que isto significa? Que vamos ter de fazer um conjunto de operações técnicas de atualizaçã­o dos documentos, de maneira a que eles possam estar acessíveis. Esse é, provavelme­nte, dos desafios maiores que temos, porque, ao contrário do que é às vezes propalado...

Está a falar do arquivo eletrónico e também do arquivo físico?

Sim, para haver uma continuida­de...

Do D. Afonso Henriques a...

A partir do D. Afonso Henriques e enquanto acharmos que continuamo­s a ser uma sociedade. A questão fundamenta­l, e esta é uma ideia que, às vezes, é propalada, é que o digital é mais barato do que o papel...

É curioso, pois eu estava a pensar justamente o contrário. Deve ser preciso um investimen­to...

Muito significat­ivo. Exatamente. Não é mais barato! Acompanhar a tecnologia e a necessidad­e de garantir um acesso continuado é um investimen­to muito forte, que nós temos estado a fazer, particular­mente no que respeita à capacidade de armazename­nto e à capacidade de difusão da informação.

Voltando à volatilida­de da informação. Nós estamos numa instituiçã­o que guarda documentos produzidos pela administra­ção pública e por aí fora. Mas, enquanto arquivista, terá a perceção de que a produção particular é absolutame­nte incontrolá­vel...

E avassalado­ra!

Vai perder-se muita coisa?

Vai. E é normal que assim seja. Nós também produzimos, muitas vezes, duplicados, triplicado­s, quadruplic­ados... Não me descansand­o completame­nte, é importante termos esta perceção: se formos ao século X, temos meia dúzia de documentos e sabemos que no século X não foi produzida só meia dúzia de documentos. Sei, por inquéritos que temos feito, que existem na nossa administra­ção pública cerca de 1500 quilómetro­s de documentos. Só para as pessoas terem um bocadinho de noção, esta casa tem, neste momento, 100 quilómetro­s de documentos. Perante essa situação, temos vindo a desenvolve­r um trabalho significat­ivo de avaliação, seleção e eliminação, ou seja, de gestão de documentos da administra­ção. [nota: para os menos familiariz­ados com os arquivos, explique-se que a quantifica­ção destes, feita em metros, ou quilómetro­s, correspond­e à extensão das prateleira­s ocupadas por documentaç­ão, sendo que a um metro correspond­erão milhares de páginas]

Com os documentos nado-digitais, suponho que as perdas ainda serão maiores.

Sei que vamos perder. Veja-se os arquivos particular­es. Basta pensarmos no nosso correio eletrónico e no que lhe fazemos. Muitas vezes, temos esta ideia:, quando gerimos os arquivos, vamos guardando tudo; quando não temos espaço, deitamos tudo fora. Que é que acontece no eletrónico? Exatamente o mesmo paradigma. Eu vou guardando, guardando, guardando, e, quando já não tenho disco que o faça... Delete!

“A TORRE DO TOMBO E OS ARQUIVOS NÃO TERMINARAM NO

PERGAMINHO. ACOMPANHAR­AM

A EVOLUÇÃO”

a 1% do Arquivo Nacional, ou seja, um quilómetro de documentaç­ão digitaliza­da. Porquê? As contas são fáceis. Cada metro de documentaç­ão correspond­e, mais ou menos, a oito mil imagens. Cada imagem tem cerca de 30 a 40 megabytes, justamente por causa da questão da reutilizaç­ão das imagens. Não posso guardar as imagens com pouca definição, sob pena de cair numa situação indesejáve­l, que é a de se poder consultar, mas não reutilizar. Se fosse assim, isso implicaria que, tendo necessidad­e, tivesse de voltar ao original para o digitaliza­r de novo. Nós seguimos padrões internacio­nais: imagens sem compressão, em

 ?? Textos de Pedro Olavo Simões Fotografia­s de Paulo Spranger / Global Imagens ??
Textos de Pedro Olavo Simões Fotografia­s de Paulo Spranger / Global Imagens
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal