A paixão do cinema por Cleópatra
Tratada nesta edição da JN História, a relação amorosa entre o cônsul romano Marco António e a mais célebre rainha grega do Egito inspirou numerosas produções cinematográficas, desde o tempo do mudo. Entre todas sobressairá sempre a superprodução de 1963 que possibilitou o encontro e desencadeou a paixão, fora da tela, de Elizabeth Taylor e Richard Burton
Viveram uma intensa relação amorosa, que ultrapassou em muito a esfera íntima. E cruzaram duas civilizações de perene herança cultural. Marco António e Cleópatra sentiram em vida toda a dimensão do envolvimento emocional, mas não podiam imaginar que, mais de dois mil anos depois, ainda estivéssemos a debruçar-nos sobre o seu legado. A dimensão histórico-romântica do evento, relatado nos manuais e eternizado na peça de William Shakespeare, intitulada “The Tragedy of Antony and Cleopatra” e levada à cena pela primeira vez em 1607, ofereceram uma base dramática que o cinema não poderia desperdiçar.
Com uma vida sentimental também atribulada, iniciada de forma fulminante nos bastidores desse filme hoje mítico, Elizabeth Taylor e Richard Burton encarnaram em “Cleópatra” (realizado por Joseph L. Mankiewicz e estreado em 1963) essa dupla de eleição, maior do que a vida, capaz de agarrar, muito para além dos que se interessam por História, todos aqueles que se deixam seduzir e emocionar pelas grandes paixões trágicas. Assim sendo, é irónico que “Cleópatra” tenha sido um tremendo fiasco de bilheteira, longe de capitalizar o imenso investimento artístico, simbolizado, por exemplo, nessa sequência única de megalomania e esbanjamento hollywoodiano que é a entrada em Roma de Cleópatra. O colapso financeiro do projeto quase acabou com a 20th Century Fox, mas Burton e Taylor casaram-se em 1964, descasaram dez anos depois e voltaram a casar, em 1975, num segundo enlace que duraria nove meses. Já “Cleópatra”, o filme, permanecerá para sempre na memória de cinéfilos ou simples amantes de cinema.
Se o argumento, como muitos à época, nasceu do trabalho de uma série de guionistas, entre eles o próprio Mankiewicz, e se baseava em várias fontes, a peça de Shakespeare também teria uma sólida adaptação, datada de 1972, intitulada “Antony and Cleopatra”. Curiosamente, um dos grandes ícones do cinema bíblico-histórico, Charlton Heston, teve aí o seu primeiro trabalho como realizador e argumentista, partilhando o protagonismo com a britânica Hildegard Neil. O filme, afastado da esfera de Hollywood, era uma coprodução entre Inglaterra, Espanha e Suíça e, naturalmente, não é a única adaptação cinematográfica da peça do bardo. Temos até de recuar até 1908 para descobrir a primeira, realizada por um dos pioneiros do cinema americano, J. Stuart Blackton, e protagonizada por Maurice Costello e Florence Lawrence, por vezes considerada a primeira “estrela de cinema”.
O cinema italiano mudo, uma das grandes matrizes da época, exibiria em 1913 um então espetacular “Marcantonio e Cleopatra”, dirigido por um dos mestres do filme histórico de então, Enrico Guazzoni, e interpretado por um dos atores italianos mais famosos, Amleto Novelli, e por Gianna Terribili-Gonzales.
Não se pode, ainda, ignorar um outro filme mudo, intitulado apenas “Cleopatra”, que se baseia em parte no drama de Shakespeare, mas também num romance de H. Rider Haggard e numa outra peça, de Émile Moreau. Essa produção de 1917 foi interpretada por uma das maiores estrelas do mudo, Theda Bara, então a “vamp” de Hollywood.
Se deixarmos de lado a personagem de Marco António e nos concentrarmos apenas em Cleópatra, então a “filmografia” começa a disparar em todos os sentidos. Mas, além do filme de Mankiewicz, há outra obra-prima do cinema americano consagrada à lendária rainha. Trata-se de uma produção da Paramount, dirigida em
1934 por Cecil B. DeMille, que já realizara em 1923 um épico histórico, “Os Dez mandamentos”, com cuja remake terminaria a sua gloriosa carreira, em 1956. A “Cleópatra” deste filme era a fabulosa Claudette Colbert, tratando a personagem com a ironia que lhe valeria um Óscar pelo filme que acabara de rodar antes, “Uma Noite Aconteceu”, de Frank Capra, ao lado de Clark Gable.
Mas cleópatras, no cinema, há para todos os gostos. O álbum de banda desenhada de Goscinny e Uderzo, além de uma animação, deu origem a “Astérix e Obélix: Missão Cleópatra”, o que permitiu à exuberante Monica Bellucci enriquecer a sua galeria de personagens. Ainda dentro do estilo humorístico, o grande comediante italiano Totò interpretou “Totò e Cleopatra” (1963), com o papel da rainha a caber à grande atriz francesa Magali Noel.
A personagem não resistiria sequer à série brejeira britânica dos anos de 1960, “Carry On”, com o título “Com Jeito Vai… Cleópatra”, realizado por Gerald Thomas logo no ano a seguir ao clássico de Mankiewicz e interpretado pela veterana do musical de palco Amanda Barrie. A “Cleópatra” de Taylor & Burton encerrou simbolicamente, até pelo desenlace trágico nas bilheteiras, um período de cerca de década e meia em que Hollywood utilizou as temáticas bíblico-históricas para superproduções com que pretendia bater o impacto negativo da televisão, propondo, com a generalização do uso da cor, o ecrã panorâmico ou até com o 3D, espetáculos impossíveis de reproduzir no então realmente pequeno ecrã. Foi a época de títulos como “Ben-Hur”, “A Túnica”, “A Queda do Império Romano” ou “A Bíblia”. Mas essas são outras histórias.