Doença e cura através do tempo e do mundo
Do xamanismo a um estojo usado na expedição de Roald Amundsen ao Polo Sul, das figuras de unicórnios às belíssimas farmácias de valor histórico ali reconstituídas, das estatuetas da América pré-colombiana a um estojo de primeiros-socorros levado, em 2000, a bordo do vaivém espacial norte-americano “Endeavour”, o percurso de visita, num e noutro museu (as imagens que aqui mostramos foram obtidas no de Lisboa), assenta numa ideia de diversidade, de diacronismo, de evolução. É uma ideia de historiador e não de colecionador, ou, até, de farmacêutico. A organização do museu por tipologias de artigos expostos era, à data da fundação, uma das ideias sobre a mesa, mas prevaleceu o conceito que, ao longo dos anos, vem sendo aperfeiçoado por João Neto, justamente um homem da História. E que teve por parte da Associação Nacional das Farmácias (ANF, a que os museus pertencem, ocupando estes espaços na sede e na delegação do Porto) o apoio, particularmente financeiro, necessário para constituir um acervo que vai muito além dos donativos originais, feitos por farmácias portuguesas.
Recuemos no tempo. Esses donativos de peças com valor histórico e patrimonial, em resposta a um apelo lançado em 1981 pela Direção da ANF, não só ajudaram a ter um vasto acervo patrimonial representativo da história das farmácias portuguesas como, também, resultaram em que muito desse património não se perdesse irremediavelmente sob os implacáveis golpes do camartelo do progresso. Todavia, a farmácia em Portugal era um conceito limitado, e o apoio da Direção, então presidida por João Cordeiro, permitiu que se fosse construindo, através de aquisições em leilões, nacionais e internacionais, ou junto de particulares, uma coleção que é hoje tida internacionalmente como de referência.
Dar a conhecer e compreender são, evidentemente, objetivos primordiais de qualquer museu, mas é evidente que tal se consegue com maior eficácia se se conseguir tornar a experiência prazenteira. Em sí, a exposição permanente propicia isso, não apenas pela narrativa que ela mesma encerra, mas pelas memórias que em muitos aviva. Nesse capítulo, as reconstituições de farmácias ocupam um papel especial, pois muitos dos que visitam os museus encontram ali espaços como os que chegaram a frequentar, pois até tempos bem recentes ainda havia estabelecimentos que mantinham tais configurações. No caso do museu portuense, avulta a Farmácia Estácio, originalmente montada na Rua de Sá da Bandeira, e que muitos, in
cluindo a criança que foi quem escreve estas linhas, recordam pela famosa balança falante. Que justifica a inclusão, aqui, de uma pequena anedota.
Na farmácia original, a balança que falava, dizendo em voz bem percetível o peso de cada utilizador, estava presa ao chão. Porquê? O dispositivo foi montado muitas décadas antes de existirem sintetizadores de voz e afins, pelo que, além do mostrador normal, o dispositivo tinha outro mostrador, montado na cave, exatamente por baixo. Aí estava uma funcionária, entretida noutros afazeres, que, de cada vez que alguém se pesava, era alertada por uma luz vermelha e dizia, para um microfone, o veredito dado pela balança. Conta-se que o célebre ator Vasco Santana, em cena no teatro ali ao lado, decidiu um dia experimentar a balança, levando a empregada, incrédula face ao invulgar valor que o mostrador lhe indicava, a dizer para o microfone: “A balança só pode ser usada por uma pessoa de cada vez!”.
Até uma farmácia tradicional chinesa, adquirida em Macau, pode ser vista no museu de Lisboa, onde foi reconstituída. Mas, retomando o fio à meada, ou seja, às táticas para captar novos públicos e transformar a visita numa experiência, há que referir as visitas temáticas que conseguem fazer-se em torno da coleção do museu. Por vezes surpreendentes, como a recente iniciativa “Agatha Christie no Museu da Farmácia”, queeste ano assinalou o centenário do primeiro livro publicado pela célebre autora de romances policiais (também o primeiro em que surge a figura de Hercule Poirot): “O Misterioso Caso de Styles”. Enfim, talvez não tão surpreendentes, pelo menos depois de se pensar um pouco no assunto: além de ter trabalhado como enfermeira, durante a Primeira Guerra Mundial, a autora britânica sempre teve a
farmacologia e a rqueologia como interesses especiais, que muito usou na construção das suas tramas. Ou seja, duas áreas do saber bem presentes nas coleções do museu.
E há mais visitas temáticas: “5 Séculos de História da Farmácia em Portugal”, 5000 anos de História da Saúde e da Farmácia - Civilizações distantes no tempo e espaço!”, “O Mundo do Cinema no Museu da Farmácia”, “Religião e Espiritualidade no Museu da Farmácia”, “Doenças e Epidemias no Museu da Farmácia”, “5000 anos da História da Sexualidade no Museu da Farmácia”, “Inimigos inimagináveis escondidos dentro de casa (bactérias e micróbios e outros males)”, “Arte e Saúde no Museu da Farmácia”, “A Cerâmica Farmacêutica do século XII ao XIX” e “A Vida no Limite - Aventureiros e Exploradores”.
Arte, misticismo, etnografia, tecnologia, física, química... Numa abordagem museológica com o sentido multidisciplinar que a história confere, todas as áreas do saber ou ramos em que se manifesta a criatividade têm cabimento. Tratados diversos [destaquemos o volume dedicado à farmácia do Cânone da Medicina de Abu ‘Ali al-Husayn ibn Abdullah ibn Sina (Pérsia, 980-1037), Avicena no aportuguesamento do nome], utensílios para todos os fins, do almofariz ao cinto de castidade (feminino e masculino), substâncias de toda a ordem, das culturas de penicilina às pedras de bezoar extraídas dos aparelhos digestivos de ruminantes, que se acreditava ajudarem a expulsar o veneno do corpo (sugestão: o bezoar surge nas histórias de Harry Potter, que poderão inspirar uma visita apta a cativar os mais novos), de tudo ali há. Como na farmácia, claro. E o site, em museudafarmacia.pt, propicia toda a informação, além de proporcionar visitas guiadas virtuais (por inscrição, através da plataforma Zoom), próprias para os dias de confinamento.