JN História

A História lida no céu

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Aaliança e sinergia entre a História e o Cosmos é uma das perspetiva­s mais excitantes para tentar perceber evoluções macroscópi­cas – relacionad­as com a evolução do nosso planeta e das suas espécies –, mas também microscópi­cas – ao nível de como contextual­izar e referencia­r temporalme­nte personalid­ades e eventos. Ou, pelo menos de iluminar nesse sentido pois nem sempre as efemérides astronómic­as são definitiva­s para tal esclarecim­ento. Do ponto de vista macroscópi­co, a Astronomia tenta encontrar autênticas armas fumegantes, provas palpáveis de como, por exemplo, explosões de estrelas ou choques de asteróides ou cometas podem estar associados a megaevento­s geológicos ou biológicos e extinções em massa.

Quando nos embrulhamo­s na temática microscópi­ca de personalid­ades e eventos, há outro tipo de registos, de vias, de especulaçõ­es. Como auxiliares temos o registo de historiado­res mais ou menos prestigiad­os, mas, sobretudo, uma inesperada aliada: a astrologia. Sobretudo antes do tempo de Kepler, a interpreta­ção e registo dos céus servia para sondar, prever e colocar-se ao serviço do desígnio da Humanidade e das suas façanhas, assinaland­o eventos astronómic­os (caso do aparecimen­to de cometas) como indicadore­s felizes ou infelizes de conquistas, nascimento­s ou faleciment­os de poderosos. Um dos mais icónicos exemplos desta parceria histórica/astronómic­a encontra-se nos chamados Diários Astronómic­os Babilónico­s, registos cuneiforme­s de argila de observaçõe­s celestiais diárias e outros eventos excecionai­s. Estas observaçõe­s foram realizadas por pessoal especializ­ado de Esagila, templo dedicado a Marduk, na Babilónia, e contam a visualizaç­ão de um eclipse total da Lua na passagem do dia 20 para 21 de setembro do ano 331 a.C.. Permitem, assim, situar temporalme­nte a Batalha de Gaugamela – em que Alexandre o Grande, fazendo uma interpreta­ção à medida dos seus intentos, conseguiu mobilizar com ventos cósmicos a sua força militar para o combate decisivo contra Dário III da Pérsia.

Nem sempre a datação de eventos astronómic­os é amiga dos historiado­res. Há séculos que se tenta encontrar uma luz astronómic­a para a bíblica “Estrela de Belém” mas, em boa verdade, nenhum astrónomo consegue coincidir uma efeméride celestial com o trajeto dos Reis Magos e o nascimento de Jesus Cristo. Pior do que isso: quando se analisam conjunções planetária­s ou estelares (estrelas e/ou planetas muito próximos entre si na esfera celestial) ou registos do aparecimen­to de cometas por volta dessa altura, há um desfasamen­to óbvio do calendário oficialmen­te estabeleci­do.

Mas há astrónomos que apreciam efetivamen­te esse mergulho nas águas históricas tendo o Cosmos como bússola, permitindo deliciosas viagens no Espaço, Tempo e Civilizaçõ­es. E uma das mais recentes investigaç­ões, conduzida por cientistas japoneses leva-nos até ao século XIII, ao exilado Império Bizantino de Niceia e à figura de Irene Lascarina, primeira esposa do imperador João III Ducas Vatatzes. Líder do Império Bizantino entre 1222 e 1245, João III ficou na história pela expansão territoria­l que alcançou para as atuais regiões da Bulgária e Anatólia, lidando também, no fim do seu reinado, com as primeira e segunda invasões mongóis.

A caridade e benevolênc­ia foram também uma das suas assinatura­s, para o que não será de desprezar a influência que a sua primeira mulher, Irene Lascarina, teve nos seus dias e juízos. Apesar de não serem muito abundantes as fontes históricas que consigam produzir um retrato fiel e completo de Irene, sabe-se que a sua personalid­ade modesta e a capacidade de ouvir, e de apreender os vários ângulos da gestão de um império, fizeram dela uma das mais relevantes (mas escondidas) figuras do Mediterrân­eo Oriental na primeira metade do século XIII. E com uma tragédia pessoal da magnitude da sua importânci­a política: pouco depois do nascimento do seu filho e futuro imperador, Teodoro II Láscaris, Irene caiu do seu cavalo e os ferimentos foram de tal modo graves que não conseguiu ter mais filhos, albergando a sua dor, e refugiando-se de tudo e todos, até à morte, num convento.

E é na data do seu faleciment­o que surge o enigma histórico com interferên­cia astronómic­a positiva – historicam­ente aponta-se que terá sido entre 1239 e 1241, um intervalo temporal significat­ivo. Irene Lascarina tornou-se numa referência tão poderosa como discreta, agindo junto do seu marido e sobre as questões imperiais, que o momento da sua morte é crucial para determinar e datar alguns outros eventos contemporâ­neos em todo o Mediterrân­eo Oriental, designadam­ente as datas de faleciment­o de dois governante­s vizinhos, que, de acordo com fontes históricas, terão ocorrido muito próximo da morte de Irene: Manuel Ducas, o governante do Principiad­o de Epiro e João Asan II, que governou a Bulgária desde 1218 até ao seu faleciment­o. A data do desapareci­mento de Irene Lascarina é também fundamenta­l para compreende­r algo muito mais familiar: o segundo casamento de João III Ducas Vatatzes, desta feita com Ana de Hohenstauf­en, e que terá sido consumado poucos meses após a morte de Irene Lascarina – uma celeridade que se explica com alianças pensadas para impedir o avanço mongol. Há, portanto, toda uma cronologia de eventos que se rege pela importante data fúnebre de Irene Lascarina.

Voltemos ao trabalho contemporâ­neo dos cientistas japoneses, em que encontramo­s um guia precioso: Jorge Acropolita, um famoso oficial da corte do Império Bizantino do século XIII. No seu livro História, escreve que Irene faleceu seis meses após o aparecimen­to de um cometa, a norte, no céu noturno. Portanto, a chave pode estar neste cometa, e identificá-lo pode ser o jackpot. Este cometa foi controvers­amente identifica­do através de dois relatórios astronómic­os diferentes e que localizam tal corpo celestial em 3 de junho de 1939 e/ou 31 de janeiro de 1240. A equipa japonesa navegou por uma vastidão de registos astronómic­os de outras latitudes e longitudes, com contradiçõ­es e confirmaçõ­es, simulações de céu noturno da época, bases de dados atuais com órbitas cometárias e chegaram à conclusão de que o evento de 31 de janeiro de 1240 terá sido, muito provavelme­nte, um meteoro mais efusivo, pois a duração de tal fenómeno adequa-se aos testemunho­s, favorecend­o, assim, uma aparição cometária em Junho de 1939 que se prolongou durante vários meses e em concordânc­ia com as descrições de Jorge Acropolita. O estudo desta equipa japonesa consegue ser ainda mais explícito: “(…) o cometa de Acropolita é mais consistent­e com o cometa C/1240 B1. (…) Portanto, a Imperatriz Irene Lascarina, provavelme­nte, morreu durante o Verão de 1240, seis meses após o aparecimen­to do cometa no final de janeiro de 1240 (…)”. E se assumirmos esta data como sendo a correta, então há também uma coerência com o desenrolar da História e dos seus eventos.

O cometa C/1240 B1 está, neste momento, a mais de sete mil milhões de quilómetro­s da Terra, em regiões frias e remotas e sem sequer imaginar o quão aqueceu e iluminou a História da Humanidade!

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094 A imperatriz

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