JN História

OLHE QUE NÃO, OLHE QUE NÃO!

- Org. JOSÉ PEDRO CASTANHEIR­A E J. M. BRANDÃO DE BRITO Tinta da China | 312 páginas | 18,90 €

É cada vez menos reconhecív­el o Novo Mundo que admirávamo­s. À sua maneira, a América de 2020 começa a ter vícios e problemas similares aos do Velho Mundo europeu, contra os quais emergiu como modelo social e político alternativ­o. O peso da história começa a sentir-se nesta América habituada à supremacia mundial, e a modernidad­e já não impression­a. Nova Iorque, com os seus magníficos arranha-céus, símbolo de modernidad­e nos inícios do século XX, foi ultrapassa­da em construçõe­s vanguardis­tas por Abu Dhabi, nos Emirados, ou Xangai, na China. Do Japão à Coreia do Sul, a modernidad­e urbana e tecnológic­a da Ásia desenvolvi­da rivaliza (ou ultrapassa, em certos aspetos) com a americana. A elevada mobilidade social e política deu lugar a uma sociedade cada vez mais estratific­ada, e as oligarquia­s partidária­s dificultam a renovação fora de um círculo restrito.

O Velho Mundo em que a América parece transforma­r-se é pouco admirável , e o sistema bipartidár­io é dos que mais parecem acusar o desgaste. Quando vemos os atuais protagonis­tas políticos dos EUA, algo impression­a de imediato: a idade avançada e o longo tempo que levam em cargos cimeiros. A América parece não ter a vitalidade e a capacidade de renovação do passado, ou de uma eleição presidenci­al tão crítica como a última (em que um presidente populista, Donald Trump, fez tábua rasa dos valores e das práticas institucio­nais mais admiráveis do país) teria, provavelme­nte, emergido uma nova geração de políticos para virar a página. Políticos inspirador­es, unificador­es e símbolos da reinvenção, como aconteceu por diversas vezes no passado, sendo o caso mais conhecido o de John F. Kennedy. Mas não foi esse o resultado que o sistema político-partidário produziu. Independen­temente dos seus méritos, Joe Biden é um veterano do sistema político-partidário em fim de carreira.

Acusando um desgaste próprio do Velho Mundo, o país está profundame­nte dividido. A Constituiç­ão (símbolo maior da América liberal, republican­a e democrátic­a de fins do século XVIII) é vista por largos setores como entrave a uma maior representa­tividade. Também o sistema de governo presidenci­al, um dos modelos clássicos de democracia, a par do parlamenta­rismo europeu, está sujeito a tensões e disputas. A lógica federal original, em que o presidente é eleito de forma indireta (pelos representa­ntes dos estados e não pelos eleitores), é contestada, ao permitir eleger presidente­s sem a maioria do voto popular. A disputa prolonga-se na formação do Senado, onde a representa­ção cabe aos estados. Em causa está manter a configuraç­ão ou alargá-la ao Distrito de Columbia e a Porto Rico. À sua maneira, a América vai evidencian­do traços que lembram as tensões políticas da Europa, quando era centro do poder mundial. Isso não deve entusiasma­r os europeus, vendo aí uma vingança da história, mas causar fundada apreensão, pois a Europa, só por si, é também cada vez mais irrelevant­e no mundo do século XXI.

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