OLHE QUE NÃO, OLHE QUE NÃO!
É cada vez menos reconhecível o Novo Mundo que admirávamos. À sua maneira, a América de 2020 começa a ter vícios e problemas similares aos do Velho Mundo europeu, contra os quais emergiu como modelo social e político alternativo. O peso da história começa a sentir-se nesta América habituada à supremacia mundial, e a modernidade já não impressiona. Nova Iorque, com os seus magníficos arranha-céus, símbolo de modernidade nos inícios do século XX, foi ultrapassada em construções vanguardistas por Abu Dhabi, nos Emirados, ou Xangai, na China. Do Japão à Coreia do Sul, a modernidade urbana e tecnológica da Ásia desenvolvida rivaliza (ou ultrapassa, em certos aspetos) com a americana. A elevada mobilidade social e política deu lugar a uma sociedade cada vez mais estratificada, e as oligarquias partidárias dificultam a renovação fora de um círculo restrito.
O Velho Mundo em que a América parece transformar-se é pouco admirável , e o sistema bipartidário é dos que mais parecem acusar o desgaste. Quando vemos os atuais protagonistas políticos dos EUA, algo impressiona de imediato: a idade avançada e o longo tempo que levam em cargos cimeiros. A América parece não ter a vitalidade e a capacidade de renovação do passado, ou de uma eleição presidencial tão crítica como a última (em que um presidente populista, Donald Trump, fez tábua rasa dos valores e das práticas institucionais mais admiráveis do país) teria, provavelmente, emergido uma nova geração de políticos para virar a página. Políticos inspiradores, unificadores e símbolos da reinvenção, como aconteceu por diversas vezes no passado, sendo o caso mais conhecido o de John F. Kennedy. Mas não foi esse o resultado que o sistema político-partidário produziu. Independentemente dos seus méritos, Joe Biden é um veterano do sistema político-partidário em fim de carreira.
Acusando um desgaste próprio do Velho Mundo, o país está profundamente dividido. A Constituição (símbolo maior da América liberal, republicana e democrática de fins do século XVIII) é vista por largos setores como entrave a uma maior representatividade. Também o sistema de governo presidencial, um dos modelos clássicos de democracia, a par do parlamentarismo europeu, está sujeito a tensões e disputas. A lógica federal original, em que o presidente é eleito de forma indireta (pelos representantes dos estados e não pelos eleitores), é contestada, ao permitir eleger presidentes sem a maioria do voto popular. A disputa prolonga-se na formação do Senado, onde a representação cabe aos estados. Em causa está manter a configuração ou alargá-la ao Distrito de Columbia e a Porto Rico. À sua maneira, a América vai evidenciando traços que lembram as tensões políticas da Europa, quando era centro do poder mundial. Isso não deve entusiasmar os europeus, vendo aí uma vingança da história, mas causar fundada apreensão, pois a Europa, só por si, é também cada vez mais irrelevante no mundo do século XXI.