A CAIXA DE CORREIO DE NOSSA SENHORA
“Olhe que não, olhe que não!”, um aparte de Álvaro Cunhal quando Mário Soares acusava os comunistas de quererem instaurar uma ditadura em Portugal, aludindo a todos os acontecimentos do chamado “verão quente” de 1975, tornou-se o “sound bite” (expressão que na altura não se usava) mais marcante do debate na RTP, em 6 de novembro desse ano, juntando os secretários-gerais do PS e do PCP. Mas foi só uma frase de dois segundos que sobrou de um debate que durou quatro horas? Não, evidentemente. Nem deste nem do outro debate, menos lembrado, porque travado em francês, numa emissão em direto para a a partir do Hotel Altis, em Lisboa, e bastante mais curto. Neste livro temos a transcrição e fixação do texto dos dois debates, espelhos da grande e insanável cisão política então vivida em Portugal, que viria a desaguar nos acontecimentos do dia 25 de novembro e tempos seguintes. Os debates estão devidamente enquadrados e comentados pelos autores, José Pedro Castanheira e José Maria Brandão de Brito, que aqui deixam bom contributo para a história de um ano tão decisivo.
Década revolucionária no mundo, a de 1960 tocou Portugal de formas diferentes, desde logo por o país a ter passado inteira mergulhado numa guerra em África, mas também por a incapacitação de Oliveira Salazar ter levado à sua substituição por Marcelo Caetano. O que a série de artigos contidos neste volume pretende aquilatar é, justamente, a forma como essa mudança se traduziu, ou não, em mudança (“Duas governações, diferentes políticas públicas?” é a questão colocada em subtítulo). Abordando temas como o modelo político, a sociedade, a diplomacia e a guerra, a economia, as finanças, a educação, a defesa, a legislação laboral, a previdência social, a saúde, a justiça e o colonialismo, um leque de conceituados autores desmonta, de certo modo, a ideia de que o marcelismo (em particular no seu primeiro momento, dito “primaveril”) representou uma evolução progressista face a um regime anquilosado. Desmontam-na porque, em grande parte, muitas das mudanças atribuídas ao marcelismo já vinham sendo debatidas e aplicadas sob a égide dos governos presididos por Salazar.
António Marujo, um dos mais destacados jornalistas portugueses dedicados ao fenómeno religioso, tropeçou um dia na informação de que o santuário de Fátima tinha em arquivo milhões de mensagens dirigidas à Senhora de Fátima, por crentes de todo o mundo, que se encontravam ainda numa fase precoce do seu tratamento. Sendo que em cada jornalista há, ou deve haver, uma veia de historiador, não mais o autor desistiu do tema, que pôde desenvolver (também com a colaboração do amigo e jornalista televisivo Joaquim Franco) graças ao balão de oxigénio que foi uma bolsa de investigação jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian. As guerras (ainda a Grande Guerra, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Colonial) estavam, à partida, no foco de António Marujo, que se propôs estudar o tema da guerra e da paz em relação com Fátima, mas o autor dá também nota, em menor escala, da intimidade que os remetentes de cartas sentem com a destinatária, abrindo-se, por exemplo, sobre questões afetivas, mais ou menos íntimas, mais ou menos corriqueiras, incluindo práticas que hoje são criminalizadas.