O longo caminho da perceção da imunidade ao milagre da vacinação
Num tempo em que circunstâncias excecionais fazem da vacinação um constante assunto da ordem do dia, perceber de onde tudo isto nos chega talvez ajude a respeitar mais, no presente, os milagres da ciência. E isso começa por ir do Neolítico até finais do século XVIII, quando a primeira vacina foi desenvolvida
Razões omnipresentes e repetidas ad nauseam, num tempo em que a informação se multiplica em linguagens, suportes e origens – das muito credíveis às absolutamente desprezíveis (por vezes, as mais populares) –, fazem com que as vacinas estejam na ordem do dia mais do que alguma vez antes sucedeu. Nem quando ocorreram os maiores triunfos da vacinação, como seja o único caso de erradicação declarada de uma doença humana, a varíola, o tema foi tão noticiado, replicado ou debatido como sucede por causa da pandemia de covid-19. É pertinente perceber, portanto, que as vacinas são o corolário não apenas de centenas, mas de milhares de anos de evolução do entendimento do mundo, da ciência ou da medicina, enquanto aplicação pragmática da ciência.
Talvez seja importante que os cidadãos comuns – curiosos e não especializados – percebam que a obtenção de vacinas para a doença que tem desestruturado a vida de toda a gente em todo o mundo, grosso modo ao longo do último ano e não se sabe ao certo por quanto mais tempo, foi um milagre de rapidez. Voltando à varíola, uma doença tremenda que matou milhões e milhões ao longo de milénios, é fulcral perceber que entre a invenção da vacina por Edward Jenner (foi o primeiro, faz sentido falar em “invenção”) e a erradicação da doença mediaram
quase 200 anos. E para se perceber melhor o triunfo que é a obtenção de vacinas para a covid-19 no espaço de um ano, refira-se, por exemplo, que as primeiras vacinas para a gripe só surgiram já durante a Segunda Guerra Mundial, bem depois do estímulo dado 20 anos antes pela terrível pandemia da gripe pneumónica (dita “gripe espanhola”).
Jenner foi o início, Pasteur marcou a evolução (raiva, cólera, carbúnculo) e cunhou o termo vacinação (em homenagem a Jenner). E muitos outros nomes ficaram escritos a ouro na história desta revolução sanitária. Por exemplo, praticamente toda a gente já terá ouvido falar em BCG, associando a sigla à vacinação contra a tuberculose, mas poucos pensarão nos franceses Albert Calmette e Camille Guérin, que descobriram uma forma de conseguir a imunização contra o agente causador da doença, isolado quase 40 anos pelo alemão Robert Koch, muito menos saberão que BCG significa “Bacilo de Calmette-Guérin”. Os mais velhos terão ainda presente, por exemplo, o enorme salto qualitativo representado pela vacina contra a poliomielite, mas o nome de Jonas Salk não será assim tão conhecido. E por aí fora.
O mais importante, que também não é compreendido por todos, é o facto de a vacinação ser não apenas um meio de proteção individual, mas também de salvaguarda da comunidade. Claro que os movimentos antivacinação, ainda hoje tão populares entre negacionistas e partidários de teorias da conspiração, são tão antigos como as próprias vacinas. Deles daremos conta, porque têm o seu valor histórico, mas sem exageros, pois esta breve abordagem versa a história do progresso científico, não da ignorância. E não podemos chegar à vacinação sem perceber o antes. Passe a expressão, que não é cientificamente rigorosa, há que falar das “vacinas” antes das vacinas.
A ideia de imunidade
Muito antes da ideia de vacinação teve de haver a perceção de imunidade. Ou, melhor, de imunização, da possibilidade de indivíduos, tendo tido contacto com a doença e sobrevivido, poderem posteriormente ficar a salvo dessa doença ou serem por ela menos afetados. Sem essa noção, evidentemente, ninguém poderia lembrar-se, muitos séculos depois, de, voluntariamente, inocular pessoas ou, num progresso de que mais à frente daremos conta, vaciná-las. E quando houve essa perceção? Ninguém saberá precisá-lo, mas é seguro, pelo recurso a fontes, encontrá-la na Antiguidade Clássica, a propósito da Praga de Atenas.
Praga de Atenas, assim com maiúsculas, é algo concreto, não uma entre outras doenças. Falamos da devastadora epidemia que, no século V a.C., matou dezenas de milhares de atenienses, entre eles o próprio Péricles, estadista e estratego que era a figura mais marcante do seu tempo, ou não tivesse a posteridade rotulado esse tempo de
“século de Péricles”. É por intermédio de um historiador que sabemos dessa terrível doença, ocorrida num tempo em que Atenas e Esparta estavam em pé de guerra. Na “História da Guerra do Peloponeso”, Tucídides diz-nos tudo o que sabemos sobre a maleita, embora não fique claro de que doença se tratava. Poderia ser tifo, poderia ser varíola, há até quem diga tratar-se de peste bubónica. Todavia, não é isso o mais relevante na abordagem que aqui pretendemos.
Fixemo-nos no seguinte excerto do relato de Tucídides:
“Aqueles que tinham ultrapassado a doença eram os que mostravam maior piedade pelos sofredores e pelos moribundos, uma vez que tinham experiência prévia e se sentiam confiantes, pois a doença não atacava a mesma pessoa uma segunda vez, ou, pelo menos, não a atacava fatalmente. Os que recuperavam eram felicitados pelos outros e, na euforia do momento, alimentavam a esperança vã de que, no futuro, estariam imunes à morte por qualquer outra doença”.
Tucídides, tido como o primeiro historiador, na tradição ocidental, a usar alguma metodologia para garantir rigor aos seus relatos, não era médico, mas certamente fez eco do que observavam os médicos de então (falamos de há quase 2500 anos, teremos de relativizar a noção de “médico”). E dá-nos, no texto que atrás reproduzimos, o reconhecimento de dois conceitos essenciais, embora sem a validação
que surgiria muito, muito mais tarde: a imunidade à infeção e capacidade de o sistema imunitário garantir menor severidade das recidivas.
Evidentemente, o que Tucídides testemunhava em Atenas seria observado por outras pessoas, noutras partes do mundo. E o longo caminho até à vacinação não partiu daquilo a que chamamos o Ocidente.
A importância da varíola
Curiosamente, zonas do globo que os preconceitos do nosso tempo associam ao surgimento de doenças estão, com boa dose de certeza, na origem desse milagre sanitário que são as vacinas. Os processos de inoculação que evoluíram, depois, para a vacinação, terão origem na China ou na Índia. E uma doença específica, a varíola, está na base de tudo.
Não há que admirar. Falamos de uma doença que toca a espécie humana desde sabe-se lá quando. Num livro publicado em 1988 pela Organização Mundial da Saúde (“Smallpox and its eradication”), os autores (Fenner, Henderson, Arita, Ježek e Ladnyi) apontam as duas teorias acerca do aparecimento da doença: a contaminação de humanos por um vírus já presente em roedores, algures no Paleolítico, ou a mutação de um vírus proto-varíola no vírus responsável pela doença que entendemos por varíola, uma doença própria dos seres humanos. Enfermidade importantíscientífica
a urgência do Hospital Santa Maria, em Lisboa, conta com um sistema de triagem 100. sima, já se percebe, pois viria a ser a primeira para a qual se desenvolveu uma vacina, no final do século XVIII, sendo ainda a única doença humana que se considera erradicada, assim proclamou a Organização Mundial da Saúde em 1980.
Não é possível precisar quantas pessoas matou a varíola através dos tempos. Muitos e muitos milhões, é certo, com a falta de rigor que sempre terá a análise de uma doença que se terá propagado, como outras, à medida que se processou a sedentarização dos humanos e a consequente convivência continuada com animais. Dez mil anos antes da nossa era? É uma estimativa razoável, mas sem evidências. Os mais antigos testemunhos da varíola sãotido
-nos dados pela observação de múmias do Antigo Egito, sendo habitualmente apontado o faraó Ramsés V como o primeiro humano conhecido com sinais de tal enfermidade. Estima-se que tenha reinado entre 1146 a.C. E 1142 a.C..
Depois disso, vão surgindo notícias que se podem associar à varíola, como a já referida Praga de Atenas ou como a Peste Antonina (a análise das fontes permite especular que foi varíola ou sarampo), declarada no século II da nossa era e que terá causado a morte de entre cinco e dez milhões de pessoas no mundo romano, onde entrou com legiões regressadas do Oriente. Ainda no Império Romano, mas já no século III, a Peste de Cipriano mataria, no seu período de maior intensidade, cinco mil pessoas por dia. Já no século VIII, presume-se que a varíola terá reingressado em território europeu pela Península Ibérica, com o início da penetração muçulmana, em 711, enquanto o desconhecido (do ponto de vista ocidental) Japão, três décadas depois, perdia um terço da sua população para esta doença. Em África, a varíola terá chegado em primeiro lugar por contactos com o mundo árabe e, muito mais tarde, através dos europeus, designadamente os portugueses. É também certa a presença da varíola entre as doenças que, levadas pelos espanhóis para as américas, foram a principal causa do desaparecimento das civilizações pré-colombianas.
Voltando à Europa, a varíola era, no século XVIII, a principal causa de morte, levando em média 400 mil pessoas por ano. E mesmo no século XIX, quando a vacina já existia, há registo de grandes epidemias de varíola como a que foi desencadeada pela Guerra Franco-Prussiana e matou, entre 1870 e 1875, meio milhão de pessoas.
Variolar ou não variolar
Não nos adiantemos e voltemos ao século XVIII, pois a ideia é chegar a Edward Jenner, cujo papel será abordado no artigo seguinte. Recuemos, aliás, ao século IX, em que encontramos textos chineses indicando que a varíola era transmitida por partículas em suspensão (hoje diríamos aerossóis) originárias das pústulas que rebentavam em indivíduos doentes. Ou seja, existia ali uma perceção do agente infeccioso. Ora, tal como havia feito Tucídides, também os chineses se apercebiam dos efeitos de imunização causados pela doença entre os que lhe sobreviviam. Por alturas do século XVI (Dinastia Ming), os chineses já praticavam a variolação, processo que Voltaire (1694-1778) descrevia: a matéria seca das pústulas era reduzida a pó, sendo este pó inalado. O processo não conferia em si imunidade, mas as pessoas varioladas contraíam a doença com sintomatologia mais ligeira do que se tivessem sido contagiadas naturalmente, podendo então ficar imunes.
A porta de entrada deste processo na Europa Ocidental foi o Reino da Grã-Bretanha (com essa designação a partir de 1707, na sequência do Tratado da União de 1806). E foi aí que, mais tarde, a vacinação veio a tornar-se uma realidade. Para essa posição de vanguarda britânica no Ocidente contribuiu em muito a fundação da Royal Society, em Londres, desde logo uma referência científica no mundo de então. Mas não se pense que a comunidade médica desse tempo estava unanimemente recetiva à variolação. A oposição baseava-se no facto de o procedimento não ser inteiramente seguro. E o debate não se esgotava em números, pois esses, sem contextualização, seriam enormemente favoráveis à adoção do processo: enquanto a varíola contraída normalmente matava 20 a 30% das pessoas afetadas pela doença, a variolação provocava morte por varíola de 0,5 a 2% das pessoas inoculadas. Quantitativamente, era uma diferença abissal, que não devia provocar dúvidas, mas o debate era mantido com base noutro pressuposto: enquanto a varíola não era um mal constante, surgindo em surtos e desaparecendo, a variolação implicava um contacto permanente da população com o agente infeccioso. E a dúvida daí nascida, evidentemente, colocava num enorme dilema os pais que sopesassem vantagens e desvantagens de inocular os seus filhos. Embora a séculos de distância daquilo a que chamamos sociedade da informação, em que as pessoas são inundadas por
notícias e opiniões de toda a sorte, os britânicos do século XVIII (os mais esclarecidos/favorecidos, claro) tinham conhecimento destes factos, sendo obrigados a ponderar entre a exposição voluntária à doença e a possibilidade de esta nunca vir a acometer os seus rebentos de forma natural (pairando sempre, como uma nuvem negra, a convicção de a contração natural da varíola, de que ninguém estava a salvo, ser potencialmente muito mais perigosa).
Uma aristocrata vanguardista
A grande dinamizadora da variolação na Grã-Bretanha foi Mary Wortley Montagu. Nascida Mary Pierrepont em família aristocrática, Lady Montagu era, decididamente, uma figura de vanguarda. Escritora, poetisa e feminista “avant la lettre”, escapou a um casamento combinado para fazer vida com o marido por ela escolhido, Edward Wortley Montagu, que foi embaixador britânico junto do Império Otomano. Enquanto permaneceu em Istambul, escreveu longamente sobre a condição feminina naquela sociedade tão diferente, mas o que aqui a traz é o facto de, na Turquia, ter tomado contacto com o processo da variolação, que a fascinou, tanto mais atendendo ao conhecimento que tinha da alta mortalidade causada pela varíola no país natal. E, em particular, porque ela própria tinha contraído a doença, aos 26 anos (ficou com cicatrizes no rosto), e porque essa
doença lhe levara um irmão, tinha este 20 anos.
Vejamos o que escreveu em carta dirigida a uma amiga, citada por David Isaacs em “Defeating the ministers of death – the compelling history of vaccination”:
“A varíola, tão comum e fatal entre nós, é aqui absolutamente inofensiva, devido à invenção do enxerto, o termo que eles usam. Há um grupo de mulheres mais velhas que desempenham a operação. As pessoas fazem festas para o efeito... a idosa leva uma casca de noz cheia com a matéria do melhor tipo de varíola. Abrem quatro ou cinco arranhões na pele com uma grande agulha e colocam nessa ferida tanta matéria quanta cabe na cabeça da agulha. Depois ligam a pequena ferida. Aqui, a varíola é tomada como uma espécie de diversão, como ir a águas nos nossos países.”
Ao testemunhar repetidamente este procedimento, Lady Montagu pediu ao médico da embaixada, Emanuele Timoni, para variolar o seu filho Edward, de seis anos. E foi esse médico quem, depois, informou a Royal Society da existência de tal processo. Outro médico, Charles Maitland, foi o primeiro a variolar alguém em solo britânico. E quem foi a criança inoculada? Mary, a filha de Lady Montagu, que era demasiado pequena quando estavam em Istambul.
Ora, desde que regressou a Inglaterra, em 1719, Mary Wortley Montagu escreveu insistentemente sobre a variolação, sendo amiúde escarnecida pelos que apontavam o processo como uma espécie de crendice oriental. Mas não se limitou a escrever. Fazendo parte da aristocracia, fez uso da sua rede de contactos poderosos, entre os quais a princesa de Gales, Carolina de Ansbach, mulher do futuro rei Jorge II. O papel da princesa, que tinha um reconhecido gosto pelas coisas científicas, foi convencer o marido e os médicos do palácio dos benefícios da variolação. E o processo teve, aí, um impulso decisivo para permitir a Maitland o prosseguimento das experiências. O médico já tinha inoculado a filha de Lady Montagu, como dissemos, mas faltava perceber quais os efeitos do procedimento em adultos. Precisava de cobaias, mas não necessitou de voluntários: foram postos à sua disposição seis prisioneiros, três homens e três mulheres.
Nenhum desses variolados contraiu a doença, mas a experiência não podia ficar por aí. Uma das mulheres, Elizabeth Harrison, de 19 anos, foi levada para a cidade de Charles Maitland, Hertford, então a braços com um violento surto de varíola, e posta a dormir todas as noites, durante seis semanas, com um doente de 10 anos. Elizabeth não contraiu varíola, tornando-se (mesmo que à força, o que também é mera dedução, pois não estão documentadas as circunstâncias da seleção de reclusos) a primeira grande demonstração científica da eficácia da variolação. E a fama do processo viamesma jou para longe. Para São Petersburgo, onde a imperatriz de todas as Rússias Catarina a Grande foi inoculada, ou para a América: em 1776, ano em que se deu a independência dos Estados Unidos, houve uma grande epidemia de varíola, e John Adams, que viria a ser o segundo presidente do jovem país, em 1797, e tinha sido variolado quando criança, decidiu, com a mulher Abigail, que ela e os quatro filhos deveriam submeter-se a idêntico processo; a variolação dela ocorreu sem problemas, e dois dos quatro filhos apresentaram alguns sintomas intensos, de que recuperaram. Apesar do susto, a variolação foi coroada de êxito, e a publicitação do sucesso ajudou a aumentar substancialmente a confiança dos americanos. O próprio John Adams declarou, a propósito: “Os factos são coisas teimosas: quaisquer que sejam os nossos desejos, as nossas inclinações e os ditames das nossas paixões, nada disso pode alterar os factos ou as evidências”.
Enquanto todo este processo seguia o seu curso, em 1947, a pequena cidade inglesa de Berkeley, no Gloucestershire, assistia ao nascimento de Edward Jenner, filho de um pastor anglicano. Este viria a ser naturalista e médico, e a grande descoberta da sua vida levou a que a variolação fosse banida do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda (com este nome entre 1801 e 1922). Essa descoberta/invenção foi a vacina, e de vacinas falaremos no artigo seguinte.