2 REGRESSOS, REVOLTAS E MANOBRAS
Período contemporâneo foi farto de agitação no Levante, somando ao advento do sionismo o sonho frustrado de um amplo Estado árabe e os interesses oscilantes de potências distantes
co, na Síria, essa decadência acentuou-se ainda mais. Pelo meio, por ali passou a expedição de Napoleão Bonaparte à Síria, que aqui não nos interessa, e acabou a Palestina por ser reconquistada pelo Império Otomano, mas a partir de sul, pelas tropas de Mehmed Ali, o governador otomano do Egito (de origem turca e albanesa), tido por fundador do Egito moderno.
Nesse período sob administração feita a partir do Egito, a Palestina, cuja população se foi tornando predominantemente árabe após a ocupação romana, não deixou de ser uma periferia no mundo otomano, mas conheceu um dinamismo superior ao dos séculos precedentes.
Nos artigos seguintes entraremos na contemporaneidade, aproximando-nos mais do nosso assunto. Será difícil, porém, compreender o nosso assunto sem estas referências que vimos apontando. O que é, afinal, a Palestina, e quem pode apresentar a legitimidade histórica como argumento político? A que terra começaram, no século XIX, a chegar os sionistas? Desde quando há palestinianos? E palestinianos foram sempre as populações árabes que hoje associamos à palavra? E como evoluiu, no período contemporâneo, a população judaica na Palestina? E por que falha sistematicamente a ideia de dois estados, um árabe e um judaico, vivendo lado a lado? E que peso tiveram os jogos geopolíticos das potências mundiais, que nem sempre foram as mesmas, na construção do barril de pólvora que praticamente todos conhecemos de toda a vida? E em que é que pensar nisto tudo nos foca ou nos distrai do problema que, hoje em dia, diariamente nos entra em casa?
Responder a essas perguntas depende, evidentemente, da familiaridade com conhecimentos deste tipo. A ausência dessa familiaridade resulta, quase inevitavelmente, em paixões, sejam elas quais forem, despidas de substância, o que as torna desde logo entraves à resolução dos problemas.
Será errado, embora a muitos não o pareça, estabelecer na grande Revolta Árabe de 1916-1918 o início da disputa contemporânea pelo território a que, no segundo século da nossa era, o imperador romano Adriano entendeu chamar Palestina, oficializando uma designação cuja génese explicamos em artigo anterior e pretendendo com isso limpar da face da Terra a própria ideia de um país judaico (a Judeia, como até aí se designava aquela província romana). Tampouco na episódica violência de árabes contra judeus em 1834, na medida em que essa se deve enquadrar numa revolta de camponeses contra o Império Otomano, por razões em nada relacionadas com anseios independentistas. O começo dessa disputa em termos de contemporaneidade, que não pode confundir-se com causa do conflito israelo-árabe (ou israelo-palestiniano, afunilando o conceito), poderá, de forma simbólica, colocar-se na década de 1880, com a Primeira Aliá (“aliá” é o termo que designa as migrações judaicas da Diáspora para Eretz-Israel), ainda antes de Theodor Herzl publicar “O Estado judaico” (Der Judenstaat, 1896) e da instituição/teorização do sionismo.
Tudo isto tem de ser explicado, sendo isso o que tentaremos fazer daqui para a frente, mantendo a possível linearidade na cronologia.
O artigo precedente terminou com o regresso desta grande região de que aqui nos ocupamos, bem maior do que a Palestina como a entendemos nos nossos dias, à esfera do Império Otomano, por via do Egito, que, nas mãos de Mehmed Ali, tinha a ambição de se autonomizar da alçada do sultão de Constantinopla, pelo que lhe interessava a Palestina como estado-tampão face aos turcos a norte. E é nesse contexto que encontramos uma primeira revolta árabe tendo a Palestina como pano de fundo, se bem que sem motivações nacionalistas, como já notámos. antes disso, temos de fazer um aparte que, uma vez mais, entronca nas questões religiosas, mas não só.
O que é, afinal, um árabe, além da assunção óbvia e redutora de apontar povos originários da Península Arábica? Não podemos aqui introduzir em detalhe uma questão que só serviria por confundir ainda mais os leitores, apenas vincar que o conceito implica uma heterogeneidade que vem desde muito antes da existência da religião islâmica. Há as divisões que podemos associar à tradição bíblica, pela qual os árabes descendem de Ibrahim (Abraão) por duas diferentes vias: através de Ismael, a norte, e de Qahtan, a sul, sendo que este último nem sempre é referenciado com ligação a Abraão. Daí temos divisões entre as tribos do Norte e as do Sul. Nizaritas, maaditas ou iemenitas são nomes que se associam a essa diferenciação, que não caberá aqui desenvolver, mas que, já o demos a entender em artigo anterior, contribuíram para outras divisões, essas mais relevantes nos dias de hoje, já decorrentes da religião islâmica e da sucessão de Maomé após a morte deste, sendo importante notar que foi já depois do desaparecimento do profeta que as tribos árabes do Sul foram puxadas para o islão, pois a nova religião monoteísta estava circunscrita ao Hejaz (grosso modo, a parte da Península Arábica banhada pelo mar Vermelho). De uma maneira geral, temos xiitas e sunitas, estes maioritários, e dentro dos grupos outras divisões foram surgindo. Devemos referenciar, entre os sunitas, uma tendência surgida no século XVIII a que se chamou wahabismo (ou uáabismo) , na medida em que surge associada ao chamado despertar árabe, embora nos nossos dias também não possa ser dissociada do integrismo islâmico e do jihadismo (de “jihad”, o termo árabe para a guerra santa). Essa corrente do islão deve o seu nome a Mohammed ibn Abd al-Wahhab (1703-1792), pregador que advogava um regresso ao islão primitivo, austero e rigoroso, preconizando mesmo o repúdio de muçulmanos que não se identificassem com essa visão resMas,
Repudiado pela sua própria tribo, Al-Wahhab veio a ser acolhido por Mohammed ibn Saud, que se encontra na base do que veio a ser, a partir de 1932, oficialmente, a Arábia Saudita, e da implementação entre os sauditas do wahabismo.
À dinastia saudita voltaremos, e a pergunta sobre o que é um árabe ficou, afinal, sem resposta que se veja. A heterogeneidade é grande na própria Península Arábica, ocupada por outros países, e maior ainda se formos ao Norte de África, à Palestina, à Jordânia, à Síria... Daí que a ideia de um Estado pan-árabe nunca tenha sido, como veremos, coisa muito exequível, independentemente das visões romantizadas que possam decorrer da leitura de T. E. Lawrence (o famoso Lawrence da Arábia) e da atribuição a potências estrangeiras, designadamente o Reino Unido, da culpa integral pelo fiasco dessa ideia. Estamos, porém, a adiantar-nos, pois queremos tocar os incidentes de 1834 na Palestina.
Uma revolta de camponeses
O poder de Mehmed Ali na Palestina era exercido pelo seu filho mais velho, que depois viria a suceder-lhe (por pouco tempo, pois a tuberculose matou-o) na governação do Egito, Ibrahim Paxá. E foi contra ele que, em 1834, os camponeses da Palestina (falar em palestinianos nesta altura só serviria para baralhar as coisas, pois não há correspondência com o conceito atual) se revoltaram, por duas razões essenciais: assuntos fiscais (uma das principais causas de revoltas em todos os lados e em todos os tempos) e o recrutamento forçado de todos os jovens em idade de combater, para engrossarem os exércitos otomanos que então combatiam reinos cristãos a norte. Rapidamente a revolta mobilizou outras pessoas, designadamente elites urbanas e líderes tribais beduínos.
Neste caso, a mobilização forçada terá tido mais peso do que a fiscalidade iníqua, e a revolta estendeu-se de maio a agosto, sendo esmagada – o massacre de Hebron é um episódio emblemático – e acabando os líderes por ser executados. Descrever os pormenores desta revolta afastar-nos-ia do que é o nosso assunto, pelo que, além de um ou outro acontecimento paralelo a que iremos adiante, interessa sobretudo perceber o que significou e o que dela resultou. No imediato, o território da Palestina manteve-se nas mãos do Quedivato do Egito, que integrava o Império Otomano com um estatuto de estado-vassalo, mas por pouco tempo: o quedivato havia invadido, em 1831, a Síria otomana, e isso acabou por resultar em guerra com os turcos, então aliados aos ingleses, após o que, em 1840, as tropas egípcias recuaram para o seu território de origem, regressando a Palestina à esfera otomana de uma forma direta. Isto não tem propriamente a ver com a revolta dos camponeses. Sobre essa, talvez baste reter as palavras da historiadora americana Judith Mendelsohn Rood:
“Quais são as lições de 1834? Neste caso, a revolta do campesinato contra a injustiça, tal como é definida na filosofia política sunita clássica, representou os interesses de toda a população local contra as políticas opressivas de Mehmed Ali Paxá. Esta rebelião fracassada foi uma luta pela liberdade contra a tirania de um regime autoritário, que controlava todos os aspetos da economia e da sociedade. Lutavam para salvar as suas crianças da morte em terras distantes, travando batalhas que não eram suas. A revolta fez-se para preservar a vida e o futuro. Nessa altura, não havia qualquer tipo de nacionalismo incipiente ou intenções de atacar a estrutura de classes do império.”
Não obstante, depois de décadas e décadas em que o assunto da revolta esteve apagado da memória coletiva dos árabes palestinianos, pois não era mais do que a recordação de uma derrota copiosa (resultou na perda de um quinto da população do território, intritiva.
cluindo camponeses deportados para o Egito para serem sujeitos a trabalhos forçados), essa visão mudou algures durante o século XX. A revolta de 1834, com o advento de um real nacionalismo palestiniano, passou a ser apresentada como uma das raízes desse mesmo nacionalismo. Todavia, pode também ser vista como um primeiro sinal, no período contemporâneo, da incompatibilidade entre árabes e judeus. Isto porque no decurso dos acontecimentos, designadamente aquando da tomada de Jerusalém, a multidão em fúria saqueou casas de judeus e, depois, vendo as suas fileiras engrossadas com marginais da cidade, estendeu o saque a lojas de judeus – mas também de cristãos, de francos (designação que era uma reminiscência das cruzadas, mas que os árabes aplicavam genericamente aos cidadãos originários da Europa ocidental) e até de muçulmanos. Mas a situação mais grave foi o continuado saque de Safed.
Ao longo de um mês e dois dias, de 15 de junho a 17 de julho de 1834, os rebeldes atacaram Safed, na Galileia. Tratava-se de uma das múltiplas comunidades judaicas que se mantiveram no território após (ou apesar da) a Diáspora, sendo que, com o aumento da influência árabe, passou a ser falante da língua árabe. Ou seja, judeus Musta’arabi, designação árabe para “os que vivem entre os árabes” ou “que se tornou árabe”, que na Península Ibérica sob domínio islâmico resultou no termo “moçárabes” para designar as populações cristãs tuteladas pela administração muçulmana. No Levante, essas comunidades Musta’arabi foram, desde o final do século XV, integradas por judeus sefarditas (expulsos da Sefarad, ou seja, da Península Ibérica), falantes de ladino (uma língua própria dos sefarditas), e a designação “Musta’arabi” deixa de se aplicar por essa altura. Enfim, isso clarifica apenas que a população de Safed era ali muito antiga, apesar de ter tido, ao longo dos séculos, uma existência conturbada (massacres de judeus em 1517 e 1660). A ira dos árabes revoltosos contra os judeus de Safed terá decorrido da ideia de que estes tinham uma postura de colaboração com o Egito, e os saques foram facilitados por um vazio de autoridade, atendendo a que Ibrahim Paxá mobilizara as suas tropas para pôr cobro à revolta em Jerusalém. Apontar estes acontecimentos como um “pogrom”, como faz alguma historiografia judaica, não será rigoroso, atendendo a que, embora não haja fontes que revelem com clareza o número de mortos, acredita-se que não tenha sido muito significativo, embora centenas de feridos indiciem a violência física.
A população foi conseguindo fugir e refugiar-se em zonas limítrofes, mas o saque e destruição foram em larga escala, incluindo-se o desmantelamento do único prelo hebraico em toda a Palestina, ao tempo, e a destruição de numerosos exemplares impressos dos textos sagrados.
É de assinalar que o saque de Safed foi travado por soldados drusos ao serviço do governador egípcio, sendo que apenas quatro anos depois, em julho de 1838, foram os drusos que atacaram a população judia de Safed, instigados por árabes. Isto embora, há que dizê-lo, também existam registos de árabes amigáveis que acolheram e ajudaram judeus em fuga.
Começam a chegar judeus
Para o que nos interessa, o domínio otomano é mais contextualização do que outra coisa, mas deixa de o ser quando se aproxima do fim. No contexto mais amplo da Primeira Guerra Mundial, a Grande Revolta Árabe é frequentemente tida como o que foi a resposta falhada, eventualmente por culpa da influência britânica, às preces nacionalistas dos árabes da Palestina. Será isso assim tão linear? Nunca é.
No início deste texto, apontámos as migrações de judeus para o Levante a partir da década de 1880, mesmo antes da institucionalização do movimento sionista, como possível ponto de arranque das inimizades que chegaram aos nossos dias e, mais do que certamente, prolongar-se-ão para além deles. Sendo acontecimentos que atrás descrevemos, designadamente os ocorridos em 1834, sinais claros de atritos entre diferentes povos (e religiões, naturalmente), não os podemos associar a qualquer tipo de disputa pela posse do território. Porém, esse movimento de judeus idos da Diáspora, a que se chama Primeira Aliá (designação hebraica), ou “aliá agrária”, indiciava (e explicitava, definindo como objetivo “a ressurreição política, nacional e espiritual do povo judeu na Palestina”) o desejo de construção de uma pátria judaica em Eretz-Israel. A emergência do nacionalismo palestiniano foi, em certa medida, uma ração a isso.
Balizada pelos anos de 1882 e 1903, esta Primeira Aliá foi alimentada sobretudo por judeus originários do Leste europeu e do Iémen, sendo estimulada por movimentos persecutórios de natureza antissemítica e inserindo-se, ainda, no contexto internacional de outros grandes fluxos migratórios, designadamente da Europa para as Américas, nos quais se incluíam também muitos judeus. E se de “primeira” se fala é porque outras houve: a Segunda Aliá (1904-1914, estimulada por novos pogroms na Rússia czarista e recrudescimento do antissemitismo); a Terceira Aliá (1919-1923, no essencial a continuação da Segunda Aliá, que havia sido interrompida pela Primeira Guerra Mundial); a Quarta Aliá (1924-1929, impulsionada pela crise económica, por políticas antijudaicas, designadamente na Polónia, e também pelo aperto das quotas de imigração impostas pelos Estados Unidos, tornando o “sonho americano” inacessível para muitos); a Aliá Bet (1939-1948, sendo “bet” a segunda letra do alfabeto hebraico e significando o plano de resgate e migração clandestina de judeus para a Palestina, durante e logo após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, ou Shoá, o assassinato sistemático e massivo de judeus pela Alemanha
Nazi, tendo por objetivo o seu total extermínio).
Ora, no final da primeira das vagas migratórias que acabámos de descrever havia, em território que hoje reconhecemos como a Palestina, mais 35 mil pessoas judias do que antes, 15 mil das quais estabeleceram comunidades agrárias, designadamente nos arredores de Jafa, onde veio a crescer a cidade de Telavive. Foi por essa altura, ou seja, na transição entre séculos, que intelectuais árabes da região,como Khalil Beidas (1874-1949) ou Khalil Sakakini (1878-1953), lançaram as bases teóricas para um nacionalismo próprio dos palestinianos (terá sido Beidas o primeiro a usar a palavra “palestiniano” para definir árabe da Palestina), surgindo enquadrados por um movimento cultural mais vasto, designado “Al-Nahda” (equivalente a “renascimento”) e envolvendo as populações árabes em territórios do Império Otomano. Tal não significa que se tivesse instantaneamente instalado uma identidade palestiniana generalizada. Muito menos que a Revolta Árabe de 1916-1918 tivesse no seu programa (desde logo, não tinha propriamente programa) a criação de uma Palestina independente. Nada disso.
Lawrence e os árabes
Quem já leu “Os Sete Pilares da Sabedoria”, de T. E. Lawrence, ou viu o magistral filme “Lawrence da Arábia”, de
David Lean e com Peter O’Toole no papel do protagonista, estará minimamente familiarizado com a Grande Revolta Árabe, que cruzou a Palestina e chegou a Damasco, mas nada tem a ver diretamente com nacionalismo palestiniano. Debrucemo-nos um pouco sobre ela.
Contextualizar a revolta ocorrida entre 1916 e 1918 obriga-nos a recuar algumas décadas, apenas para notar que, no século XIX, várias nações minoritárias no seio do Império Otomano revoltaram-se contra o poder dos turcos, buscando independência ou incrementos de autonomia, nomeadamente os gregos, os búlgaros e os sérvios. Esse foi um dos fatores que levaram o governo otomano, inspirado pela emergência de regimes constitucionais na Europa (a transição para democracias liberais), a criar um Parlamento e uma Constituição, que duraram pouco tempo, de 1876 a 1878, vindo a ser restabelecidos em 1908, no âmbito da Revolução dos Jovens Turcos. Não nos interessam aqui as importantes reformas estruturais, exceto no que respeita ao objetivo de tornar o império mais inclusivo para as minorias que o habitavam. Dito assim, pode até parecer um sinal de tolerância, mas não: a ideia era aculturar à força as populações não otomanas, no seio do império, o que passava, por exemplo, pela imposição da língua turca em todo o sistema escolar (excluindo os níveis mais básicos) e em todo o aparelho administrativo. Disso há reminiscências nos dias de hoje, como o uso da língua turca por minorias em numerosos países que estiveram integrados no Império Otomano, designadamente nos Balcãs. Para os árabes, porém, isso era um sinal de opressão intolerável, em parte porque – e cá voltamos a colocar a religião em campo –, para muitos, o Alcorão só pode ser recitado (ou até reproduzido) em árabe, a língua em que as revelações foram feitas a Maomé.
Não sendo obviamente o único, esse foi um fator preponderante para o fortalecimento de um nacionalismo árabe. Por aí, de forma muito eficaz, ganhava raízes a ideia de que a religião, sendo um fator de unidade, podia também ser um elemento diferenciador: todos muçulmanos, mas muito diferentes uns dos outros. E os árabes, eram todos a mesma coisa? Nem por isso e, na verdade, só depois da Primeira Guerra Mundial o nacionalismo árabe, enquanto ideologia pela qual todos os árabes constituem uma só nação, ganhou solidez: antes disso, e durante a revolta encetada em 1916, os súbditos de etnias árabes no seio do Império Otomano reviam-se nas suas identidades tribais, muito diversificadas, e não nesse unificador conceito de nação árabe. Não obstante, o Primeiro Congresso Árabe, realizado em Paris, em 1913, foi um primeiro sinal, reclamando maior autonomia das regiões árabes, designação do árabe como primeira língua a usar nesses territórios e, ainda, a prerrogativa de os soldados árabes cumprirem serviço nas suas regiões de origem e não noutras partes do Império Otomano.
Para justificar a revolta é frequente dizer algo do género: havia tudo para criar um grande Estado árabe, e os britânicos prometeram apoiar essa ideia, dando depois o dito por não dito quando assinaram secretamente, com os franceses, o Acordo Sykes-Picot, designado com os apelidos dos diplomatas envolvidos nessa negociação. Uma lei
tura simplista como essa resulta, quase sempre, na ideia de que alguém se portou mal ou atraiçoou a causa que antes dissera abraçar. E quase sempre é errónea ou, pelo menos, redutora. Neste caso, temos de perceber que havia interesses particulares em jogo: i) o Reino Unido, querendo ver atacado o Império Otomano a sul, depois do fracasso dos Dardanelos (ver JN História N.º 26), e esperando daí um enfraquecimento genérico das Potências Centrais, no contexto da Grande Guerra, decidiu a páginas tantas apoiar a revolta; ii) o xerife de Meca, Hussein ibn Ali, ambicionava um grande reino árabe em que ele próprio fosse o soberano, particularmente desde a deposição do sultão Abdulamide II, em 1909, e ao ver que o governo otomano, assumido desde 1908 pelo Comité União e Progresso, lhe retirava cada vez mais autonomia (também por os otomanos não terem obtido apoio do xerife de Meca à guerra santa – jihad – declarada às Nações Aliadas pelos turcos).
A ideia de um Estado árabe – ao qual seria vital o reconhecimento por parte do Reino Unido – estava explícita no chamado Protocolo de Damasco, estabelecido por duas sociedades nacionaalistas árabes secretas, que haviam sido previamente contactadas por Faiçal (voltamos às figuras retratadas em “Lawrence da Arábia”), filho do xerife de Meca. Os primeiros contactos entre árabes e britânicos, encetados por Abdullah, o irmão mais velho de Faiçal, não haviam suscitado grande entusiasmo. O Reino Unido tinha um peso ainda maior na região desde 1914, quando transformou o Egito num seu protetorado (o Sultanato do Egito, que durou até 1922), mas só decidiu dar algum apoio à revolta árabe com a evolução da Grande Guerra, ou seja, com a Turquia a contar-se entre as nações inimigas. Os contactos estabelecidos, por correspondência, foram entre Hussein, o xerife de Meca (líder dos hachemitas, dinastia descendente em linha direta de Maomé), e Arthur Henry
MacMahon, alto comissário britânico no Sultanato do Egito, tendo este, de forma não totalmente explícita, transmitido a ideia de que o Reino Unido apoiaria a criação de um Estado árabe independente, depois da guerra. É neste contexto que Lawrence, entre outros, é enviado para junto dos árabes, estando com Faiçal, por exemplo, na tomada da cidade portuária de Aqaba (atual Jordânia), e os árabes também tiveram importante papel no auxílio aos britânicos contra posições estratégicas dos otomanos, como sejam as que facilitaram a tomada de Jerusalém, no final de 1917. Resumindo muito, a revolta desencadeada no Hejaz acabou por chegar tão longe como Damasco, o centro da administração otomana na Palestina (uma Palestina muito mais vasta do que a que hoje entendemos como tal e à qual podemos, usando uma designação que remonta ao século XV, chamar Síria Otomana). É depois disso, com a chegada ao fim da Grande Guerra, que entra em campo a realpolitik, tratada anos antes no Acordo Sykes-Picot que já mencionámos atrás. Depois materializada pela partição do Império Otomano decidida na Conferência de Paris, que, a partir de janeiro de 1919, decidiu a ordem mundial saída da Grande Guerra. O Acordo Sykes-Picot, firmado secretamente em 1916, estabelecia zonas de influência no Médio Oriente, de acordo com os interesses coloniais do Reino Unido e de França. Depois, havia também contactos da diplomacia britânica com o Movimento Sionista, da qual resultou a Declaração Balfour (recebeu o nome do então ministro britânico dos Negócios Estrangeiros – foreign secretary), em 1917, prevendo o estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina, embora não especificando fronteiras nem estatuto político: “O Governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um lar nacional para o povo judeu e fará uso dos seus melhores esforços para facilitar a prossecução deste objetivo, ficando claramente entendido quer nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na Palestina, bem como os direitos e estatuto político de que gozem os judeus em qualquer outro país.”
Daí até ao Estado de Israel, muita água correria sob as pontes ou muitos grãos de areia voariam sobre o deserto.
Ou seja, essas negociações ocorriam com a grande revolta em curso. Do ponto de vista dos árabes, face ao que haviam sido as promessas de MacMahon, as consequências eram uma traição. Mas, há que sublinhá-lo, os árabes não eram aquilo a que hoje chamamos palestinianos. Do ponto de vista de Hussein ibn Ali, xerife de Meca, ele próprio seria o centro de um futuro Estado árabe, que poderia ter reinos-satélites: já depois da Conferência de Paris, o filho Faiçal foi escolhido para rei da Síria pelo Congresso Nacional Sírio, realizado em março de 1920, mas nunca chegou a sê-lo de facto. Nascida depois da Primeira Guerra Mundial, a Sociedade das Nações regulou a partição dos despojos do Império Otomano, colocarando boa parte do Médio Oriente, sob a forma de mandato, em mãos francesas (a Grande Síria, grosso modo a Síria e o Líbano) e britânicas (a Mesopotâmia, ou seja, o Iraque, e a Palestina, esta por final decisão de uma conferência interaliados realizada em Itália, em 1920), remetendo os árabes ao reino de Hejaz, no qual governaria Hussein ibn Ali. Todavia, a questão na Península Arábica não se esgotava aí: os britânicos tanto apoiavam Hussein como o seu rival, Abdelaziz ibn Saud, então chefe da dinastia saudita e soberano do Nejd. Sabemos bem que essa disputa foi favorável a Abdelaziz ibn Saud, resultando em 1932 na formação do atual reino da Arábia Saudita. Os hachemitas, os tais descendentes diretos do profeta Maomé, acabaram por ficar cingidos à dinastia reinante da Jordânia, encetada por Abdullah, filho do xerife de Meca a quem também já aludimos, que em 1921 estabeleceu o Emirado da Transjordânia, protetorado britânico até à independência, declarada em 1946.
Mandato britânico
Chegamos assim, finalmente, ao Mandato Britânico na Palestina. Como já vimos, o final da Primeira Guerra Mundial permitiu que fosse retomado o fluxo migratório de judeus rumo ao Levante. De forma timorata no primeiro ano (1806 pessoas em 1919), o fluxo cresceu para a ordem dos oito milhares de pessoas/ano, nos quatro anos seguintes, sendo já de 13 892 em 1924 e dando um salto para 34 386 em 1925, ou seja, nos dois primeiros anos da Quarta Aliá, associada à intensificação da pressão sobre os judeus em determinados espaços da Europa Central. Enfim, em 1940, com a Segunda Guerra Mundial ativa e ainda antes de a Alemanha nazi desencadear a “Solução final”, ou seja, antes do Holocausto, a população do Yushuv (palavra hebraica que significa colonato, mas é entendida como a população judaica antes da criação do Estado de Israel) chegava às 450 mil pessoas.
Esse crescimento demográfico não era bem visto pela população árabe da Palestina, que, organizada no Alto Comité Árabe desencadeou nova revolta, que durou de 1936 a 1939, tendo dois alvos específicos – o poder colonial britânico e a crescente comunidade judaica na palestina, cuja ação passava também pela compra sistemática de propriedades –, e reclamando um Estado árabe e a nulidade da Declaração Balfour. Ainda enquadrado pelo nacionalismo árabe, nos termos globais (e pan-arábicos) que antes enunciámos, este movimento marca o início de uma luta específica dos árabes da Palestina, embora ainda sem se enquadrarem nitidamente como “povo palestiniano” (daí a designação “Alto Comité Árabe”: como nota, diga-se que a Liga Árabe, entre cujos fundadores havia repre
sentantes dos árabes palestinianos, só foi criada em 1945).
O contexto desta nova revolta era, evidentemente, o caldo de cultura em que se preparava, na Europa, uma guerra muito mais destrutiva do que a de 1914-1918, que ao seu tempo havia sido rotulada de “guerra para acabar com todas as guerras”. Foi esse o fator determinante para uma nova inflexão da política britânica para o Médio Oriente, que traduziu, por exemplo, a necessidade de salvaguardar as linhas de fornecimento de petróleo, atendendo à iminência de um novo conflito de âmbito generalizado. Face à revolta, um sinal claro de que não seria viável a convivência de árabes e judeus num só Estado (já em 1929, em Jerusalém, os árabes haviam causado tumultos de que resultou a morte de largas dezenas de judeus), a Comissão Peel (liderada pelo conde William Robert Wellesley Peel) emitiu um relatório, em 1937, dando conta de que não havia condições na Palestina para prosseguir o mandato conferido ao Reino Unido pela Sociedade das Nações, recomendando pela primeira vez uma partição do território por dois estados, sendo o judaico bastante menor do que o árabe. Entre os judeus sionistas havia visões dissonantes, mas prevaleceu a ideia de que tal seria melhor do que nada, ou um começo, além de proporcionar uma solução para o grande problema do momento, a fuga de judeus da Europa. Já os árabes nunca aceitaram esse tipo de partilha, mesmo com posteriores versões em que o território a conceder aos judeus ia sempre diminuindo.
Uma consequência muito relevante deste estado de coisas foi o surgimento, no seio das comunidades judaicas, do Irgun Zvai Leumi (Organização Militar Nacional), uma organização paramilitar que preconizava a lei de talião, respondendo ao terrorismo com terrorismo. Isso revelava uma importante cisão entre judeus sionistas, materializada no surgimento de uma fação ra
dical de direita a que se chamou “sionismo revisionista” e reclamava um Estado judaico em território muito maior do que veio a ser Israel, ocupando as duas margens do rio Jordão e estendendo-se ao que veio a ser a Jordânia. Tal postura, de que resultou com a independência de Israel o partido Herut, foi duramente criticada, em público, por intelectuais judeus fixados nos EUA, como Albert Einstein ou Hannah Arendt. A título de curiosidade, diga-se que o fundador deste partido (uma das bases do atual Likud) foi Menachem Begin, que na década de 1970 foi decisivo nas negociações paz com o Egito apadrinhadas pelo presidente americano Jimmy Carter.
Mas voltemos aos momentos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial. A inflexão na política britânica a que atrás aludimos teve ainda um outro momento decisivo, com a produção do Livro Branco de 1939, ou Livro Branco de MacDonald (assim chamado em alusão ao homem que ocupava, no governo liderado por Neville Chamberlain, a pasta das Colónias). Esse documento não era se não um instrumento de preparação para a guerra, que isolou ainda mais os sionistas. Veja-se o equilíbrio de forças: tanto a Alemanha nazi (ou o Eixo) como a União Soviética, que por esses tempos se “uniam” com o Pacto Ribbentrop-Molotov (ver JN História N.º 19), eram aliadas da causa árabe, mas os britânicos também não podiam melindrar os árabes, pelas razões que já apontámos (abastecimento de petróleo e manutenção do controlo de uma região estrategicamente crítica). Logo, optaram por alterar o que pretendiam para quando terminasse o mandato britânico na Palestina, em 1948: preconizava-se a criação de um único Estado, conquanto os interesses e direitos de todas as comunidades fossem salvaguardados, e desde logo colocava-se um travão à emigração de judeus para a Palestina, impondo quotas muito restritivas: um máximo de 75 mil pessoas em cinco anos, justamente quando as perseguições na Europa recrudesciam e quando se preparava o extermínio de seis milhões de judeus. Também proibiram ou limitaram a compra de terre
nos na Palestina por judeus. E não foram só os britânicos a ficar mal no retrato face ao drama dos judeus que tentavam fugir do nazismo, como se pode verificar em artigo publicado na edição N.º 21 da nossa revista.
A “Aliá Bet” e a Resolução 181 (II)
O Holocausto foi, não custa compreendê-lo, um trauma que, no final da Segunda Guerra Mundial, deu impulso à criação do Estado de Israel. Muita gente, por ação ou por inação, tinha culpas no cartório, e isso facilitou a decisão das Nações Unidas, em 1947. Porém, o fim da guerra não significou, instantaneamente, o aval da comunidade internacional (na verdade, a fundação das Nações Unidas só ocorreria em outubro de 1945, pelo que o conceito de “comunidade internacional” aplicado antes disso é uma coisa algo vaga, ou maleável). O Reino Unido, cujo mandato na Palestina permanecia em vigor, manteve as restrições à entrada de judeus, o que levou a uma intensificação das migrações clandestinas, envolvendo gente de todo o mundo, mas em esmagadora maioria da martirizada Europa: no âmbito da Aliá Bet, entraram no território perto de 110 mil judeus; desde o início do mandato britânico, após a Primeira Guerra Mundial, chegaram a Eretz-Israel cerca de 480 mil judeus, nove décimos dos quais originários da Europa; à data da proclamação da independência, em 14 de maio de 1948, a população do Yushuv (os judeus na Palestina antes da oficialização do Estado) era de aproximadamente 650 mil pessoas. Hoje, numa população que ronda os nove milhões de pessoas, 73,5% são judeus, sendo que 79,7% desses nasceram em Israel.
Ora, a manutenção das restrições impostas pelo Reino Unido, nos momentos imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial, provocaram sistemáticas ações militares dos judeus da Palestina contra os britânicos, algumas dela de natureza terrorista, como o atentado perpetrado pelo Irgun, que nem era o principal grupo paramilitar judaico, contra o Hotel Rei David, em Jerusalém, no dia 22 de julho de 1946 (91 mortos e 46 feridos).
Aproximando-se o fim do mandato que lhe havia sido conferido pela desaparecida Sociedade das Nações, o Reino Unido, incapaz de lidar sozinho com a questão, apelou à jovem Organização das Nações Unidas para que encontrasse uma solução para o problema. Veio esta a materializar-se na Resolução 181 (II), aprovada em 29 de novembro de 1947 pela Assembleia Geral (33 votos a favor, 13 contra, dez abstenções, incluindo a do Reino Unido, e uma ausência): dois estados, um judaico e outro árabe, numa Palestina dividida em seis parcelas desencontradas, ficando a sempre disputada cidade de Jerusalém sob tutela internacional. Como nota, pois seria demasiado exaustivo estar aqui a desenvolver o tema da demografia, a generalidade das circunscrições do território, independentemente do lado a que fossem atribuídas, tinham uma maioria árabe, à exceção de Jafa (onde se vinha estabelecendo a cidade de Telavive e onde a maioria judaica era já muito evidente). Também a posse da terra era um argumento usado pelos árabes, pois à sua população pertenciam, maioritariamente, as terras a integrar no futuro Estado judaico, apesar das várias vagas de aquisição de propriedades pelos sionistas, desde o início das migrações para o Levante. Isso preocupava David
Ben Gurion, que veio a ser o primeiro chefe do governo de Israel: “A população total do Estado Judeu, quando for estabelecido, inclui perto de 40% de não judeus. Essa composição não oferece uma base estável para um Estado Judeu. Este facto deve ser encarado com total clareza. Com tal composição, não poderá haver a certeza absoluta de que o controlo permanecerá nas mãos da maioria judaica. Não poderá haver um Estado Judeu forte e estável enquanto tiver uma maioria judaica de apenas 60%”.
Claro que, previsivelmente, o estabelecimento de Estado judaico intensificaria, como veio a verificar-se, o afluxo de judeus de todo o mundo. Ora, o princípio por trás do movimento sionista implicava que a população do novo país fosse, de forma expressiva, maioritariamente judaica, o que veio a desencadear, posteriormente, deslocamentos de populações e crises de refugiados (a começar pela Nakba, termo árabe que significa catástrofe e se aplica à deslocação massiva de árabes palestinianos em 1948 – uma história que terá o seu lado negro, associado à expulsão de árabes e a casos de alegados saques perpetrados por israelitas). Todavia, é importante sublinhar que isso nunca fez de Israel um Estado confessional (mesmo com a legitimação histórica assente em boa parte nos livros sagrados), sendo que os índices de teocracia são bem mais elevados nos países islâmicos da região.
Todos os países árabes membros das Nações Unidas ao tempo votaram contra a resolução que determinou a partição da Palestina. Todos, incluindo os árabes da Palestina, lutavam pela ideia de uma grande nação árabe em todo o Médio Oriente. A causa dos árabes da Palestina existia, claro, mas não era a grande causa. Ora, o Estado judaico era, evidentemente, um corpo estranho no seio dessa grande pátria árabe (independentemente do estatuto que pudesse vir a ter, como, por exemplo, uma federação de esta
dos), e todas as declarações iam no sentido de expulsar os judeus da Palestina ou exterminá-los. “Continuaremos a lutar até os sionistas serem aniquilados”, declarou o nacionalista palestiniano (e líder religioso) Amin al-Husseini, que depois veio a ser presidente do autoproclamado Protetorado de Toda a Palestina, um Estado dependente do Egito que correspondia à Faixa de Gaza e que teve curta duração, de 1948 a 1959, se de facto existiu: no final, era, como já tinha sido, uma região militarmente ocupada pelo Egito (que desde então contribuiu para a sua “guetização”, mantendo sempre impermeável – ou, pelo menos, apertada – a fronteira da Faixa de Gaza com o seu território.
Surgem o Estado de Israel e a guerra
Neste contexto que traçámos de forma muito resumida, os sionistas, apoiados na resolução das Nações Unidas, proclamaram o Estado de Israel no preciso momento em que o mandato britânico na Palestina chegou ao fim. No dia 14 de maio de 1948 (o quinto dia de Iyar de 5708, no calendário judaico), em Telavive, Ben-Gurion leu a declaração de independência que começava assim: “Nós, membros do Conselho do Povo, representantes da comunidade judaica de Eretz-Israel e do Movimento Sionista, estamos aqui reunidos hoje, no dia em que termina o mandato britânico sobre Eretz-Israel, e, em virtude do nosso direito natural e histórico e com a força da resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, declaramos o estabelecimento de um Estado judaico em Eretz-Israel, a ser designado por Estado de Israel”.
Entre a votação da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1947, e a declaração lida por Ben-Gurion, em 1948 (na realidade, falamos de um período de seis meses), a Palestina viveu num clima de guerra civil, que, com a independência de Israel deu lugar a conflitos entre estados ou entre o Estado de Israel e organizações palestinianas de índole muito diversa, da Organização de Libertação da Palestina (fundada em 1964, congregando diversas fações palestinianas) ao partido terrorista Hamas e similares. O gatilho para esse estado de coisas foi a aprovação da Resolução 181 (II), pois gerou festejos por parte da população judia, protestos por parte da população árabe e subsequentes confrontos ao longo dos meses seguintes. O espaço onde isso sucedia era, ainda, a Palestina sob mandato britânico, o que refreava a intervenção dos países circundantes. Com a declaração de independência de Israel, tudo mudou de figura.
Como dissemos, David Ben-Gurion leu a declaração em 14 de maio de 1948, e não foi preciso esperar muito para a guerra começar. No dia seguinte, os exércitos do Egito, da Transjordânia e da Síria, bem como um contingente enviado pelo Iraque, invadiram o que antes era o mandato britânico na Palestina, avançando sobre o que havia sido declarado como Estado de Israel. Em termos de legitimidade internacional, os israelitas estavam seguros, até porque as duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos e União Soviética, foram lestas a reconhecer o novo país. Militarmente, o grupo paramilitar Haganah tornou-se a principal base do Exército israelita (IDF). Nos tempos finais do mandato britânico, os responsáveis do futuro Estado de Israel haviam tido consciência de que haveriam de ser atacados, comprando, sistemática e clandestinamente, no exterior, armamento, que ia de armas ligeiras a bombardeiros B-29 declarados como material agrícola. Os países árabes também não tinham grande sofisticação bélica (as tropas da Transjordânia, preparadas pelos britânicos, seriam as mais bem apetrechadas) .
Enfim, não se pretende aqui entrar pelos caminhos da história militar, pelo que transitamos já para o desfecho, em 1949. Israel saiu vencedor deste conflito com múltiplas frentes, passou a designá-lo “Guerra da Independência” e aumentou em cerca de três quartos o território que lhe havia sido atribuído pelas Nações Unidas. O Egito ficou com o controlo da Faixa de Gaza e a Jordânia com o poder na Cisjordânia (West Bank), territórios que pertenceriam ao Estado árabe na Palestina que até hoje nunca se concretizou. Sobre essa guerra de 1948-1949, queremos apenas deixar aqui mais uma nota, que diz mais do que veio a ser Israel do que do comportamento de Israel nesse conflito. Há cerca de um ano, a historiografia, obviamente baseada em fontes documentais, avançou com a forte possibilidade de Israel, durante essa primeira guerra com os países árabes, ter usado armas biológicas em aldeias de árabes palestinianos, envenenando poços. O uso de armas químicas e biológicas já é proibido pela comunidade internacional desde o final da Primeira Guerra Mundial, pelo que ninguém pode argumentar que tal prática era legítima, e nestes conflitos há sempre horrores de parte a parte. O importante, aqui, é notar que essa revelação foi feita por historiadores israelitas e divulgada em jornais israelitas, o que é demonstrativo da qualidade da democracia (insistimos que é o único país democrático em todo o Médio Oriente), mesmo quando o governo é ocupado por forças de extrema-direita, que, eventualmente, optariam por silenciar essa revelação.