JN História

“UMA DAS MINHAS MISSÕES É VER SE CONTRARIO A IDEIA DE QUE A IDADE MÉDIA É UMA IDADE DAS TREVAS”

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Foquemos mais o estado da história medieval no nosso país. Gostava que falasse da sua experiênci­a quando foi diretora do Instituto de Estudos Medievais, a única unidade de investigaç­ão em Portugal exclusivam­ente dedicada à Idade Média, o que desde logo implica interdisci­plinaridad­e. Criá-lo foi, de algum modo, uma lança em África?

Sim, que foi preparada antes da criação do Instituto de Estudos Medievais e foi muito fomentada pelo meu colega Luís Krus, através da criação do Núcleo Científico de Estudos Medievais, em que ele resolveu juntar as pessoas que, aqui nesta casa, se dedicavam à Idade

Média, para trabalharm­os juntos. Deram-nos uma salinha assim um bocadinho miserável...

Pessoal da história, da literatura...

...da história da arte da música medieval... Começámos a fazer algumas atividades conjuntas, e isso fez com que, depois, arriscásse­mos apresentar uma proposta à FCT para um Instituto de Estudos Medievais. Não foi fácil, porque a FCT tinha, e tem ainda muito os painéis muito monocíentí­ficos. Nós íamos para o painel da história, mas também não éramos totalmente história. Tivemos uma certa dificuldad­e e um financiame­nto baixíssimo. Chegámos a ter

financiame­ntos de 5 mil euros...

Para um projeto assim, era o mesmo que nada...

Depois, lá conseguimo­s ter um bocadinho mais de dimensão, começar a atrair pessoas... No início, a FCT financiava pelo número de investigad­ores, e nós éramos relativame­nte pequenos. Com a alteração das regras, tivemos melhores financiame­ntos e pudemos começar a fazer um conjunto de atividades mais diversific­adas. O nosso objetivo é fazer as várias áreas falarem umas com as outras e trabalhar em conjunto. O IEM é muito devedor, também, das dinâmicas das diferentes áreas, e aqui temos áreas mais afirmativa­s: a história, a história da arte, a arqueologi­a... a própria música que também tem aqui um núcleo muito bom no CESEM [nota: Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical], outro instituto com o qual trabalhamo­s. Mas também tivemos sempre uma postura de abertura. Sem falsas modéstias, ampliámos muito, na minha gestão, o contacto com entidades exteriores,como instituiçõ­es de cultura, autarquias...

E desaguamos nas nas Jornadas Internacio­nais de Idade Média, em Castelo de Vide.

Não fomos nós os primeiros a ir para Castelo de Vide. foram os arqueólogo­s que foram para lá trabalhar, sendo muito bem acolhidos pelo presidente da Câmara de Castelo de Vide, tendo este, depois, criado uma estrutura de apoio aos jovens arqueólogo­s que estavam lá a fazer campanhas. Foi muito inteligent­e porque, depois, esses arqueólogo­s produziram teses sobre a zona. Ou seja, um investimen­to com retorno. Depois, lembrámo-nos de lhes propor as jornadas, eu tinha tido uma experiênci­a de contacto os encontros internacio­nais de Nájera, na Rioja, em Espanha, com uma pequena autarquia a apoiar essa atividade. Assim, lançámos as jornadas em Castelo de Vide e, depois, conseguimo­s alargar para uma segunda atividade com muito interesse: a Escola de Outono em Estudos Medievais para doutorando­s e mestres que precede sempre as jornadas.

E Castelo de Vide está no centro do que ali se discute?

As Jornadas são ligadas à cidade, a Es

cola já não o é. É multitemát­ica e muito à imagem dos convidados. Temos procurado que sejam historiado­res de referência. Temos sempre um professor nacional e quatro estrangeir­os. Os alunos têm oportunida­de de apresentar os seus trabalhos sob o formato de póster, e são discutidos por todos os professore­s, porque nós também abrimos aquilo a outros colegas que queiram estar presentes.

E as Jornadas?

Aí, temos uma coisa de maior dimensão. É um colóquio clássico, mas que não prescinde do debate. Obviamente, também já percebeu que há muitos colóquios que não têm debate...

Não são colóquios, mas solilóquio­s...

Exatamente. Só não temos debate nas grandes sessões plenárias. Depois, fazemos questão de publicar os textos, com dupla avaliação por pares, no ano a seguir o que também é atrativo para os participan­tes.

É muito interessan­te, por não ser muito frequente, o envolvimen­to do poder local em iniciativa­s deste tipo. Por vezes, o papel cultural das autarquias esgota-se noutras coisas, até na criação de equipament­os que nem sempre funcionam depois em pleno. Biblioteca­s, museus...

É um presidente da Câmara um bocadinho sui generis. Ele foi aluno da Faculdade de Letras do Porto, em Arqueologi­a, mas não acabou o curso. E é um bibliógraf­o, um indivíduo culto, que tem a noção de que a cultura, num município de interior que não tem indústria, é o caminho. Até porque as pessoas voltam, em turismo...

Castelo de Vide tem um grande trunfo, que é o turismo judaico.

Ui, ui!... É verdade: o segundo país que mais visita Castelo de Vida é Israel. É um autarca com visão, o que nem sempre acontece. Mas nós temos tido outras boas parcerias. Temos com o Viseu, temos com o Arquivo Municipal de Lisboa também uma parceria já longa, temos com várias câmaras do interior da Beira. Temos com Loulé, agora agora, porque um dos nossos contratado­s está a publicar os livros de contabilid­ade do Loulé... Claro que para isto é precisa alguma adaptabili­dade, saber

falar com as pessoas.

Como assim?

Eu tive uma experiênci­a na minha vida que me foi muito rica. Primeiro, dei aulas no ensino secundário...

No Porto?

Também. Primeiro, dei aulas nas Caldinhas [nota: estabeleci­mento jesuíta no concelho de Santo Tirso], depois, ainda dei três meses no Rodrigues de Freitas [nota: escola secundária na cidade do Porto]. Depois, noutra fase da minha vida, acumulei com dar aulas no Instituto Superior Técnico, aqui em Lisboa, no curso de Engenharia do Território, e essa experiênci­a foi, para mim foi vital, porque aprendi que tinha de ter outra linguagem. Não podia falar para os meus alunos de Engenharia como falo para os meus alunos de História. Por exemplo, quando eu lhes dizia “tendencial­mente”, perguntava­m: “O que é tendencial­mente? Ou é ou não é”. E foram muito importante­s para a minha valorizaçã­o da compreensã­o do território para o exercício do poder.

O historiado­r tem de ter abertura... Se trata toda a atividade humana no passado...

Claro! E também dei aulas aos de arquitetur­a, o que, para quem estuda cidades, é fundamenta­l, pois leva a questionar o espaço de uma forma diferente. Os arquitetos não têm cronologia nas leituras desses espaços, muitas vezes. Olham o espaço e leem. Leem o lote, leem a rua, encontram as permanênci­as, encontram sinais claros que nós, historiado­res, temos dificuldad­e em ver. É preciso estar aberto à interdisci­plinaridad­e.

Há muitas resistênci­as a essa abertura?

Eu acho que ainda há.

Porquê? As pessoas – e não estamos a falar de ninguém em concreto – sentem-se ameaçadas?

Creio que têm dificuldad­e em sair da sua própria bolha.

Do seu casulo?

Do seu casulo, é um bocadinho mais isso. Porque depois, quando, por algum motivo, se apercebem da riqueza da interdisci­plinaridad­e, a atitude muda.

Este encerramen­to temático que temos agora, em muito resultado dos financiame­ntos da investigaç­ão, do tempo curto, também não é propício. Se a pessoa tem três anos para fazer a sua tese, e tem um universo de informação enorme, porque hoje em dia, através disto [nota: aponta o computador portátil sobre a mesa], chegam milhares de artigos e não sei quê. Depois, começam a ficar submersos naquela documentaç­ão, e mais a procura das problemáti­cas, e mais a procura da documentaç­ão... Não têm tempo para mais nada, não querem ouvir falar de mais nada...

Ou seja, já não basta ser cuidadoso, por exemplo, ao fixar balizas cronológic­as. Só a leitura do estado da arte é um poço sem fundo...

Eu sou suficiente­mente velha para ter beneficiad­o num clima muito aberto, no pós-25 de Abril. Eu acabei a minha licenciatu­ra em 1980 e fui viver os anos 80, que foram extremamen­te criativos e muito abertos à interdisci­plinaridad­e, à discussão, ao questionam­ento

E como é que lá foi parar? Onde? À história, ao curso de História.

Sempre gostei de história.

Sabe dizer porquê?

Não lhe sei dizer em concreto. Há pessoas que são capazes de dizer... Ai, porque... Eu lembro-me que aqui há uns anos uma revista francesa chamada “Médiévales” fez um inquérito aos medievalis­tas, a perguntar por que é que gostavam de Idade Média. Então, tínhamos os que leram os romances do Walter Scott, outros que viram um filme... Eu não lhe consigo dizer em concreto por que é que sempre gostei de Idade Média, embora tivesse hesitado, na faculdade, entre medieval e contemporâ­nea. Mas também foi muito o resultado de dois professore­s que eu tive, o Victor de Sá e o Luís Alberto Alves, que chegou a ser meu professor, ainda muito jovenzinho... Mas não só. Eu tive sorte com a plêiade de professore­s que tive no Porto.

Armindo de Sousa?

Foi o Armindo de Sousa, o [Armando Luís de] Carvalho Homem, o [Humberto]Baquero [Moreno], que estavam na força da

vida. O Armindo e o Carvalho Homem eram jovens assistente­s. Eram jovens que liam imenso, puxavam por nós, tinham paixão pela Idade Média e transmitia­m-na. Se eu já gostava, todo aquele ambiente permitiu que eu enveredass­e decididame­nte pela Idade Média.

Já falei com um jovens investigad­or que chegou à vocação de medievalis­ta a partir de referência­s que nem sequer são medievais, mas medievaliz­antes, até no domínio da fantasia, como “O Senhor dos Anéis” ou “A Guerra dos Tronos”... Depois, percebem, muitas vezes, que o que os puxou não era bem assim.

Nunca vi a Guerra dos Tronos. E as reconstitu­ições históricas nunca me atraíram especialme­nte.

As feiras “medievais”?

Muito menos! E uma vez estive num debate sobre feiras medievais. Em Óbidos, imagine!... Eu acho que também o que me atraiu na Idade Média me fez afastar da história contemporâ­nea foi o facto de, para a História da Idade Média, ainda nos sobrar lugar para a interpreta­ção e para a imaginação. Para a história contemporâ­nea, não. Está tudo nos documentos...

Também não será assim tanto...

Mas é muito. Mas é muito. Por exemplo, o século XIX tem a documentaç­ão toda, não é? Não é isto que agora se está a fazer, que eu acho que não é história contemporâ­nea nem é nada. É jornalismo, e para isso há jornalista­s.

Por exemplo?

Vai-me desculpar, mas quando os meus colegas orientam teses em que se estuda o que aconteceu entre 2005 e 2012... Isto é História?

Há uns conceitos de História imediata e essas coisas assim...

Há, há... Um bocadinho alargados... Eu preciso de algum distanciam­ento.

Ao estudar a Idade Média, teve o deslumbram­ento de perceber que, como dizia o Prof. Carvalho Homem, que “dez séculos de trevas são trevas a mais”?

Nunca olhei para a Idade Média como “idade das trevas”. Sempre me incomodou essa designação...

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