Os conflitos no Médio Oriente
Com o reacendimento violento das disputas entre israelitas e árabes palestinianos, faz sentido revisitar, mesmo que de forma não exaustiva, as abordagens que a cinematografia – incluindo de cineastas ligados às partes em confronto – tem feito ao tema: mos
Écada vez mais difícil sermos otimistas em relação aos caminhos do mundo. Além de questões prementes, como o clima ou a fome, os conflitos armados, em que os inocentes são sempre as principais vítimas, teimam em não nos largar. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, a resposta brutal de Israel sobre Gaza, na sequência do ataque do Hamas, de 7 de outubro. Estes últimos eventos, como bem disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, não nasceram agora. Têm antecedentes e raízes. Se também se duvida cada vez mais de que o cinema possa mudar o mundo, pelo menos pode refletir sobre ele. Segue-se uma visão não exaustiva sobre obras cinematográficas (nalguns casos televisivas) centradas no conflito israelo-árabe, seguindo visões mais radicais ou mais moderadas, de um lado ou do outro, ou sem lado escolhido, todas fornecendo-nos ferramentas para o tentar compreender.
Focando um período anterior à criação do Estado de Israel, mas contendo elementos que podem ajudar a perceber algumas das problemáticas que se jogam na região, e apesar da visão romântica do seu herói e do estilo de grande espetáculo que segue, nunca será demais voltar a ver o épico “Lawrence da Arábia”, de David Lean, sobre o papel do oficial britânico na Revolta Árabe contra o Império Otomano, entre 1916 e 1918. Saltando para o ano-chave de 1948, seria oportuno rever a série televisiva “Al-Nakba”, visão palestiniana sobre o que consideram uma limpeza étnica ocorrida durante a criação do estado de Israel, período a que chamam de “nakba”, ou seja, “catástrofe”. Uma visão oposta surge em “Exodus”, drama épico de Otto Preminger estreado em 1960 com um elenco de estrelas, em que se distinguem Paul Newman, Eva Marie Saint ou Peter Lawford, interpretando judeus migrando clandestinamente para a Palestina ainda sob mandato britânico, a bordo do navio “Exodus 1947”. O guião, baseado no best-seller de Leon Uris, foi escrito por Dalton Trumbo, um dos “10 de Hollywood”, perseguido pelo senador McCarthy pelas suas posições “esquerdistas”. Uma prova de que as coisas não são nunca nem a preto nem a branco, apresentado matizes por vezes inesperadas.
Estas discussões são, justamente, o foco de um filme de Jeremy Kagan, “Os Escolhidos” (1981): a ação decorre em 1944, em Brooklyn, centrando-se na amizade entre dois jovens judeus, um oriundo de uma família conservadora, outro de uma família mais liberal.
Iniciada logo após a independência de Israel, a conflitualidade com os vizinhos árabes teve pi
cos de intensidade, como a Guerra do Yom Kippur, em 1973. É nesse período que se centra o recente “Golda”, com a britânica Helen Mirren a interpretar a lendária Golda Meir, então primeira-ministra de Israel. Num outro momento histórico, em 1982, Israel invadiu o sul do Líbano, após ataques levados a cabo pela Organização de Libertação da Palestina. Num registo autobiográfico, a excelente animação “Valsa com Bashir”, o israelita Ari Folman debruça-se sobre o trauma dessa guerra nos que foram obrigados combater. É num cinema israelita mais esclarecido que se encontram questionamentos sobre o poderio militar do país e a sua dominância no território, como em “Foxtrot”, enigmático filme de Samuel Maoz sobre uma família que recebe a visita de oficiais do Exército, informando-a da morte do filho, num posto militar fronteiriço. Pouco ou nada complacente com a política de ocupação do território palestiniano pelo Exército do seu país é o documentário de Avi Mograbi “54
Years”. Imperdível!
É também em autores da região que se encontram obras sobre o tema, como “O Atentado”, do libanês Ziad Doueiri, baseado num romance do argelino Yasmina Khadra. Após um atentado suicida em Telavive, um médico israelita de origem árabe é chamado ao seu hospital, descobrindo que a responsável é a sua esposa. Com ainda maior legitimidade, o palestiniano Hany Abu-Assad assina “O Paraíso, Agora”, sobre os dilemas de dois irmãos recrutados como bombistas suicidas. Ao lado de um cinema israelita com meios de produção consideráveis, numerosos cineastas com perspetivas naturalmente diferentes e alguma dimensão internacional, um cinema palestiniano tem-se mostrado possível, embora vivendo muito de apoios ocidentais. Assim é com Elia Suleiman, autor de obras que circulam pelos grandes festivais, como “O Paraíso, Provavelmente”, aceite como proposta da Palestina aos Óscares de 2020, ou pérolas como “O Tempo Que Resta” e “Intervenção Divina”, sobre a possível ligação amorosa entre um jovem casal separado pelo posto de controlo entre Jerusalém e Ramallah.
É de uma possível e desejável vida normal no território que fala “Gaza, Meu Amor”, dirigida pelos gémeos palestinianos Arab e Tarzan Nasser, sobre a paixão secreta de um velho pescador por uma mulher que trabalha no mercado. Algumas cenas foram filmadas no Algarve, numa produção da portuguesa Pandora da Cunha Telles. Foi por ela que soubemos que os Nasser estão sãos e salvos em Paris, mas perderam já vários familiares e amigos. E que preparam em conjunto novo filme, “Era uma Vez em Gaza”. Perante a tragédia, a vida e o cinema continuam.