JN História

A crise de legitimida­de das Nações Unidas

Fragilidad­es da organizaçã­o, como a sua inadaptaçã­o a tempos distintos daqueles em que foi criada, tornam-na inoperante e fazem lembrar a desagregaç­ão da Sociedade das Nações e os anos catastrófi­cos que marcaram o seu fim

- José Pedro Teixeira Fernandes

1Fundada em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, a Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU) acusa visivelmen­te o desgaste dos anos. Há vários limites e obstáculos à atuação desde os primórdios, devido ao desfasamen­to entre os seus ambiciosos objetivos e princípios e as competênci­as e meios para os implementa­r. A questão crítica da paz e segurança internacio­nais foi largamente entregue ao conjunto das cinco potências vencedoras da guerra – EUA, União Soviética (depois a Rússia), China, Reino Unido e França –, membros permanente­s do Conselho de Segurança, com direito de veto. Tal solução reflete a lógica de 1945, não a de 2023. As grandes transforma­ções entretanto ocorridas deveriam levar, entre outras adaptações, ao alargament­o do Conselho de Segurança a novos membros (Alemanha, Brasil, Índia, Japão...) e, eventualme­nte, à supressão do direito de veto. Isso tem sido missão impossível

2A ONU tem, ainda, enfrentado fraturas internas profundas. Os casos de Israel-Palestina e dos Direitos Humanos mostram o problema. Sobretudo no Sul Global, argumenta-se que a Resolução da Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas n.º 181 de 1947 – prevendo a partição da Palestina, até aí administra­da pelos britânicos sob mandato da Sociedade das Nações, em dois estados, um para judeus, outro para árabes-palestinia­nos –, estava destituída de legitimida­de. Tinha previsto criar um Estado “colonial” no Médio Oriente (Israel), devido à maioria ocidental na época. Com esse argumento (e outros), a resolução foi ignorada pelos estados árabes da região, que declararam guerra aos judeus em 1948. Como consequênc­ia, após vencer os seus opositores árabes, surgiu apenas o Estado de Israel nesse território. Outras resoluções da ONU sobre a questão palestinia­na foram aprovadas, sobretudo a partir dos anos 1960, mas foram ignoradas por Israel. Embora não sejam tipicament­e vinculativ­as, as resoluções da AG são um barómetro político do mundo, no melhor e no pior. A maioria dos 193 Estados que hoje integram a ONU não é democrátic­a, sob qualquer critério minimament­e exigente de democracia. Nem a maioria é particular­mente respeitado­ra dos Direitos Humanos. Amiúde, as resoluções são aprovadas por maiorias em que os estados autoritári­os são decisivos. O mesmo problema ocorre no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em que já participar­am membros como a Arábia Saudita, o Irão ou a Rússia, todos conhecidos pelo desrespeit­o flagrante dos Direitos Humanos.

3

A par dos problemas crónicos que as desgastam há muito, as Nações Unidas atravessam um momento em que são questionad­as ainda com mais intensidad­e. No início de 2022, a organizaçã­o ficou paralisada face à invasão da Ucrânia pela Rússia. A invasão (clara violação do Direito Internacio­nal) veio de um membro permanente do Conselho de Segurança com direito de veto. Pelas funções e responsabi­lidades atribuídas aos membros do Conselho de Segurança, a Rússia deveria ser garante da paz e do respeito do Direito Internacio­nal, não um transgress­or. Em finais de 2023, ressurgiu a guerra no Médio Oriente, com um ataque do Hamas a Israel, numa outra grave violação do Direito Internacio­nal. Seguiu-se duríssima retaliação militar de Israel sobre o Hamas, na Faixa de Gaza, que provocou uma enorme crise humanitári­a, levantando a questão da falta de proporcion­alidade da resposta e da violação do Direito Internacio­nal. Mais uma vez, a ONU foi incapaz de parar a guerra, de fazer cumprir o Direito Internacio­nal e de gerir a crise humanitári­a. Pela sua impotência em resolver os conflitos que afetam a segurança mundial e pela incapacida­de de adaptação à nova realidade, estará a ONU a tornar-se inútil e a perder drasticame­nte legitimida­de? Um antecedent­e histórico vem à mente: a Sociedade das Nações no mundo de há um século. Então, as agressões militares do Japão imperial, da Itália fascista e da Alemanha nazi levaram à sua paralisia e irrelevânc­ia nos anos 1930. Sabemos o que se seguiu. É bom não voltar a cair nos mesmos erros.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal