A crise de legitimidade das Nações Unidas
Fragilidades da organização, como a sua inadaptação a tempos distintos daqueles em que foi criada, tornam-na inoperante e fazem lembrar a desagregação da Sociedade das Nações e os anos catastróficos que marcaram o seu fim
1Fundada em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) acusa visivelmente o desgaste dos anos. Há vários limites e obstáculos à atuação desde os primórdios, devido ao desfasamento entre os seus ambiciosos objetivos e princípios e as competências e meios para os implementar. A questão crítica da paz e segurança internacionais foi largamente entregue ao conjunto das cinco potências vencedoras da guerra – EUA, União Soviética (depois a Rússia), China, Reino Unido e França –, membros permanentes do Conselho de Segurança, com direito de veto. Tal solução reflete a lógica de 1945, não a de 2023. As grandes transformações entretanto ocorridas deveriam levar, entre outras adaptações, ao alargamento do Conselho de Segurança a novos membros (Alemanha, Brasil, Índia, Japão...) e, eventualmente, à supressão do direito de veto. Isso tem sido missão impossível
2A ONU tem, ainda, enfrentado fraturas internas profundas. Os casos de Israel-Palestina e dos Direitos Humanos mostram o problema. Sobretudo no Sul Global, argumenta-se que a Resolução da Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas n.º 181 de 1947 – prevendo a partição da Palestina, até aí administrada pelos britânicos sob mandato da Sociedade das Nações, em dois estados, um para judeus, outro para árabes-palestinianos –, estava destituída de legitimidade. Tinha previsto criar um Estado “colonial” no Médio Oriente (Israel), devido à maioria ocidental na época. Com esse argumento (e outros), a resolução foi ignorada pelos estados árabes da região, que declararam guerra aos judeus em 1948. Como consequência, após vencer os seus opositores árabes, surgiu apenas o Estado de Israel nesse território. Outras resoluções da ONU sobre a questão palestiniana foram aprovadas, sobretudo a partir dos anos 1960, mas foram ignoradas por Israel. Embora não sejam tipicamente vinculativas, as resoluções da AG são um barómetro político do mundo, no melhor e no pior. A maioria dos 193 Estados que hoje integram a ONU não é democrática, sob qualquer critério minimamente exigente de democracia. Nem a maioria é particularmente respeitadora dos Direitos Humanos. Amiúde, as resoluções são aprovadas por maiorias em que os estados autoritários são decisivos. O mesmo problema ocorre no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em que já participaram membros como a Arábia Saudita, o Irão ou a Rússia, todos conhecidos pelo desrespeito flagrante dos Direitos Humanos.
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A par dos problemas crónicos que as desgastam há muito, as Nações Unidas atravessam um momento em que são questionadas ainda com mais intensidade. No início de 2022, a organização ficou paralisada face à invasão da Ucrânia pela Rússia. A invasão (clara violação do Direito Internacional) veio de um membro permanente do Conselho de Segurança com direito de veto. Pelas funções e responsabilidades atribuídas aos membros do Conselho de Segurança, a Rússia deveria ser garante da paz e do respeito do Direito Internacional, não um transgressor. Em finais de 2023, ressurgiu a guerra no Médio Oriente, com um ataque do Hamas a Israel, numa outra grave violação do Direito Internacional. Seguiu-se duríssima retaliação militar de Israel sobre o Hamas, na Faixa de Gaza, que provocou uma enorme crise humanitária, levantando a questão da falta de proporcionalidade da resposta e da violação do Direito Internacional. Mais uma vez, a ONU foi incapaz de parar a guerra, de fazer cumprir o Direito Internacional e de gerir a crise humanitária. Pela sua impotência em resolver os conflitos que afetam a segurança mundial e pela incapacidade de adaptação à nova realidade, estará a ONU a tornar-se inútil e a perder drasticamente legitimidade? Um antecedente histórico vem à mente: a Sociedade das Nações no mundo de há um século. Então, as agressões militares do Japão imperial, da Itália fascista e da Alemanha nazi levaram à sua paralisia e irrelevância nos anos 1930. Sabemos o que se seguiu. É bom não voltar a cair nos mesmos erros.