O INÍCIO DO ESTUDO DA HISTÓRIA DAS MULHERES EM PORTUGAL
O ensino e a investigação em História, na Escola de Coimbra, têm um longo e entretecido trajeto que se transmite repetida e renovadamente de Mestres a discípulos. E de há muito, desde as últimas décadas do século passado, esta Universidade, onde a História é uma ciência que se ensina e aprende, não é uma Escola fechada – os seus docentes e discentes circulam no país e no estrangeiro, a instituição recebe alunos e professores de todo o mundo e a construção do saber histórico abre-se às correntes historiográficas que sempre fluem no contínuo exercício do questionamento, reinterpretação e reflexão sobre o passado. Por isso, a História das Mulheres assumiu-se nesta Escola como um tema historiográfico de chegada e de partida.
Na verdade, foi na década de 80, mais precisamente de 20 a 22 de março de 1985, que se realizou, no Instituto de História Económica e Social da Faculdade de Letras de Coimbra, o Colóquio A mulher na sociedade portuguesa. Visão histórica e perspectivas actuais. Pela primeira vez, o estudo das mulheres, como campo historiográfico, era abordado em profundidade no universo universitário português.
À frente da Comissão Organizadora encontrava-se o Prof. Doutor António de Oliveira. Este docente e investigador, num percurso universitário verdadeiramente inovador, aberto à interdisciplinaridade das ciências sociais e humanas e à nova história dos Annales, rasgou interpelantes caminhos por dentro da história económica e social da época moderna e dedicou-se, pedagogicamente, durante muitos anos, a ensinar os trilhos de pesquisa científica na demografia histórica. Dominava uma renovada conceptualização sociológica e antropológica, na abordagem demográfica, e uma metodologia ancorada na matemática aplicada às ciência sociais e humanas, estudando os ritmos da fertilidade, da natalidade e da mortalidade, analisando as estratégias matrimoniais e as estruturas familiares conjugais e alargadas, apoiando-se nos registos paroquiais, nos atos de batismo, de apadrinhamento e de casamento. Encontrou-se nestas abordagens da população e dos seus comportamentos sociais com o universo das mulheres, fossem solteiras, casadas ou viúvas, ricas ou pobres, jovens, adultas ou velhas. Sempre fundamentado numa atualizadíssima bibliografia, soube redirecionar estes questionamentos para o protagonismo das mulheres, colocando esta temática no centro dos estudos históricos do Instituto de História Económica e Social.
Projetou, então, a organização de um
Colóquio sobre os estudos da mulher e chamou para o coadjuvar os jovens professores e investigadores da sua Escola, medievalistas, modernistas e contemporaneístas.
Nessa reunião científica queria olhar o passado, mas com a visão do presente e do futuro. Por isso, nas palavras de abertura do Colóquio – que devem ser ainda lidas e meditadas científica e politicamente em 2024 –, partia desse pressuposto, afirmando: “Os movimentos de reivindicação feminina, com diversas modalidades e objectivos, têm sido acompanhados de uma investigação histórica sobre a mulher” (vol. 1, p. 9). E acrescentava: “Mas estudar o processo da melhoria das mulheres portuguesas através da história, ultrapassando o discurso miserabilista da opressão, investigar mais as relações dos papéis sociais do que a própria história da mulher, como postula o estudo da ordem simbólica dos sexos, é o objectivo deste Colóquio, será a tarefa da investigação futura” (vol. 1, p. 15-16). Meditando-se nessas palavras primeiras, logo se percebe a atualização conceptual operatória e a metodologia interdisciplinar com que este historiador encarava a nova história das mulheres. Como não menos se desvenda o papel interventor que apontava para a história, sobretudo neste campo de estudos, quando proferia “o tema e a intenção do Colóquio não ficam confinados à investigação científica. Investigar, neste domínio, é ir pelo passado à procura de nós próprios, conviver com a cultura e manifestá-la” (vol. 1, p. 16). Não admira, por isso, que o Colóquio, ocorrido após uns escassos 11 anos transcursos sobre o 25 de Abril, tivesse contado com o apoio e a presença do ministro da Cultura e da presidente da Comissão da Condição Feminina.
Um ano após a realização do Colóquio, estavam publicados dois volumes com os resultados desse encontro, no qual as temáticas mais largamente tratadas foram, como bem se compreende, as de “A Mulher e a Família” e “A mulher e o trabalho”, ainda que diversos estudos tivessem coberto os campos de “A mulher e a literatura”, “A mulher e a religião”, “Papéis e valores femininos” e “A mulher e a política” . E as autoras da conclusão do mesmo afirmavam, em jeito de balanço: “A cerca de meia centena de comunicações apresentadas, se evidencia a riqueza e versatilidade dum tema, que talvez tenha aqui surgido como uma antecipação das tendências da investigação num futuro imediato, demonstra também que uma análise crítica da sociedade exige um reexame, ou a reformulação de toda uma série de esquemas pré-estabelecidos, que serviram e servem ainda para posicionar o lugar e a função dos sexos na sociedade” (vol. 2, p. 448). Mais prospetivamente apontavam caminhos de futuro: “renovar o questionamento histórico, introduzindo a noção de diferença de sexos, e fazer dos conflitos e das complementaridades ente o homem e a mulher uma articulação que, tendo atravessado os séculos, tem sofrido mutações e que, em cada momento do devir histórico, inspirou um certo número de funções”, e “com isto, estaríamos a contribuir para um melhor equacionamento da análise do papel da mulher na sociedade portuguesa contemporânea” (vol. 2, p. 449).
Será relevante correlacionar este inovador labor histórico ocorrido em Coimbra com um acontecimento que, dois anos depois dele, ocorria em Itália, até porque entre ambos haverá cruzamentos.
Na primavera de 1987, Vito e Giuseppe Laterza solicitaram a Geoges Duby e a Michelle Perrot, tendo sido o primeiro já responsável pela edição da História da Vida Privada, que fôssem os diretores de uma obra sobre a Storia delle Donne, a qual veio, de facto, a publicar-se, em cinco volumes, entre os anos de 1990 e 1991.
Vale a pena evocar as palavras com que os seus diretores se propuseram a “escrever a história das mulheres”. Começam por alertar que “os ténues vestígios que elas [as mulheres] nos deixaram provêm não tanto delas próprias... como do olhar dos homens que governam a cidade, constroem a sua memória e gerem os seus arquivos” (vol. 1, p. 7 da tradução portuguesa, que aqui seguirei). Para logo depois, numa dialética oposta, frisarem que, “da Antiguidade até aos nossos dias, a escassez de informações concretas e circunstanciadas contrasta com a superabundância das imagens e dos discursos. As mulheres são representadas antes de serem descritas ou narradas, muito antes de terem elas próprias a palavra” (vol. 1, p. 8). Por isso, a obra propõe-se atentar nas “imagens” artísticas e nos discursos literários e dos pensadores e cientistas sobre as mulheres, ainda que, mais uma vez, captados pelo olhar masculino. Mas visa, sobremaneira, valorizar “a voz das mulheres”, que “aumenta de volume com o decorrer do tempo, particularmente nos dois últimos séculos, devido ao impulso feminista, sobretudo” (vol. 1, p. 11), buscando-a nos fundos e nas coleções de bibliotecas europeias ou dos Estados Unidos, que se constituíssem como lugares de memória da consciencialização do feminismo. Não hesitam em afirmar que “a história das mulheres, de que a [nossa] obra é tributária e solidária, desenvolve-se de há vinte anos para cá” (vol. 1, p. 13), remetendo, portanto, para a década de 1970. Com uma clarividente consciência da herança histórica em que se inscrevem, afirmam, perentoriamente, os seus responsáveis que a obra é devedora dos estudo sobre a família, do alargamento do campo histórico, sob o impulso da Escola dos Annales, às práticas quotidianas e aos comportamentos e mentalidades comuns, como também sofre a influência política da descolonização e dos movimentos estudantis que levam a pensar os exilados, as minorias, os silenciados, os oprimidos e a relação das margens e periferias com o centro do poder. Incorpora já as preocupações do Género (Gender), “isto é, as relações entre os sexos, vistos não como algo inscrito na eternidade de uma natureza inacessível, mas como produtos de uma construção social que é importante, justamente, ‘desconstruir’” (vol. 1, p. 14). Situa-se, portanto, numa conjuntura em que uma renovação do questionamento histórico converge com a história das mulheres. Inscrevem essa história na longa duração e circunscrevem-na, essencialmente, a uma espacialidade europeia, com algumas aflorações até à América do Norte, e reafirmam que a obra, “mais que a história das mulheres, pretende ser a história da relação entre os sexos” (vol. 1, p. 16).
Estes parâmetros metodológicos e conceptuais foram, na generalidade, os mesmos que estiveram na mente do Organizador e dos colaboradores do Colóquio de Coimbra. Aliás, António de Oliveira mostra bem, nas suas palavras de apresentação do Colóquio, como co