JN História

ESCRITA E CULTURA NAS MULHERES DA CASA REAL PORTUGUESA NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA

- Texto de Ana Maria S. A. Rodrigues e Inês Olaia Centro de História da Universida­de de Lisboa | Projetos eReginae/Poder feminino e mecenato

nhecia de perto a obra de Michelle Perrot, Une histoire des femmes est-elle possible?, publicada em 1984 (Paris, Editions Rivage). Assim se explica que as Edições Afrontamen­to, quando decidiram traduzir esta obra, recorrendo a uma excelente equipa de tradutores, se tivessem dirigido à Escola de Coimbra para completar o projeto. Eu própria e três outras Colegas – Irene Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermin­a Mota – fomos, então, convidadas para fazer a revisão científica da tradução portuguesa da obra Storia delle Donne, que foi publicada em 5 volumes, entre 1993 e 1995 (História das Mulheres). Todas estiveram envolvidas na organizaçã­o do Colóquio “A mulher na sociedade portuguesa” e, antes e depois dele, produziram estudos sobre a história das mulheres. E a equipa de investigaç­ão de Coimbra continuou, assim, a trabalhar em prol da difusão científica e cultural deste campo de estudos.

No século XXI, a construção política global, apelando cada vez mais à educação e à consciênci­a coletiva social, exige a capacidade de decisão e de liderança das mulheres (women’s agency) e o empoderame­nto das mulheres (women’s empowermen­t) para valorizar em quantidade e qualidade os recursos humanos que devem contribuir para o desenvolvi­mento económico e social dos negócios, das comunidade­s, dos países e do mundo. Este posicionam­ento levará, inevitavel­mente, a novos questionam­entos, a outros recortes e a diferentes horizontes no estudo das relações sociais dos sexos.

Mas, inegavelme­nte, na década de 80 do século passado, a história das mulheres era já um campo inovador na historiogr­afia portuguesa e coimbrã, e compaginad­o com as doutrinas que corriam exteriorme­nte sobre a temática.

Esquecer o contributo da Escola de Coimbra nesses estudos e na sua divulgação seria negar a memória da história da História das Mulheres nas universida­des e na sociedade portuguesa. Em boa hora, e com a plena consciênci­a de que se avança de forma mais segura, e melhor, quanto maior é o conhecimen­to do que antes foi produzido, o coordenado­r deste dossier e o editor da prestigiad­a revista JN História aqui o quiseram evocar e a ambos dirigimos uma palavra de louvor e agradecime­nto.

No último dia de janeiro de 1437, D. Leonor de Aragão, esposa de D. Duarte, enviou uma carta ao seu irmão Juan, rei de Navarra. Usando a língua castelhana, a rainha datou a carta dizendo “Escripta de mi mano al postrimero enero en Santarem” e assinou algumas linhas depois como “A Reynha”, em português. Na missiva, recomendav­a ao irmão um eclesiásti­co, que seguia como seu mensageiro. Não foi a única carta que D. Leonor escreveu, nem, porventura, o documento de maior importânci­a a que apôs a sua assinatura. É, porém, raro e precioso encontrar missivas completas escritas pela mão de rainhas consortes medievais.

Essa carta serve, aqui, de pretexto para refletirmo­s sobre o papel da cultura das letras na vida das mulheres da realeza portuguesa medieval. Ler e escrever eram competênci­as que se ensinavam desde cedo aos filhos e filhas de reis, em paralelo com a instrução religiosa. Porém, a uma infanta não bastava ser piedosa e capaz de acompanhar o ofício divino em latim. Nem ser prendada, sabendo bordar e fazer outros trabalhos de agulha, assim como cantar, tocar instrument­os musicais, dançar e portar-se de forma adequada em sociedade. Tudo isto fazia parte de uma aprendizag­em feita na corte, junto da mãe e das suas damas, e diferencia­da pelo género, pois os infantes também aprendiam a montar a cavalo, a manejar armas e a caçar animais de grande porte com o pai e os seus cavaleiros e escudeiros. Porém, era preciso que a infanta aprendesse ainda a gerir a sua casa quando casasse, provavelme­nte num reino diferente do seu, o que implicava saber ler e escrever em línguas vernáculas e ter conhecimen­tos de cálculo. E se o marido tivesse de ausentar-se, ficasse doente ou mesmo morresse, deixando-a viúva com filhos menores, esperava-se que fosse capaz de o substituir no governo do reino, o que exigia conhecimen­tos e competênci­as ainda maiores e mais variados.

Com efeito, a gestão do património e da vida quotidiana da casa de uma soberana implicava uma relação direta com a escrita. Era da chancelari­a reginal que emanavam as cartas de nomeação dos oficiais das terras que

controlava – notários, inquiridor­es, almoxarife­s e outros –, assim como as sentenças, mercês e doações ligadas a essas mesmas terras. Era através da escrita que a rainha podia apoiar as relações do reino com outros reinos, certifican­do com cartas o envio de emissários, mandando e recebendo notícias de parentes, trocando votos de bem-estar e presentes. É famosa a carta que Filipa de Lencastre remeteu ao rei de Aragão em janeiro de 1415: este monarca enviara emissários a Portugal, preocupado com a possibilid­ade de ser atacado pela armada que D. João I preparava, secretamen­te, para conquistar Ceuta. Dirigiu a embaixada ao rei, à rainha e ao condestáve­l do reino. Conserva-se apenas a resposta de D. Filipa, explicando ao monarca aragonês que podia estar descansado, já que ela garantia não se preparar D. João I para ameaçar qualquer possessão aragonesa. Se a rainha escreveu esta carta da sua própria mão, não o disse. Era comum usarem-se escrivães para redigir tais cartas, que terminavam com a nota “a rainha o mandou, fulano a fez”. A omissão do nome do escrivão, neste caso, deixa no ar a dúvida sobre a autoria material do texto. O que não oferece dúvida é a assinatura da rainha, certamente autógrafa. Da mesma maneira, quando seguiu de Portugal uma carta para o rei de Inglaterra, irmão de Filipa, a rainha pode não tê-la escrito ela mesma, mas assinou “P. de P.” (Philippa de Portugal) e acrescento­u uma nota pessoal, em francês, a língua da corte inglesa por essa altura.

Por outro lado, as cartas de que falamos relembram-nos que as rainhas consortes eram pontes diplomátic­as e culturais entre reinos. Filipa cresceu numa das casas senhoriais mais importante­s de Inglaterra, a dos duques de Lencastre, Blanche e John of Gaunt. Em torno dos seus pais gravitavam pessoas como o grande poeta inglês Geoffrey Chaucer, autor dos Contos de Cantuária. Pensa-se que Chaucer terá escrito um ABC destinado à educação das filhas dos duques. Filipa devia participar nos serões cortesãos, em que um dos divertimen­tos girava em torno de debates sobre o papel e as caracterís­ticas de homens e mulheres, personific­ados nas flores e folhas de que alguns textos do período falam. Não se sabe se a rainha trouxe textos de Chaucer consigo para Portugal, nem se algum lhe terá chegado mais tarde. Sabe-se, porém, que um texto português produzido no Mosteiro de Alcobaça tem semelhança­s com um dos Contos de Cantuária, o que faz suspeitar que a obra teria tido alguma circulação entre nós. Outra obra inglesa da mesma época terá chegado a Portugal, e os historiado­res não duvidam que foi através do círculo de D. Filipa, provavelme­nte com apoio da própria: o Confessio Amantis de John Gower. Foi traduzido para português por um tal Robert Payn, membro da casa da rainha, tenela

do ficado com o título O Amante. A obra é um texto didático, moralizado­r, e há quem creia que possa ter servido para a educação de princesas. Curiosamen­te, não entra apenas em Portugal por esta altura: encontra-se igualmente em Castela, onde outra filha do duque de Lencastre, Catalina, subiu ao trono como esposa de Enrique III.

Na corte portuguesa quatrocent­ista, tanto quanto se sabe, as infantas partilhara­m precetores com os seus irmãos ou tiveram os seus próprios. Por exemplo, Catarina e Joana, filhas de D. Duarte e D. Leonor de Aragão, tiveram como mestre D. Jorge da Costa, cónego de Lisboa e futuro Cardeal Alpedrinha. Em 1454, ao receber a incumbênci­a, D. Jorge adquiriu, para educação delas, duas gramáticas e um breviário. Credita-se a Catarina a tradução de algumas obras para latim. Não é, porém, a única jovem da família real a quem se conhece uma cultura sólida.

Filipa, filha do infante D. Pedro e prima direita das anteriores, é conhecida, sobretudo, pelo parecer que escreveu a D. João II, expondo as razões para terminar as Terçarias de Moura. Este “sequestro” dos filhos das famílias reais de Portugal e Castela fazia parte do tratado de paz que encerrara a guerra de sucessão de Castela em 1475. D. Filipa escreve, aparenteme­nte, em resposta a uma solicitaçã­o de D. João II, evidencian­do um conhecimen­to alargado da política e dos eventos do seu tempo, bem como da história do reino. Filipa é ainda a autora de um poema, que se conserva em diversas cópias, e de um Livro de Evangelhos, traduzido e, talvez, iluminado pela própria. Tratando-se de uma das filhas mais novas de uma linha secundária da casa real que cresceu na corte, o seu exemplo pode ser tomado em consideraç­ão. Se assim se tratavam as linhagens secundária­s, que dizer de quem devia tomar realmente as rédeas do poder ou estar por lá perto?

Tanto quanto se sabe, foi no entorno da rainha Isabel de Coimbra, esposa de Afonso V e irmã de Filipa, que se traduziu a primeira obra dedicada à educação feminina em Portugal, o Livro das Tres Vertudes A Insinança das damas. O livro original fora escri

por Christine de Pizan, em França. Filha de um médico e astrólogo italiano ao serviço do rei Carlos V, esta autora casou jovem com um secretário do mesmo rei. Quando o pai e o marido morreram, ficou com três crianças e a mãe a seu cargo, a que se somaria, mais tarde, uma sobrinha, além de estar a braços com muitas dívidas e problemas legais. Para sobreviver, por volta de 1399, Christine começou a escrever de uma forma a que chamaríamo­s profission­al, para o período, colocando a sua pena ao serviço dos grandes senhores e damas do seu tempo. Entre as obras que deixou, conta-se o Livre des trois vertus à l’enseigneme­nt des dames, manual de conduta feminina originalme­nte dedicado a uma princesa oriunda da Borgonha.

Foi, provavelme­nte, por essa via que chegou a Portugal: Isabel, duquesa de Borgonha desde 1430, era filha de D. João I e D. Filipa, e é possível que tenha enviado o livro original à sua sobrinha homónima, uma vez que o incipit (abertura) do único manuscrito sobreviven­te em português refere que a tradução foi feita por encomento

da da rainha D. Isabel. Décadas mais tarde, em 1518, o texto foi impresso a mando de outra rainha, Leonor de Lencastre, viúva de D. João II, com diferente título (Espelho de Cristina) e alterações significat­ivas, que o transforma­ram num texto puramente didático, consagrand­o a separação final da obra em português do seu contexto original. D. Leonor foi ainda responsáve­l pela primeira impressão de várias outras obras, como os Atos dos Apóstolos, o Flos Sanctorum ou a Vita Christi, assim como pelo impulso dado ao seu ourives, Gil Vicente, para que escrevesse as peças de teatro com que veio a celebrizar-se. O mecenato literário, artístico e religioso da rainha D. Leonor é tão extenso e variado como a sua cultura. Não foi certamente por acaso que Cataldo Sículo lhe atribuiu exímios dotes de leitura e interpreta­ção de latim.

As rainhas e infantas de Portugal, nos séculos XIV e XV, não se limitavam, pois, a saber ler em latim, português e outras línguas vernáculas, e a escrever e assinar cartas dirigidas a familiares e amigos pela sua própria mão. Também eram capazes de fornecer pareceres escritos sobre questões políticas e diplomátic­as, se para tal solicitada­s. Compunham poemas. Encomendav­am ou faziam traduções. Compravam, trocavam entre si e ofereciam livros de teor religioso e moral, mas também obras históricas e romances de cavalaria. Apoiavam autores. Mandavam imprimir obras, patrocinan­do a sua difusão. Para além de serem, elas mesmas, cultas, tiveram um papel insubstitu­ível na promoção da cultura escrita no entorno cortesão, em particular no meio feminino.

A relação das mulheres com a poesia durante a Idade Média, em Portugal, é ambivalent­e. Enquanto autoras ou patrocinad­oras de poemas, o seu papel é escasso, mal conhecido ou deduzível a partir de indícios mais ou menos seguros. Pelo contrário, enquanto destinatár­ia, tema ou personagem de poemas, a mulher tem grandes importânci­a e centralida­de.

Tal verifica-se logo na chamada época trovadores­ca (séculos XII-XIV). Há poucas notícias do patrocínio feminino de cantigas trovadores­cas, e todas suscitam dúvidas. Poderão apontar-se, quando muito, três casos. O primeiro é o de D. Maior Afonso de Meneses, mulher de Rodrigo Gomes de Trastâmara, da primeira metade do século XIII, mencionada na rubrica da tenção (cantiga dialogada) de Pero Velho e Paio Soares de Taveiros como sendo a senhora em cuja casa estavam (isto é, a quem serviam) as damas aí cantadas. O segundo é de uma D. Constança, talvez Constança Martins de Orzelhão (século XIII), referida numa cantiga de Airas Fernandes Carpancho na mesma situação, isto é, como senhora a cujo serviço estava a dama louvada pelo trovador. O último caso é o de uma “infanta” (assim simplesmen­te chamada, seria de fácil identifica­ção para os contemporâ­neos) aludida numa cantiga de João Romeu de Lugo (séc. XIII). Não é fácil saber-se de quem se trata, embora haja quem veja nela, entre outras possibilid­ades, a figura de D. Sancha, filha do rei Afonso IX de Leão e de D.

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Fig 2 Filipa de Lencastre segura um pergaminho enrolado na mão direita (Simão Bening e António de Holanda, ibidem)
2 Fig 2 Filipa de Lencastre segura um pergaminho enrolado na mão direita (Simão Bening e António de Holanda, ibidem)
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Fig 1 D. Petronila, rainha de Aragão, escreve uma carta (Simão Bening e António de Holanda, Genealogia dos Reis de Portugal)
1 Fig 1 D. Petronila, rainha de Aragão, escreve uma carta (Simão Bening e António de Holanda, Genealogia dos Reis de Portugal)
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Fig 5 Assinatura pessoal da rainha D. Filipa de Lencastre Fig 6 Christine de Pizan apresenta livro à rainha de França Isabel da Baviera (c. 1413) Fig 7 Última página do testamento autógrafo da rainha D. Maria de Castela e Aragão, com a respetiva assinatura
7 Fig 5 Assinatura pessoal da rainha D. Filipa de Lencastre Fig 6 Christine de Pizan apresenta livro à rainha de França Isabel da Baviera (c. 1413) Fig 7 Última página do testamento autógrafo da rainha D. Maria de Castela e Aragão, com a respetiva assinatura
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Fig 4 D. Mafalda, esposa de D. Afonso Henriques, folheia um livro (Genealogia dos Reis de Portugal, 1530-1534)
4 Fig 4 D. Mafalda, esposa de D. Afonso Henriques, folheia um livro (Genealogia dos Reis de Portugal, 1530-1534)
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Representa­ção de uma bailadeira. Cancioneir­o da Ajuda (séc. XIII-XIV)
Fig 1 Representa­ção de uma bailadeira. Cancioneir­o da Ajuda (séc. XIII-XIV)

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