EDUCAÇÃO, LIVROS E PRODUÇÃO ESCRITA NAS COMUNIDADES MENDICANTES FEMININAS MEDIEVAIS
Mulheres jovens e adultas entram nas comunidades monásticas como uma forma de expressar, algumas, a sua vocação, outras, uma obrigação, ditada pela família, que procura albergar nos conventos aquelas que não têm casamento marcado nem meios para o concretizar. Muitas destas mulheres são ainda crianças, entregues aos cuidados das freiras para serem educadas nos conventos, outras são, pura e simplesmente, trazidas para o interior da clausura pelas suas mães ou tias e aí permanecem, por vezes, até à idade adulta, algumas sem professarem.
No entanto, a maioria das que entram no mosteiro destina-se a professar e, no caso das clarissas, e de acordo com a regra urbanista, a sua preparação abrange um ano, o noviciado, durante o qual, guiadas por uma mestra, devem ser instruídas na “disciplina regular”. Esta educação passa, obrigatoriamente, pela aprendizagem do Ofício divino (leitura e canto), de acordo com o costume da Ordem dos Frades Menores. As que não sabem ler rezarão vinte e quatro pais-nossos por Matinas, cinco por Laudes, sete por cada uma das horas intermédias, doze por Vésperas e sete por Completas. O mesmo no que respeita ao Ofício da Virgem e dos defuntos.
Acrescenta-se ainda que, se entre as irmãs houver alguma “bem dotada para as coisas do espírito”, de acordo com o parecer da abadessa, será instruída por uma mestra, para isso nomeada, tanto no canto como no Ofício divino.
A educação destas monjas é ainda pautada pela Regra, que devem ler de quinze em quinze dias, a fim de ser, para cada uma, como um espelho da sua Vida e do seu caminho, no interior da comunidade, onde vivem como esposas de Cristo e suas modestas e humildes seguidoras.
A estreita relação das monjas com o canto, a oração e a leitura da Regra revela que, desde o noviciado, o principal trabalho de que se ocupam é o louvor a Deus e a leitura espiritual, que as anima e forma como seguidoras de Cristo, numa experiência contemplativa e de comunhão que envolve toda a comunidade.
Idêntico panorama encontra-se nas comunidades dominicanas femininas, em que a recitação ou o canto rigoroso do Ofício se complementava com a leitura e a escuta comunitária de textos espirituais ou normativos – à mesa ou no Capítulo –, a par com momentos mais individuais de leitura e meditação pessoal de outros textos, sobretudo de natureza espiritual. Também nestas comunidades se articulam as irmãs do coro com irmãs conversas, com distintos níveis de domínio de competências literárias, e o noviciado se assume como período de aprendizagem, não só dos princípios orientadores da vida conventual, mas também da liturgia.
Os movimentos que, desde finais do século XIV, apelam a uma renovação da vida religiosa no interior das ordens franciscana e dominicana, envolvendo os ramos masculino e feminino, não deixam de acentuar a centralidade assumida pelos livros e pela leitura na consolidação dos novos costumes observantes. Para as comunidades femininas, estes integram, necessariamente, os textos normativos – Regras e Constituições, ou outros textos definidores do quotidiano monástico, como o Livro dos Ofícios, entre as dominicanas –, obras basilares da espiritualidade monástica e mendicante, a par com outras de cariz mais devocional e pessoal, e, claro, os livros que suportavam a sua prática litúrgica, em particular o Ofício coral. A estes se juntam, ainda, os textos memorialísticos, os relatos de fundação das respetivas comunidades, com a memória das vidas exemplares das suas fundadoras, a que amiúde se juntava o registo das irmãs ingressadas na comunidade, e que aí professavam, e das entretanto falecidas.
Estes textos mostravam-se como estruturantes na construção das comu
monásticas e mais ainda nos mosteiros fundados ou renovados nos costumes observantes. Tanto mais que não poucos derivam, no caso português, de anteriores experiências femininas nascidas à margem do enquadramento conventual, como beatérios ou comunidades de “mulheres pobres”, que, inicialmente sem votos públicos e sem uma Regra aprovada pela Igreja, procuravam, no interior dos núcleos urbanos, viver, de forma pobre e despojada, uma experiência de fraternidade, oração e caridade. Desconhecemos que leituras alimentavam estes grupos, mas a sua gradual aproximação aos círculos mendicantes e a sua definitiva conventualização, ocorrida, na sua maioria, entre meados do século XV e as primeiras décadas do século XVI, obrigavam a munir estas comunidades dos livros fundamentais para a sua conformização com os modelos da observância. Ao mesmo tempo, produziam-se memórias escritas que, seguramente lidas em comunidade, exaltavam e firmavam a excelência dos novos costumes monásticos e reliam a história da comunidade em função de um presente já perfeitamente enquadrado e institucionalizado. Assim acontece com a comunidade dominicana de Jesus de Aveiro, no Memorial
que se redige, em inícios de Quinhentos, sobre a fundação do convento, ou no mosteiro eborense de Nossa Senhora do Paraíso, que relega para segundo plano o passado da comunidade das pobres Galvoas, para exaltar a ação reformadora da sua primeira prioresa, Joana Correia, pouco antes falecida, e, sem dúvida, a principal protagonista na conversão do grupo num mosteiro dominicano.
Estamos perante textos, em todo o caso, redigidos pelas próprias religiosas. Eles são, na verdade, testemunho, no âmbito da Observância, da participação das religiosas na produção de textos para os seus conventos. Neste contexto reformador, a produção de novos livros litúrgicos, contendo as instruções das Ordens para a prática religiosa das comunidades, assumia especial relevância. O caso das dominicanas de Jesus de Aveiro é paradigmático, pois a riqueza das fontes sobreviventes permite-nos estudar, ainda que parcialmente, o trabalho das religiosas na produção de livros durante as primeiras décadas do convento (c. 1466-1525). Responsáveis por guiar esta comunidade de beatério a convento, os dominicanos de Nossa Senhora da Misericórdia de Aveiro foram fundamentais na introdução das relinidades giosas à prática da vida regrada, instruindo-as acerca dos costumes da Ordem. O estudo dos códices medievais que nos chegaram deste convento permite-nos saber que a preparação das religiosas incluiu também o ensino da escrita e decoração (iluminura) de livros, ofícios que começaram a aprender com os frades da Misericórdia sensivelmente um ano antes do início da clausura, em 1463. Entre 1466 e 1525, época em que é possível documentar a atividade do scriptorium aveirense, é possível identificar pelo menos cinco religiosas a trabalhar na produção de livros. Entre estas podemos encontrar duas prioresas, facto que deixa transparecer o prestígio de tal atividade no seio destas comunidades .
A aprendizagem de música, essencial à prática religiosa da comunidade e à produção de livros litúrgicos que, muitas vezes, incluíam notação musical, esteve também entre as prioridades do jovem convento. No início da vida claustral, no final de 1464, as jovens Grácia Álvares e Isabel Luís são destinadas à aprendizagem do canto e da liturgia, tornando-se discípulas da mestra do coro, que, entretanto, se juntara à comunidade ida do Convento do Salvador de Lisboa. O início da vida de clausura, à qual os homens (mesmo os religiosos) tinham acesso limitado, tornava fundamental a aprendizagem de freira para freira. O papel das irmãs que migravam para outros conventos, por forma a guiar o seu início ou a sua reforma, era, por isso, fundamental, verificando-se não só a nível da música e da liturgia, como acima se mostrou, mas também no ensino da escrita e da iluminura, documentado em vários conventos europeus. A presença de Isabel Luís – que se tornaria numa prolífica escritora de livros em Aveiro –, entre as fundadoras do Convento da Anunciada de Lisboa (c. 15191529) poderá, deste modo, estar relacionada com a produção de livros no convento lisboeta.
Aliado ao seu valor sagrado, o custo de produção dos livros litúrgicos fazia com que estes fossem objetos de grande zelo. Segundo as fontes normativas, estes volumes estariam, na sua maioria, guardados no coro, em armário próprio, ao cuidado da cantora. Esta freira devia não só atualizar os livros, em termos de conteúdo, como tam
bém cuidá-los do ponto de vista estrutural, reparando os seus danos e denunciando alguma irmã que fosse imprudente no seu manuseamento.
Os livros eram uma presença constante nos vários momentos e espaços que compunham a vida destas comunidades. Através destas fontes, sabemos também que se guardavam livros no dormitório, os quais deviam ser protegidos pela freira responsável por este espaço, especialmente quando se encontravam perto de janelas, em risco de serem danificados pela chuva. Os livros eram também presença essencial na enfermaria, onde as doentes podiam, deste modo, seguir os ofícios aos quais não podiam atender.
Embora esteja ainda por fazer um estudo sistemático das livrarias destas comunidades mendicantes femininas, muitas enriqueceram-se com doações feitas pelas religiosas e por benfeitores, ou mesmo pelas próprias fundadoras. Entre os mais conhecidos, encontra-se o mosteiro de clarissas coletinas da Madre de Deus de Lisboa, que acolheu o impressionante legado bibliográfico da rainha D. Leonor, sua fundadora, que aí se fez sepultar.