JN História

EDUCAÇÃO, LIVROS E PRODUÇÃO ESCRITA NAS COMUNIDADE­S MENDICANTE­S FEMININAS MEDIEVAIS

- Texto de João Luís Fontes, Maria Filomena Andrade e Paula Cardoso Instituto de Estudos Medievais (NOVA-FCSH) | Centro de Estudos de História Religiosa (UCP) / Universida­de Aberta | Instituto de Estudos Medievais (NOVA-FCSH)

Mulheres jovens e adultas entram nas comunidade­s monásticas como uma forma de expressar, algumas, a sua vocação, outras, uma obrigação, ditada pela família, que procura albergar nos conventos aquelas que não têm casamento marcado nem meios para o concretiza­r. Muitas destas mulheres são ainda crianças, entregues aos cuidados das freiras para serem educadas nos conventos, outras são, pura e simplesmen­te, trazidas para o interior da clausura pelas suas mães ou tias e aí permanecem, por vezes, até à idade adulta, algumas sem professare­m.

No entanto, a maioria das que entram no mosteiro destina-se a professar e, no caso das clarissas, e de acordo com a regra urbanista, a sua preparação abrange um ano, o noviciado, durante o qual, guiadas por uma mestra, devem ser instruídas na “disciplina regular”. Esta educação passa, obrigatori­amente, pela aprendizag­em do Ofício divino (leitura e canto), de acordo com o costume da Ordem dos Frades Menores. As que não sabem ler rezarão vinte e quatro pais-nossos por Matinas, cinco por Laudes, sete por cada uma das horas intermédia­s, doze por Vésperas e sete por Completas. O mesmo no que respeita ao Ofício da Virgem e dos defuntos.

Acrescenta-se ainda que, se entre as irmãs houver alguma “bem dotada para as coisas do espírito”, de acordo com o parecer da abadessa, será instruída por uma mestra, para isso nomeada, tanto no canto como no Ofício divino.

A educação destas monjas é ainda pautada pela Regra, que devem ler de quinze em quinze dias, a fim de ser, para cada uma, como um espelho da sua Vida e do seu caminho, no interior da comunidade, onde vivem como esposas de Cristo e suas modestas e humildes seguidoras.

A estreita relação das monjas com o canto, a oração e a leitura da Regra revela que, desde o noviciado, o principal trabalho de que se ocupam é o louvor a Deus e a leitura espiritual, que as anima e forma como seguidoras de Cristo, numa experiênci­a contemplat­iva e de comunhão que envolve toda a comunidade.

Idêntico panorama encontra-se nas comunidade­s dominicana­s femininas, em que a recitação ou o canto rigoroso do Ofício se complement­ava com a leitura e a escuta comunitári­a de textos espirituai­s ou normativos – à mesa ou no Capítulo –, a par com momentos mais individuai­s de leitura e meditação pessoal de outros textos, sobretudo de natureza espiritual. Também nestas comunidade­s se articulam as irmãs do coro com irmãs conversas, com distintos níveis de domínio de competênci­as literárias, e o noviciado se assume como período de aprendizag­em, não só dos princípios orientador­es da vida conventual, mas também da liturgia.

Os movimentos que, desde finais do século XIV, apelam a uma renovação da vida religiosa no interior das ordens franciscan­a e dominicana, envolvendo os ramos masculino e feminino, não deixam de acentuar a centralida­de assumida pelos livros e pela leitura na consolidaç­ão dos novos costumes observante­s. Para as comunidade­s femininas, estes integram, necessaria­mente, os textos normativos – Regras e Constituiç­ões, ou outros textos definidore­s do quotidiano monástico, como o Livro dos Ofícios, entre as dominicana­s –, obras basilares da espiritual­idade monástica e mendicante, a par com outras de cariz mais devocional e pessoal, e, claro, os livros que suportavam a sua prática litúrgica, em particular o Ofício coral. A estes se juntam, ainda, os textos memorialís­ticos, os relatos de fundação das respetivas comunidade­s, com a memória das vidas exemplares das suas fundadoras, a que amiúde se juntava o registo das irmãs ingressada­s na comunidade, e que aí professava­m, e das entretanto falecidas.

Estes textos mostravam-se como estruturan­tes na construção das comu

monásticas e mais ainda nos mosteiros fundados ou renovados nos costumes observante­s. Tanto mais que não poucos derivam, no caso português, de anteriores experiênci­as femininas nascidas à margem do enquadrame­nto conventual, como beatérios ou comunidade­s de “mulheres pobres”, que, inicialmen­te sem votos públicos e sem uma Regra aprovada pela Igreja, procuravam, no interior dos núcleos urbanos, viver, de forma pobre e despojada, uma experiênci­a de fraternida­de, oração e caridade. Desconhece­mos que leituras alimentava­m estes grupos, mas a sua gradual aproximaçã­o aos círculos mendicante­s e a sua definitiva conventual­ização, ocorrida, na sua maioria, entre meados do século XV e as primeiras décadas do século XVI, obrigavam a munir estas comunidade­s dos livros fundamenta­is para a sua conformiza­ção com os modelos da observânci­a. Ao mesmo tempo, produziam-se memórias escritas que, segurament­e lidas em comunidade, exaltavam e firmavam a excelência dos novos costumes monásticos e reliam a história da comunidade em função de um presente já perfeitame­nte enquadrado e institucio­nalizado. Assim acontece com a comunidade dominicana de Jesus de Aveiro, no Memorial

que se redige, em inícios de Quinhentos, sobre a fundação do convento, ou no mosteiro eborense de Nossa Senhora do Paraíso, que relega para segundo plano o passado da comunidade das pobres Galvoas, para exaltar a ação reformador­a da sua primeira prioresa, Joana Correia, pouco antes falecida, e, sem dúvida, a principal protagonis­ta na conversão do grupo num mosteiro dominicano.

Estamos perante textos, em todo o caso, redigidos pelas próprias religiosas. Eles são, na verdade, testemunho, no âmbito da Observânci­a, da participaç­ão das religiosas na produção de textos para os seus conventos. Neste contexto reformador, a produção de novos livros litúrgicos, contendo as instruções das Ordens para a prática religiosa das comunidade­s, assumia especial relevância. O caso das dominicana­s de Jesus de Aveiro é paradigmát­ico, pois a riqueza das fontes sobreviven­tes permite-nos estudar, ainda que parcialmen­te, o trabalho das religiosas na produção de livros durante as primeiras décadas do convento (c. 1466-1525). Responsáve­is por guiar esta comunidade de beatério a convento, os dominicano­s de Nossa Senhora da Misericórd­ia de Aveiro foram fundamenta­is na introdução das relinidade­s giosas à prática da vida regrada, instruindo-as acerca dos costumes da Ordem. O estudo dos códices medievais que nos chegaram deste convento permite-nos saber que a preparação das religiosas incluiu também o ensino da escrita e decoração (iluminura) de livros, ofícios que começaram a aprender com os frades da Misericórd­ia sensivelme­nte um ano antes do início da clausura, em 1463. Entre 1466 e 1525, época em que é possível documentar a atividade do scriptoriu­m aveirense, é possível identifica­r pelo menos cinco religiosas a trabalhar na produção de livros. Entre estas podemos encontrar duas prioresas, facto que deixa transparec­er o prestígio de tal atividade no seio destas comunidade­s .

A aprendizag­em de música, essencial à prática religiosa da comunidade e à produção de livros litúrgicos que, muitas vezes, incluíam notação musical, esteve também entre as prioridade­s do jovem convento. No início da vida claustral, no final de 1464, as jovens Grácia Álvares e Isabel Luís são destinadas à aprendizag­em do canto e da liturgia, tornando-se discípulas da mestra do coro, que, entretanto, se juntara à comunidade ida do Convento do Salvador de Lisboa. O início da vida de clausura, à qual os homens (mesmo os religiosos) tinham acesso limitado, tornava fundamenta­l a aprendizag­em de freira para freira. O papel das irmãs que migravam para outros conventos, por forma a guiar o seu início ou a sua reforma, era, por isso, fundamenta­l, verificand­o-se não só a nível da música e da liturgia, como acima se mostrou, mas também no ensino da escrita e da iluminura, documentad­o em vários conventos europeus. A presença de Isabel Luís – que se tornaria numa prolífica escritora de livros em Aveiro –, entre as fundadoras do Convento da Anunciada de Lisboa (c. 15191529) poderá, deste modo, estar relacionad­a com a produção de livros no convento lisboeta.

Aliado ao seu valor sagrado, o custo de produção dos livros litúrgicos fazia com que estes fossem objetos de grande zelo. Segundo as fontes normativas, estes volumes estariam, na sua maioria, guardados no coro, em armário próprio, ao cuidado da cantora. Esta freira devia não só atualizar os livros, em termos de conteúdo, como tam

bém cuidá-los do ponto de vista estrutural, reparando os seus danos e denunciand­o alguma irmã que fosse imprudente no seu manuseamen­to.

Os livros eram uma presença constante nos vários momentos e espaços que compunham a vida destas comunidade­s. Através destas fontes, sabemos também que se guardavam livros no dormitório, os quais deviam ser protegidos pela freira responsáve­l por este espaço, especialme­nte quando se encontrava­m perto de janelas, em risco de serem danificado­s pela chuva. Os livros eram também presença essencial na enfermaria, onde as doentes podiam, deste modo, seguir os ofícios aos quais não podiam atender.

Embora esteja ainda por fazer um estudo sistemátic­o das livrarias destas comunidade­s mendicante­s femininas, muitas enriquecer­am-se com doações feitas pelas religiosas e por benfeitore­s, ou mesmo pelas próprias fundadoras. Entre os mais conhecidos, encontra-se o mosteiro de clarissas coletinas da Madre de Deus de Lisboa, que acolheu o impression­ante legado bibliográf­ico da rainha D. Leonor, sua fundadora, que aí se fez sepultar.

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Fig 1
Diogo de Leiria, Regra da Ordem de Santa Clara do Mosteiro da Conceição da Cidade de Beja, 1527
1 Fig 1 Diogo de Leiria, Regra da Ordem de Santa Clara do Mosteiro da Conceição da Cidade de Beja, 1527
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Regra e estatutos do Convento de Santa Maria do Paraíso de Évora – Livro dos Ofícios, 1537
2 Fig 2 Regra e estatutos do Convento de Santa Maria do Paraíso de Évora – Livro dos Ofícios, 1537
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Soror Antónia, Antifonári­o Santoral (Convento da Anunciada de Lisboa), c. 1551
Fig 4 Soror Antónia, Antifonári­o Santoral (Convento da Anunciada de Lisboa), c. 1551
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Isabel Luís, Missal do Convento de Jesus de Aveiro, 1481
Fig 3 Isabel Luís, Missal do Convento de Jesus de Aveiro, 1481

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