ESTUDO E DEVOÇÃO: AS MULHERES E OS ESPAÇOS DOS LIVROS NA PINTURA DA BAIXA IDADE MÉDIA
Na cultura visual da Idade Média, as imagens de mulheres com livros são muito frequentes. De tal modo que se torna arriscado realizar uma síntese sobre o tema, correndo o risco da generalização excessiva, perante a vastidão de situações concretas que a iconografia oferece. Religiosas e laicas, nobres e burguesas, personagens históricas e sagradas, todas se relacionam, de um modo ou de outro, com o livro, sendo este, por isso mesmo, chamado a desempenhar diferentes papéis. Surgem nas mãos de santas, como atributo pessoal, são apresentados e oferecidos, em contexto cortesão, às suas comitentes; aparecem sobre as mesas de trabalho de escribas e autoras; são presença assídua em cenários que promovem práticas religiosas e devocionais. E nas mãos da Virgem Maria, além dos significados teológicos inerentes, impõe-se como atributo que promove e legitima a literacia feminina, ainda que reservada, quase exclusivamente, aos textos sagrados e de teor religioso.
Na esfera privada ou doméstica, os livros aos quais a generalidade das pessoas tinha acesso (e pelos quais tinha interesse, retirando desta equação a nobreza e a burguesia) eram de natureza religiosa, detendo uma função essencialmente devocional. Mas não só. Serviam, ainda, como manuais de primeira leitura, sobretudo nas suas versões vernaculares, ao mesmo tempo que se introduziam os rudimentos do credo cristão na infância. Papel que os manuais de conduta, dirigidos a mulheres, atribuíram, genericamente, às mães. A prática da leitura em voz alta era corrente, não só no contexto do ensino-aprendizagem informal, mas também como prática de sociabilidade entre os membros da mesma casa ou nos círculos mais íntimos. Aqueles que não sabiam ler podiam, deste modo, tomar contacto com as histórias sagradas e as peripécias das principais vidas dos santos e santas. Entre estes, os livros de horas, os livros de orações, as Vidas de Cristo e da Virgem, ou a Lenda Dourada (coleção de vidas de santos e de outras figuras bíblicas compilada, no século XIII, pelo dominicano Jacopo de Varazze) eram os grandes best-sellers.
Apesar da fruição coletiva do livro estar visualmente documentada na iconografia, as imagens produzidas na Idade Média privilegiam o seu uso pessoal, em espaços reservados, marcados por notas de intimidade. A partir desta observação, impõe-se analisar que género de espaços com livros, especificamente ocupados por mulheres, foram concebidos pelos artistas nos últimos séculos da Idade Média.
Entre 1387 e 1389, Christine de Pizan (c. 1363-c.1430), filha do astrólogo de Carlos V de França (1338-1380), notabilizada pela sua obra literária, perde o pai e o marido, o último vítima de peste, ficando entregue a si mesma, com três filhos e a braços com graves dificuldades financeiras, situação que condicionaria o seu estado de ânimo e que marcaria, de modo incontornável, o sentido da sua produção intelectual. Em 5 de outubro de 1402, ainda a viver um luto doloroso, manifesta no seu Livro do caminho do longo estudo, a necessidade de se isolar e de estar consigo mesma, voluntariamente só, como afirma, procurando refúgio no seu estude petite (estúdio pequeno), onde se fez rodear de livros. Uma imagem literária que a autora fez transformar em imagem visual, não uma, mas várias vezes. A iconografia de Christine de Pizan, nos manuscritos iluminados que contêm as suas obras, produzidos contemporaneamente, apresenta-a a escrever, a entregar os livros, terminados e encadernados, aos comitentes, ou rodeada de outras mulheres, em ambiente cortesão, ou de personagens alegóricas, também femininas, assumindo o protagonismo em tipos iconográficos, habitualmente reservados à esfera masculina. A uniformidade no tratamento da sua figura e dos espaços concebidos para representar o seu estúdio demonstram a eficácia da gestão da sua imagem, muito provavelmente com a própria Christine a superintender ou a dar indicações específicas aos iluminadores.
No Livro da Rainha, assim designado por ter sido oferecido a Isabeau de Bavaria (1371-1435), rainha-consorte de Carlos VI de França (1368-1422), a iluminura que antecede as Cem Balades apresenta Christine de acordo com o modelo convencionalmente utilizado para a representação de autores, tradutores e letrados de um modo geral. Por conseguinte, Christine é representada a escrever, isolada, no interior de uma pequena divisão, não prescindindo, no entanto, da companhia do seu pequeno cão, cuja presença contribui para a natureza doméstica e íntima do espaço onde se encontra. A dimensão reduzida do espaço é acentuada pelos volumes da cadeira e da mesa que ocupam praticamente todo o espaço disponível. O modelo estava acessível nas centenas de imagens dos quatro Evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João) ou dos quatro Doutores da Igreja (Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona, Gregório o Grande e Jerónimo de Estridão), ocupados na redação dos textos que viriam a ser fundamentais para a história da Igreja, em cenários que, pelo menos desde o século XIV, tenderão a aproximar-se cada vez mais de ambientes seculares.
Importa clarificar a relação que estes espaços estabeleciam, tipológica e metaforicamente, com determinados recintos característicos dos ambientes eclesiásticos. Christine de Pizan utiliza, sem distinção, as palavras étude (estúdio), chambre (câmara) e cele (cela) para se referir ao seu espaço privativo de recolhimento. Em latim medieval, studium tinha o significado de estudo, ou seja, de esforço aplicado em exercícios intelectuais, e só muito raramente enunciou um espaço físico. Até que, no século XIII, em ambiente monástico, em latim ou na transposição para as línguas vernaculares, surgem os primeiros usos atestados com o significado de recinto físico circunscrito onde os monges se entregavam ao estudo. Paralelamente, documentam-se termos como cela, cubiculum ou sedilia na mesma acepção. Além disso, e reforçando a dificuldade em definir limites terminológicos claros, na época, studium, studio, studiolo, étude e scriptorium, scrittoio, écritoire, escritório eram, muitas vezes, utilizados como equivalentes. Alguns destes termos ganham valor semântico a partir da natureza reduzida do espaço e da sua tendencial ocupação individual, como cela ou cubículo. Outros constroem-se a partir do equipamento móvel que o espaço acolhia como sedilia, significando assento, ou escritório que, para além de constituir o espaço físico concreto, também podia descrever uma peça de mobiliário, uma caixa de escrever ou ainda um estojo portátil.
Os artistas também recorriam a princípios similares na conceção das imagens. A representação da parte pelo todo era suficiente para sugerir, ao olhar do observador, uma determinada tipologia espacial. Pese embora a distância temporal que separa os retratos de Marie de França, com produção literária documentada entre 1160 e 1190, e da dominicana Elsbeth Stagel (c. 1300-1360), o princípio compositivo subjacente é o mesmo. Nas duas imagens não se definem pictoricamente espaços interiores. No primeiro caso, Marie, de identidade desconhecida, mas cuja atividade está localizada, em Inglaterra, próxima dos circuitos da corte, ocupa um fundo dourado sem potencial descritivo, sentada num banco, junto do qual se vê uma estante com uma grande tábua de madeira que utiliza como mesa de trabalho. No segundo caso, uma iluminura do século XV, a freira Elsbeth, conhecida pela redacção das Vidas das freiras (Schwesternbuch) do Mosteiro dominicano de Töss, perto de Zurique, é retratada, segundo o modelo já clássico do autor (e das autoras), numa cadeira-escritório,
de mobiliário composta pelo assento e pela tábua acoplados, porém, a céu aberto, num prado florido. Através destes exemplos, torna-se evidente que as peças de mobiliário, na ausência de uma estrutura arquitetonicamente definida, permitem qualificar um espaço e a sua função.
Não sendo autora, o binómio cadeira-livro, como símbolo de autoridade e de conhecimento, está vinculado, de forma intrínseca, à figura da Virgem. No período medieval, entre os múltiplos títulos atribuídos à Mãe de Deus, a metáfora do trono, através da qual se estabelecia a relação entre o seu ventre incorrupto e a primeira morada de Cristo, era uma das mais dominantes. Virgem-trono, trono da Sabedoria (sedes sapientiae), trono-cadeira ou cathedra identificavam-na nesse papel, privilegiado e único, de tabernáculo de Deus, a encarnação da Divina Sabedoria. Destas metáforas derivaram as múltiplas imagens, esculpidas ou pintadas, da Virgem entronizada, sozinha ou com o Menino.
No retábulo pintado por Giovanni da Milano, pouco depois de meados do século XIV, não surpreende, pois, que a Virgem Anunciada esteja numa cadeira tão elaborada como a de Bernardo de Claraval (1090-1153), Doutor da Igreja, reformador da Ordem de Cister e uma das autoridades mais citadas ao longo da época medieval, designadamente no que toca à sua teologia mariana. Porém, não se trata de uma cadeira qualquer. É uma cadeira-escritório, especificamente direccionada à escrita e ao trabalho intelectual. Ambos os exemplares, assentes num estrado de madeira, são compostos por uma cadeira, uma mesa de trabalho e uma estante de perfil piramidal que, ao possibilitar a consulta dos livros abertos na vertical, a torna particularmente apta para o exercício da cópia e do comentário de textos, típico da exegese medieval. Assinalam-se, contudo, algumas diferenças relevantes no conjunto da Virgem. Por um lado, a cadeira é coroada, no topo, por um sobre-céu (ou dossel) que a transforma num trono-tabernáculo e a distingue, hierarquicamente, da cadeira de Bernardo de Clapeça
raval. Por outro lado, não há qualquer instrumento de escrita no escritório da Virgem. Porque a Virgem não escreve, lê.
A cadeira-scriptorium, em imagens posteriores do mesmo episódio nas quais se dá mais relevo à definição arquitetónica do espaço onde decorre a cena, passará a estar integrada num conjunto mais vasto, composto por múltiplas divisões. Altichiero da Zevio, a par de outros pintores do seu tempo, transforma o escritório, antes isolado, num dos compartimentos da casa da Virgem. Trata-se, verdadeiramente, de um pequeno estúdio, separado da câmara de dormir, sugerida, ao fundo, pela cortina vermelha. Num outro exemplo, esta segmentação é ainda mais evidente. Numa pintura a fresco, a Virgem ocupa uma espécie de alpendre que se conecta com um espaço anterior, o estúdio, onde se encontram as peças de mobiliário previsíveis: um banco e uma estante de leitura com prateleiras para livros. Ao fundo, num plano mais recuado, surge a câmara de dormir com uma cama e um banco corrido.
Na verdade, de acordo com a interpretação exegética do Evangelho de Lucas que relata a Anunciação, a Virgem recebeu o anúncio do anjo Gabriel que a informa de que havia sido escolhida para ser Mãe de Deus, na sua casa, em Nazaré, enquanto lia as Sagradas Escrituras. Aspectos que definirão a iconografia da cena e consagrarão a Virgem como a principal leitora da Idade Média, posicionando-a, assim, como modelo a seguir por todas as outras. É por isso natural que muitas das mulheres, incluídas as santas, que se veem a ler na pintura medieval sejam modeladas, na pose e na gestualidade, a partir do exemplo da Virgem.
Por estas razões, no âmbito de qualquer análise espacial que tenha como foco as mulheres na Idade Média, a Anunciação é um objecto de análise indispensável, uma vez que é o tema iconográfico, por excelência, vocacionado para o espaço doméstico e para a leitura no feminino. Na sua maioria, o tipo de ambientes criados pelos artistas privilegiou o livro na sua relação com as práticas devocionais da oração e meditação, fazendo com que, na verdade, qualquer espaço da casa pudesse ser utilizado para esse efeito. Divisões especialmente concebidas para o estudo/leitura são raras. Na grande parte dos casos, dando eco da polivalência das divisões da casa medieval, uma estante, uma arca, um banco junto à cama ou perto da lareira e um livro, acompanhados por outros objetos devocionais, eram suficientes para criar o ambiente adequado.
Tratados domésticos, manuais de conduta e guias espirituais, dirigidos ao público feminino, incluíam considerações sobre as condições ótimas para o desenvolvimento de práticas devocionais no espaço doméstico. O oratório, o quarto ou lugares escondidos, solitários e secretos eram todos considerados espaços adequados. Recomendava-se às mulheres que se encerrassem nas divisões, fechando as portas, e imitassem a Virgem que estava a ler no seu ‘cubiculum secretum’ no momento em que o Anjo Gabriel entrou. Um nicho numa parede servindo de armário, um altar portátil, ou outro tipo de imagem religiosa, pousado num aparador ou na soleira de uma janela, têxteis para ornamentar e sacralizar, um banco ou pequeno leitoril, uma almofada para pousar o livro, um pequeno cofre para guardar os rosários e as contas de rezar... e o ambiente perfeito, ou, pelo menos, idealizado, estava criado.
As ideias de clausura, isolamento e recolhimento são transversais a todos os espaços articulados com os livros. No entanto, e apesar de o livro não ser um marcador de género, a sua presença contextualizada e espacializada denuncia não só uma distinção de ideais como a existência de práticas especificamente femininas. Não, certamente, no que diz respeito a intelectuais, como Christine de Pizan, que se faz representar como um congénere do sexo masculino no interior do seu estúdio. Já quanto às imagens da Virgem a ler num espaço doméstico, não existe nenhum equivalente masculino. As razões são múltiplas e não assentam apenas na distinção clássica entre géneros e respectivas esferas de actuação. É certo que aos homens, na iconografia e na sua relação com os livros, competiram, idealmente, outros papéis que privilegiaram a sua relação com o exterior e determinados pressupostos de autoridade. Mas a realidade, sempre múltipla e altamente variável, não se reduzirá, seguramente, ao mundo projetado nas imagens e não podemos crer que todas as mulheres liam nas suas casas e que os homens só o faziam em espaços predefinidos para essa função.