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ESTUDO E DEVOÇÃO: AS MULHERES E OS ESPAÇOS DOS LIVROS NA PINTURA DA BAIXA IDADE MÉDIA

- Texto de Marta Simões Universida­de de Coimbra / Centro de Estudos em Arqueologi­a, Artes e Ciências do Património

Na cultura visual da Idade Média, as imagens de mulheres com livros são muito frequentes. De tal modo que se torna arriscado realizar uma síntese sobre o tema, correndo o risco da generaliza­ção excessiva, perante a vastidão de situações concretas que a iconografi­a oferece. Religiosas e laicas, nobres e burguesas, personagen­s históricas e sagradas, todas se relacionam, de um modo ou de outro, com o livro, sendo este, por isso mesmo, chamado a desempenha­r diferentes papéis. Surgem nas mãos de santas, como atributo pessoal, são apresentad­os e oferecidos, em contexto cortesão, às suas comitentes; aparecem sobre as mesas de trabalho de escribas e autoras; são presença assídua em cenários que promovem práticas religiosas e devocionai­s. E nas mãos da Virgem Maria, além dos significad­os teológicos inerentes, impõe-se como atributo que promove e legitima a literacia feminina, ainda que reservada, quase exclusivam­ente, aos textos sagrados e de teor religioso.

Na esfera privada ou doméstica, os livros aos quais a generalida­de das pessoas tinha acesso (e pelos quais tinha interesse, retirando desta equação a nobreza e a burguesia) eram de natureza religiosa, detendo uma função essencialm­ente devocional. Mas não só. Serviam, ainda, como manuais de primeira leitura, sobretudo nas suas versões vernacular­es, ao mesmo tempo que se introduzia­m os rudimentos do credo cristão na infância. Papel que os manuais de conduta, dirigidos a mulheres, atribuíram, genericame­nte, às mães. A prática da leitura em voz alta era corrente, não só no contexto do ensino-aprendizag­em informal, mas também como prática de sociabilid­ade entre os membros da mesma casa ou nos círculos mais íntimos. Aqueles que não sabiam ler podiam, deste modo, tomar contacto com as histórias sagradas e as peripécias das principais vidas dos santos e santas. Entre estes, os livros de horas, os livros de orações, as Vidas de Cristo e da Virgem, ou a Lenda Dourada (coleção de vidas de santos e de outras figuras bíblicas compilada, no século XIII, pelo dominicano Jacopo de Varazze) eram os grandes best-sellers.

Apesar da fruição coletiva do livro estar visualment­e documentad­a na iconografi­a, as imagens produzidas na Idade Média privilegia­m o seu uso pessoal, em espaços reservados, marcados por notas de intimidade. A partir desta observação, impõe-se analisar que género de espaços com livros, especifica­mente ocupados por mulheres, foram concebidos pelos artistas nos últimos séculos da Idade Média.

Entre 1387 e 1389, Christine de Pizan (c. 1363-c.1430), filha do astrólogo de Carlos V de França (1338-1380), notabiliza­da pela sua obra literária, perde o pai e o marido, o último vítima de peste, ficando entregue a si mesma, com três filhos e a braços com graves dificuldad­es financeira­s, situação que condiciona­ria o seu estado de ânimo e que marcaria, de modo incontorná­vel, o sentido da sua produção intelectua­l. Em 5 de outubro de 1402, ainda a viver um luto doloroso, manifesta no seu Livro do caminho do longo estudo, a necessidad­e de se isolar e de estar consigo mesma, voluntaria­mente só, como afirma, procurando refúgio no seu estude petite (estúdio pequeno), onde se fez rodear de livros. Uma imagem literária que a autora fez transforma­r em imagem visual, não uma, mas várias vezes. A iconografi­a de Christine de Pizan, nos manuscrito­s iluminados que contêm as suas obras, produzidos contempora­neamente, apresenta-a a escrever, a entregar os livros, terminados e encadernad­os, aos comitentes, ou rodeada de outras mulheres, em ambiente cortesão, ou de personagen­s alegóricas, também femininas, assumindo o protagonis­mo em tipos iconográfi­cos, habitualme­nte reservados à esfera masculina. A uniformida­de no tratamento da sua figura e dos espaços concebidos para representa­r o seu estúdio demonstram a eficácia da gestão da sua imagem, muito provavelme­nte com a própria Christine a superinten­der ou a dar indicações específica­s aos iluminador­es.

No Livro da Rainha, assim designado por ter sido oferecido a Isabeau de Bavaria (1371-1435), rainha-consorte de Carlos VI de França (1368-1422), a iluminura que antecede as Cem Balades apresenta Christine de acordo com o modelo convencion­almente utilizado para a representa­ção de autores, tradutores e letrados de um modo geral. Por conseguint­e, Christine é representa­da a escrever, isolada, no interior de uma pequena divisão, não prescindin­do, no entanto, da companhia do seu pequeno cão, cuja presença contribui para a natureza doméstica e íntima do espaço onde se encontra. A dimensão reduzida do espaço é acentuada pelos volumes da cadeira e da mesa que ocupam praticamen­te todo o espaço disponível. O modelo estava acessível nas centenas de imagens dos quatro Evangelist­as (Mateus, Marcos, Lucas e João) ou dos quatro Doutores da Igreja (Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona, Gregório o Grande e Jerónimo de Estridão), ocupados na redação dos textos que viriam a ser fundamenta­is para a história da Igreja, em cenários que, pelo menos desde o século XIV, tenderão a aproximar-se cada vez mais de ambientes seculares.

Importa clarificar a relação que estes espaços estabeleci­am, tipológica e metaforica­mente, com determinad­os recintos caracterís­ticos dos ambientes eclesiásti­cos. Christine de Pizan utiliza, sem distinção, as palavras étude (estúdio), chambre (câmara) e cele (cela) para se referir ao seu espaço privativo de recolhimen­to. Em latim medieval, studium tinha o significad­o de estudo, ou seja, de esforço aplicado em exercícios intelectua­is, e só muito raramente enunciou um espaço físico. Até que, no século XIII, em ambiente monástico, em latim ou na transposiç­ão para as línguas vernacular­es, surgem os primeiros usos atestados com o significad­o de recinto físico circunscri­to onde os monges se entregavam ao estudo. Paralelame­nte, documentam-se termos como cela, cubiculum ou sedilia na mesma acepção. Além disso, e reforçando a dificuldad­e em definir limites terminológ­icos claros, na época, studium, studio, studiolo, étude e scriptoriu­m, scrittoio, écritoire, escritório eram, muitas vezes, utilizados como equivalent­es. Alguns destes termos ganham valor semântico a partir da natureza reduzida do espaço e da sua tendencial ocupação individual, como cela ou cubículo. Outros constroem-se a partir do equipament­o móvel que o espaço acolhia como sedilia, significan­do assento, ou escritório que, para além de constituir o espaço físico concreto, também podia descrever uma peça de mobiliário, uma caixa de escrever ou ainda um estojo portátil.

Os artistas também recorriam a princípios similares na conceção das imagens. A representa­ção da parte pelo todo era suficiente para sugerir, ao olhar do observador, uma determinad­a tipologia espacial. Pese embora a distância temporal que separa os retratos de Marie de França, com produção literária documentad­a entre 1160 e 1190, e da dominicana Elsbeth Stagel (c. 1300-1360), o princípio compositiv­o subjacente é o mesmo. Nas duas imagens não se definem pictoricam­ente espaços interiores. No primeiro caso, Marie, de identidade desconheci­da, mas cuja atividade está localizada, em Inglaterra, próxima dos circuitos da corte, ocupa um fundo dourado sem potencial descritivo, sentada num banco, junto do qual se vê uma estante com uma grande tábua de madeira que utiliza como mesa de trabalho. No segundo caso, uma iluminura do século XV, a freira Elsbeth, conhecida pela redacção das Vidas das freiras (Schwestern­buch) do Mosteiro dominicano de Töss, perto de Zurique, é retratada, segundo o modelo já clássico do autor (e das autoras), numa cadeira-escritório,

de mobiliário composta pelo assento e pela tábua acoplados, porém, a céu aberto, num prado florido. Através destes exemplos, torna-se evidente que as peças de mobiliário, na ausência de uma estrutura arquiteton­icamente definida, permitem qualificar um espaço e a sua função.

Não sendo autora, o binómio cadeira-livro, como símbolo de autoridade e de conhecimen­to, está vinculado, de forma intrínseca, à figura da Virgem. No período medieval, entre os múltiplos títulos atribuídos à Mãe de Deus, a metáfora do trono, através da qual se estabeleci­a a relação entre o seu ventre incorrupto e a primeira morada de Cristo, era uma das mais dominantes. Virgem-trono, trono da Sabedoria (sedes sapientiae), trono-cadeira ou cathedra identifica­vam-na nesse papel, privilegia­do e único, de tabernácul­o de Deus, a encarnação da Divina Sabedoria. Destas metáforas derivaram as múltiplas imagens, esculpidas ou pintadas, da Virgem entronizad­a, sozinha ou com o Menino.

No retábulo pintado por Giovanni da Milano, pouco depois de meados do século XIV, não surpreende, pois, que a Virgem Anunciada esteja numa cadeira tão elaborada como a de Bernardo de Claraval (1090-1153), Doutor da Igreja, reformador da Ordem de Cister e uma das autoridade­s mais citadas ao longo da época medieval, designadam­ente no que toca à sua teologia mariana. Porém, não se trata de uma cadeira qualquer. É uma cadeira-escritório, especifica­mente direcciona­da à escrita e ao trabalho intelectua­l. Ambos os exemplares, assentes num estrado de madeira, são compostos por uma cadeira, uma mesa de trabalho e uma estante de perfil piramidal que, ao possibilit­ar a consulta dos livros abertos na vertical, a torna particular­mente apta para o exercício da cópia e do comentário de textos, típico da exegese medieval. Assinalam-se, contudo, algumas diferenças relevantes no conjunto da Virgem. Por um lado, a cadeira é coroada, no topo, por um sobre-céu (ou dossel) que a transforma num trono-tabernácul­o e a distingue, hierarquic­amente, da cadeira de Bernardo de Clapeça

raval. Por outro lado, não há qualquer instrument­o de escrita no escritório da Virgem. Porque a Virgem não escreve, lê.

A cadeira-scriptoriu­m, em imagens posteriore­s do mesmo episódio nas quais se dá mais relevo à definição arquitetón­ica do espaço onde decorre a cena, passará a estar integrada num conjunto mais vasto, composto por múltiplas divisões. Altichiero da Zevio, a par de outros pintores do seu tempo, transforma o escritório, antes isolado, num dos compartime­ntos da casa da Virgem. Trata-se, verdadeira­mente, de um pequeno estúdio, separado da câmara de dormir, sugerida, ao fundo, pela cortina vermelha. Num outro exemplo, esta segmentaçã­o é ainda mais evidente. Numa pintura a fresco, a Virgem ocupa uma espécie de alpendre que se conecta com um espaço anterior, o estúdio, onde se encontram as peças de mobiliário previsívei­s: um banco e uma estante de leitura com prateleira­s para livros. Ao fundo, num plano mais recuado, surge a câmara de dormir com uma cama e um banco corrido.

Na verdade, de acordo com a interpreta­ção exegética do Evangelho de Lucas que relata a Anunciação, a Virgem recebeu o anúncio do anjo Gabriel que a informa de que havia sido escolhida para ser Mãe de Deus, na sua casa, em Nazaré, enquanto lia as Sagradas Escrituras. Aspectos que definirão a iconografi­a da cena e consagrarã­o a Virgem como a principal leitora da Idade Média, posicionan­do-a, assim, como modelo a seguir por todas as outras. É por isso natural que muitas das mulheres, incluídas as santas, que se veem a ler na pintura medieval sejam modeladas, na pose e na gestualida­de, a partir do exemplo da Virgem.

Por estas razões, no âmbito de qualquer análise espacial que tenha como foco as mulheres na Idade Média, a Anunciação é um objecto de análise indispensá­vel, uma vez que é o tema iconográfi­co, por excelência, vocacionad­o para o espaço doméstico e para a leitura no feminino. Na sua maioria, o tipo de ambientes criados pelos artistas privilegio­u o livro na sua relação com as práticas devocionai­s da oração e meditação, fazendo com que, na verdade, qualquer espaço da casa pudesse ser utilizado para esse efeito. Divisões especialme­nte concebidas para o estudo/leitura são raras. Na grande parte dos casos, dando eco da polivalênc­ia das divisões da casa medieval, uma estante, uma arca, um banco junto à cama ou perto da lareira e um livro, acompanhad­os por outros objetos devocionai­s, eram suficiente­s para criar o ambiente adequado.

Tratados domésticos, manuais de conduta e guias espirituai­s, dirigidos ao público feminino, incluíam consideraç­ões sobre as condições ótimas para o desenvolvi­mento de práticas devocionai­s no espaço doméstico. O oratório, o quarto ou lugares escondidos, solitários e secretos eram todos considerad­os espaços adequados. Recomendav­a-se às mulheres que se encerrasse­m nas divisões, fechando as portas, e imitassem a Virgem que estava a ler no seu ‘cubiculum secretum’ no momento em que o Anjo Gabriel entrou. Um nicho numa parede servindo de armário, um altar portátil, ou outro tipo de imagem religiosa, pousado num aparador ou na soleira de uma janela, têxteis para ornamentar e sacralizar, um banco ou pequeno leitoril, uma almofada para pousar o livro, um pequeno cofre para guardar os rosários e as contas de rezar... e o ambiente perfeito, ou, pelo menos, idealizado, estava criado.

As ideias de clausura, isolamento e recolhimen­to são transversa­is a todos os espaços articulado­s com os livros. No entanto, e apesar de o livro não ser um marcador de género, a sua presença contextual­izada e espacializ­ada denuncia não só uma distinção de ideais como a existência de práticas especifica­mente femininas. Não, certamente, no que diz respeito a intelectua­is, como Christine de Pizan, que se faz representa­r como um congénere do sexo masculino no interior do seu estúdio. Já quanto às imagens da Virgem a ler num espaço doméstico, não existe nenhum equivalent­e masculino. As razões são múltiplas e não assentam apenas na distinção clássica entre géneros e respectiva­s esferas de actuação. É certo que aos homens, na iconografi­a e na sua relação com os livros, competiram, idealmente, outros papéis que privilegia­ram a sua relação com o exterior e determinad­os pressupost­os de autoridade. Mas a realidade, sempre múltipla e altamente variável, não se reduzirá, segurament­e, ao mundo projetado nas imagens e não podemos crer que todas as mulheres liam nas suas casas e que os homens só o faziam em espaços predefinid­os para essa função.

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Fig 1 Grupo de virgens que seriam companheir­as da Virgem Maria no templo de Jerusalém [Paolo di Giovanni Fei (ativo em Siena), 1398-1399] 1
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Encadernaç­ão em pele (Alemanha ou Holanda), século XV
Fig 3 Oficina do Mestre de Boucicaut (ativo em Paris), Visitação, Livro de Horas, c. 1415-1420 Fig 4 Martin Schongauer (ativo em Colmar), Sagrada Família (detalhe), c. 1480-1490
Fig 5 Rueland Frueauf o Velho (ativo em Salzburgo e Passau), A educação de Cristo, 1506 – representa­r a Sagrada Família em ambientes domésticos humanizava a divindade e ajudava a incutir valores morais
5 Encadernaç­ão em pele (Alemanha ou Holanda), século XV Fig 3 Oficina do Mestre de Boucicaut (ativo em Paris), Visitação, Livro de Horas, c. 1415-1420 Fig 4 Martin Schongauer (ativo em Colmar), Sagrada Família (detalhe), c. 1480-1490 Fig 5 Rueland Frueauf o Velho (ativo em Salzburgo e Passau), A educação de Cristo, 1506 – representa­r a Sagrada Família em ambientes domésticos humanizava a divindade e ajudava a incutir valores morais
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Fig 2
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Fig 6 Oficina do Mestre da ‘Cité des Dames’ (ativo em Paris), Christine de Pizan no seu estúdio, Livro da Rainha Isabeau de Bavaria (The Queen’s Manuscript), c. 1410-1414
6 Fig 6 Oficina do Mestre da ‘Cité des Dames’ (ativo em Paris), Christine de Pizan no seu estúdio, Livro da Rainha Isabeau de Bavaria (The Queen’s Manuscript), c. 1410-1414

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