MULHERES LEITORAS NA TUMULÁRIA MEDIEVAL PORTUGUESA
A arte funerária destina-se sempre a dignificar, homenagear e rememorar quem morreu, pelo que os objetos (túmulos, lápides) são feitos para servir estes propósitos. Em épocas anteriores ao século XX, diferenciam-se, entre outros aspetos, pelo género a que se referem: os temas iconográficos usados pelas mulheres são, quase sempre, distintos dos que são destinados aos homens. Na Idade Média, as iconografias funerárias femininas e masculinas tiveram várias propostas visuais, com códigos específicos, mais ou menos entendíveis ao olhar de hoje . Não existe nesta afirmação qualquer intenção de distinguir qualitativamente, mas apenas de notar que esta diferenciação se assumiu, ao longo dos séculos, como relevante.
Em Portugal, uma iconografia de amplo sucesso foi a das mulheres que leem no “leito de morte”, isto é, nas suas representações em estátuas que jazem sobre as tampas dos respetivos túmulos (jacentes). Mas, racionalmente, nada pode ser mais controverso: quem está morto não lê, e quem lê tem de estar não apenas vivo, mas capacitado da sua visão, e nenhuma das situações se aplica. Os jacentes servem, na maioria dos casos, para criar uma realidade alternativa, uma realidade de substituição. Destinam-se a contrariar, na mente dos que observam, a ideia de uma morte absoluta (salvo casos muito específicos pouco apreciados entre nós), substituindo a imagem de quem está morto (no interior do túmulo) por uma “viva”, que está à superfície, visível e feita para resistir à voragem do tempo.
Jacentes de mulheres com livros nas mãos existem não só em Portugal, mas também noutros países, e são sempre um símbolo de cultura, sabedoria, poder social e económico e da conduta feminina ideal, porque a leitura faz-se, preferencialmente, no recato doméstico, espaço a que a mulher de um estatuto social superior estava especialmente confinada.
Esta pauta moral para a conduta feminina na Idade Média serve as mulheres comuns (no sentido humano), ou as mulheres divinas ou tocadas pelo divino. É a Virgem Maria o exemplo máximo dessa pauta moral, e a arte que a representa é eloquente quanto baste para percebermos que esse é o modelo que
os confessores e os conselheiros das mulheres comuns quiseram que lhes fosse associado. Como exemplos visuais, basta que recordemos a Virgem Maria representada no portal da igreja românica de Sangüesa (séc. XII), segurando um livro aberto com excertos do Ave Maria, ou a Virgem que oferece um pequenino Livro de Horas ao Menino, fechado, que podemos observar numa cena da “Natividade” (séc. XIV – Igreja de S. Leonardo da Atouguia da Baleia). Para a compreensão deste tópico não posso deixar de referir outra iconografia que, certamente, surgiu como expressão visual da promoção de desenvolvimento intelectual e, através dele, do espírito das mulheres: “Santa Ana ensinando a Virgem a Ler”. Entre nós, e à semelhança de outros países, existem exemplos medievais, como uma sofisticada pintura catalã, atual pertença do Museu Nacional de Arte Antiga. No mesmo museu, uma escultura em alabastro policromado, produzida em Inglaterra, e, ainda, no mesmo material e da mesma proveniência, a homónima que se encontra no Museu Municipal de Faro. À parte o valor devocional de que estas figuras religiosas se revestem, o tema nelas representado é um poderoso programa de ensinamento pelas imagens quanto ao valor da literacia e, com ela, da prática da leitura pelas mulheres.
O que torna singular alguns jacentes femininos de túmulos portugueses, até
pela sua concentração num único espaço, é a presença de livros abertos, com textos escritos e legíveis (epigrafados e possivelmente pintados). São os túmulos de mulheres que no século XIV integraram capelas da Catedral de Lisboa.
O mais antigo com esta iconografia terá sido o de Margarida Alvernaz, uma “boa dona de Lisboa”, como é identificada no Livro de Linhagens, isto é, uma mulher pertencente às elites de Lisboa do reinado de D. Dinis (importantes mercadores, homens do serviço do rei, oligarquias municipais, etc.), e não à tradicional nobreza terratenente ou de corte. Terá sido esculpido ainda na primeira metade do século XIV para ser colocado na capela funerária que ela e seu marido, o almirante-mor do reino D. Nuno Fernandes Cogominho, instituíram no então recente claustro deste templo. Sobre a tampa tumular representa-se a efígie de D. Margarida com as mãos a segurarem um livro aberto sobre o peito, em posição acertada para a leitura. Nas “páginas” do livro nada surge escrito. Alguns vestígios de uma antiga policromia neste monumento funerário, porém, permitem colocar a hipótese de ter tido algum texto (oração) que indicasse aos observadores que D. Margarida estaria, até ao dia do Juízo Final, concentrada na leitura de um muito provável Livro de Horas ou de um Saltério, dando continuidade ao que teria sido a sua conduta em vida: doméstica, culta e concentrada nos seus afazeres virtuosos. De datas próximas, e até com evidentes afinidades estilísticas, é o túmulo de outra mulher das elites lisboetas, D. Sancha Pires Palhavã, sepultada em São Domingos de Lisboa. Pelo que ainda resta dos braços do jacente, percebemos que poderia ter, originalmente, um livro aberto entre as mãos.
D. Beatriz de Castela também seguiu este modelo iconográfico, determinando em testamento que desejava sepul
tar-se na capela-mor da Sé de Lisboa (no “meu moymento que eu mandey fazer”), junto do marido, o rei Afonso IV. Sabemos, através de descrições prévias ao terramoto de 1755, que o jacente da rainha a representava com um livro aberto nas mãos. Fê-lo, ou por inspiração no túmulo de D. Margarida Alvernaz, uma hipótese já equacionada, ou, e parece-me mais provável, porque nesses anos esta era uma tendência já ensaiada e continuada entre nós e, sobretudo, porque outras mulheres de casas reais já o haviam feito, com especial destaque para o precoce e sofisticado jacente com livro aberto de Leonor da Aquitânia (inícios do século XIII). No caso de D. Beatriz, além de se fazer representar com o hábito de clarissa e, com isso, seguir o exemplo de outras mulheres da nobreza, a fim de criar uma imagem de proximidade ao ideal monástico feminino, a presença do livro (certamente com texto) acabava por conformar, no seu todo, o padrão de comportamento ideal feminino e, no caso de uma rainha, um exemplo para as suas súbditas.
Esta mesma rainha (ou o casal régio) poderá ter mandado fazer um outro túmulo para os restos mortais de uma criança da família real portuguesa, do sexo feminino, falecida no tempo de vida de D. Beatriz, como propuseram alguns autores (mas de que não há notícia), ou para uma menina já sepultada na Sé de Lisboa, com vista a valorizar os enterramentos régios ocorridos na catedral de Lisboa, de acordo com a ideia de criar um novo panteão régio (como o testamento do rei dá a entender).
O que sabemos com certeza é que a menina sepultada na Sé de Lisboa era filha de um varão da família real por
tuguesa (rei ou infante) e de uma senhora da notável família aristocrata castelhana dos Manuéis, como a heráldica do seu pequeno túmulo nos informa. Nunca foi casada, pois, se assim fosse, não teria o cabelo descoberto e o escudo do marido estaria ao centro. Não sabemos se o monumento funerário alguma vez esteve disposto na capela-mor, em maior proximidade com os seus familiares D. Afonso IV e D. Beatriz, mas a possibilidade levanta a questão da sua disposição em relação às audiências. A questão importa se tivermos em conta todo o cuidado posto na esculturação do texto do livro que o jacente da menina apresenta, como se se destinasse não apenas à “leitura” pela estátua que representa a tumulada, mas também por quem o observe com proximidade: parte do texto do Miserere (Salmo: 50), muito bem escrito, muito legível. Este interessante túmulo encontra-se hoje numa capela do deambulatório da catedral, sem outros objetos que ajudem à sua identificação.
Ainda na catedral da cidade que era cabeça do reino, encontra-se outro túmulo que terá sido realizado por volta das mesmas datas dos dois túmulos referidos anteriormente, ou seja, no terceiro quartel do século XIV: o de D. Maria de Vilalobos, uma neta por via bastarda do rei Sancho IV, o Bravo, de Castela e, por isso, parente da rainha Beatriz. Foi casada com o aristocrata mais importante da corte de D. Afonso IV, D. Lopo Fernandes Pacheco, e ambos fundaram a sua capela funerária no deambulatório da Sé, então em construção. Esculpido, tal como o do seu marido, num calcário duro da região de Lisboa, partilha esta realidade material com o túmulo da menina não identificada. Partilha com ela não apenas a presença do livro aberto entre as mãos – agora com o Pai Nosso e parte do Ave Maria –, mas também outro tema iconográfico raro: cães domésticos, mas de pequeno porte (apropriados às iconografias femininas), a disputarem e a comerem partes de galináceos. Como as duas mulheres (uma muito jovem e a outra não) não partilharam nenhum acontecimento que envolvesse estes animais, a presença desta iconografia, que se liga à ação de ler compenetradamente, deverá responder às sugestões, no que à iconografia se refere, de
um religioso ou de um conjunto de religiosos da Sé. Serve para reforçar visualmente os princípios do estrito cumprimento de determinados comportamentos, funcionando como metáfora: o recato, a observância da ação adequada (ler, fiar, tecer), a lealdade no casamento, como virtudes exigidas às mulheres e que a iconografia medieval também sublinha. Os cães atacam e devoram as galinhas que distraidamente se afastam do seu espaço, do seu bando (do recato da casa) e perdem a vida (a alma). As leituras pias são um ato de introspeção mística e ajudam a conduzir os bons pensamentos e as ações (ou a limitação das mesmas).
Outro aspeto muito interessante de notar nos livros dos jacentes de D. Maria de Vilalobos e da menina não identificada é que, em ambos (tal como deveria suceder no da rainha), os livros são a reprodução na pedra dos chamados “livros de cinta”, com muito sucesso nos séculos XIII e XIV. Normalmente de pequenas dimensões e com várias orações ou salmos, tinham encadernação em couro que continuava solta por baixo da capa do livro, numa longa cauda, que permitia depois marcar as páginas quando se fechava. São os únicos que nos chegaram, na tumulária medieval portuguesa, com esta particularidade.
Não restaram vestígios do túmulo da rainha Beatriz, mas as afinidades iconográficas e estilísticas entre estes dois túmulos femininos na cabeceira da Sé, e a proximidade de datas, espaços e parentesco entre as três mulheres permitem supor que estas partilhassem não apenas o motivo do livro aberto, mas também outras iconografias e aspetos formais.
A terminar, para as mulheres que nos seus túmulos se apresentam com livros fechados, refiro, desde logo, o relevante exemplo de D. Isabel de Aragão (a Rainha Santa), que, no seu enorme e multissimbólico jacente, da primeira metade do século XIV, apresenta, sob uma das mãos, um livro de orações, bem como um interessante e ainda enigmático fragmento de jacente feminino, provavelmente do século XIV, exumado durante as obras decorridas na década de 30 do século XX, na igreja de Santa Clara de Santarém, com a personagem a segurar com uma das mãos um pequeno livro de horas. Acrescento o jacente de D. Filipa de Lencastre, que apresenta o livro fechado e em repouso sobre o corpo, com a rainha a tocar-lhe com os dedos de uma mão.
O livro permanece, ainda no século XV, como um atributo iconográfico por excelência para a representação das mulheres nas suas memórias póstumas.