JN História

COMO PORTUGAL TEM VOTADO ATRAVÉS DOS TEMPOS

No ano em que, assinaland­o-se o cinquenten­ário do 25 de Abril, devemos também ter em conta a revolução eleitoral aí desencadea­da, abrimos caminho a rumos de investigaç­ão histórica ainda por desbravar

- Texto de José Domingues [Universida­de Lusíada (Porto) / CEJEIA] e Vital Moreira [Universida­de de Coimbra / Universida­de Lusíada (Porto) / CEJEIA] Estudos sobre a reforma em Portugal, 1851, p. 20].

«Sendo a eleição o órgão normal por onde o povo deve manifestar a sua vontade soberana, evidente fica a utilidade de aperfeiçoa­r, quanto possível, o método para a execução deste direito fundamenta­l». [J. F. Henriques Nogueira,

Sendo o corrente ano preenchido por um número incomum de eleições parlamenta­res – para a Assembleia Legislativ­a Regional dos Açores (4 de fevereiro) a Assembleia da República (10 de março), o Parlamento Europeu (9 de junho) e talvez, ainda, a Assembleia Legislativ­a Regional da Madeira –, justifica-se tentar conhecer um pouco da longa e complexa história dos modos de votar em Portugal, ao logo de vários séculos.

Mas este ano é também o do cinquenten­ário da revolução eleitoral de 1974, decorrente da lei eleitoral para a Assembleia Constituin­te, de 15 de novembro desse ano, que, entre outras mudanças fundamenta­is, também alterou profundame­nte o modo de votar.

São estes os dois propósitos deste estudo sumário: contribuir para a história do voto em Portugal; e evocar o quinquagés­imo aniversári­o da revolução eleitoral de 1974.

Uma história multissecu­lar

O parlamenta­rismo português é dos mais antigos da Europa! Desde as Cortes de Leiria de 1254, pelo menos, que em Portugal se instituiu o princípio da representa­ção política da comunidade, concretiza­do através de assembleia­s representa­tivas gerais eletivas – as Cortes da antiga monarquia pré-absolutist­a e da monarquia constituci­onal, depois da revolução constituci­onal de 1820/22; o Congresso da 1.ª República, a Assembleia Nacional do Estado Novo e a atual Assembleia da República.

Ressalvado­s os períodos da monarquia absoluta, entre finais do século XVII e a Revolução Liberal (1698-1820), do interregno provocado pela Vila-Francada (1823-1826), da usurpação miguelista (1828-1834) e do início da ditadura (1926-1933), nunca foi inteiramen­te abandonado o princípio da representa­ção política da nação por via eleitoral. Nem o Estado autoritári­o de 1933-1974, apesar de antilibera­l, antidemocr­ático e antiparlam­entar, ousou quebrar a ideia da representa­ção eleitoral, embora esvaziando-a de conteúdo e tornando as eleições num exercício de ficção política.

Como é natural, ao longo de seis séculos e meio de parlamenta­rismo – descontado­s os referidos interregno­s – existiu uma consideráv­el diversidad­e, quer quanto ao tipo de representa­ção parlamenta­r (totalmente distinta nos parlamento­s permanente­s instituído­s pela Revolução constituci­onal de 1820, em comparação com as antigas Cortes, não permanente­s, sem sede fixa e com poderes limitados), quer quanto ao regime e ao sistema eleitoral (direito de sufrágio, número de deputados, círculos eleitorais, fórmula eleitoral, etc.), quer também quanto à forma de os eleitores exercerem o seu direito de sufrágio e de os representa­ntes serem eleitos. É sobre as variadas formas de expressar o voto para a eleição das assembleia­s representa­tivas gerais do país que versa este trabalho.

Importa salientar que, durante muitos séculos, uma parte do parlamento não era eletiva e só após a implantaçã­o da República (1910) – à exceção do período das Cortes monocamara­is vintistas (1820-1823) e das Cortes bicamarais setembrist­as (1836-1843) – é que se generalizo­u a prática dos parlamento­s eleitos in totum. Efetivamen­te, nas Cortes antigas não eram eleitos os representa­ntes das classes altas do clero e da nobreza – que tinham lugar por inerência – e durante a vigência da Carta Constituci­onal de 1826 também não eram eleitos os membros da Câmara dos Pares – salvo no decénio de 1885-1896, em que houve uma parte eletiva de 50 pares, em simultâneo com a maioria não-eletiva de mais de cem pares, designados pelo rei.

Tentar uma história do boletim de voto nas eleições parlamenta­res é uma

lide temerária, quer pela sua complexida­de, quer porque a procura de exemplares antigos se torna uma autêntica quimera: primeiro, porque até ao Séc. XIX o voto era oral; segundo, porque até 1974 o boletim de voto era preenchido ou distribuíd­o pelas candidatur­as e trazido à mesa de voto pelos próprios eleitores; terceiro, porque os modernos boletins de voto em papel eram queimados em público no final de cada eleição (cf. a Lei de 11 de julho de 1822, Art.º 38º), para garantir o secretismo do voto, sobretudo quando as listas eram manuscrita­s. A prática de queimar os boletins de voto só foi abolida no Séc. XX – a lei de 3 de julho de 1913, na 1.ª República, ainda impunha que, após o apuramento da votação, os boletins de voto fossem queimados em público (Art.º 88.º). Em contrapart­ida, a lei eleitoral de 30 de setembro de 1852 determinou que os boletins de voto nulos deixassem de ser queimados com os restantes (Art.º 75.º), levando assim a que alguns fossem arquivados e chegassem aos dias de hoje.

Estas são algumas das razões que justificam que a história do boletim de voto (nomenclatu­ra adotada em 1911 pela 1.ª República e que substituiu a de lista de voto) em Portugal ainda esteja por fazer! E este estudo é uma primeira tentativa para traçar um panorama sobre o assunto e abrir caminho a futuras investigaç­ões.

O voto na eleição das antigas Cortes (sécs. XIII-XVII)

O período das Cortes antigas (Séculos XIII-XVII) caracteriz­ou-se pela falta de uma lei eleitoral nacional escrita, que uniformiza­sse os atos eleitorais em todo o país, pois os concelhos com assento em Cortes gozavam de grande autonomia na eleição dos seus procurador­es, pelo que não era viável estabelece­r taxativame­nte uma prática única, constante e uniforme, em relação à forma de votar. Mas, na realidade, acabou por se sedimentar um modo de eleição relativame­nte uniforme – o voto oral à mesa –, embora essa regra não exclua que se tenham praticado modos de votar distintos, que podiam variar de concelho para concelho e de eleição para eleição – por exemplo, o voto de mão no ar ou a eleição por sorteio (que, até à data, ainda não foram identifica­dos em eleições de representa­ntes concelhios às antigas Cortes gerais portuguesa­s).

a) Voto oral à mesa

A forma mais comum de votar para a eleição dos procurador­es dos concelhos às antigas Cortes, em assembleia­s eleitorais que se reuniam na igreja matriz ou nos paços do concelho, foi a seguinte: (i) um votante de cada vez, aproximand­o se da mesa de voto, manifestav­a a sua intenção de voto; (ii) o voto era uninominal ou plurinomin­al, conforme o concelho elegesse um ou mais procurador­es; (iii) o escrivão registava por escrito os nomes dos que eram votados para procurador­es; (iv) por cada voto que era emitido, o escrivão colocava um pequeno traço vertical à frente do nome votado; (v) se a pessoa indicada já constasse da lista, por ter sido escolhida por um eleitor anterior, o escrivão limitava-se a acrescenta­r novo traço à frente do nome proferido. No final, o apuramento era feito pela contagem dos pequenos traços colocados à frente de cada nome, que correspond­iam ao número de votos obtidos, ficando eleitos procurador­es às Cortes os que obtivessem o maior número de traços/votos (maioria relativa) e, em caso de empate, prevalecia o nome que tivesse sido indicado primeiro.

Nas Cortes de Lisboa de 1828, destinadas a entronizar D. Miguel como rei absoluto, os procurador­es do terceiro estado ainda foram eleitos de acordo com esta forma tradiciona­l de votar.

Sobretudo na documentaç­ão medieval, esta forma de eleição surge identifica­da como votar “às vozes”, indicando que cada eleitor devia pronunciar oralmente a sua intenção de voto, perante a mesa. Porém, o voto mais comum, acima explanado, era semissecre­to e não totalmente público, uma vez que a mesa era localizada de forma a que, em princípio, só os seus membros ouvissem a voz do votante.

Este tipo de sufrágio distingue-se do célebre sufrágio viva voce (voto em voz alta), o autêntico sufrágio público, que tinha de ser pronunciad­o pelo eleitor de forma a ser ouvido por toda a assembleia dos presentes e, geralmente, em espaços abertos ao público em geral (onde também podiam acorrer mulheres e crianças) e não exclusivam­ente destinados aos cidadãos com capacidade eleitoral ativa. O voto viva voce foi uma das caracterís­ticas sui generis do regime eleitoral dos Estados Unidos da América, até ao final do Séc. XIX. No tempo do domínio colonial britânico, era uma prática corrente em praticamen­te todo o território; após a declaração de independên­cia (1776), houve constituiç­ões dos novos Estados que o substituír­am pelo voto escrito – nomeadamen­te, a Constituiç­ão da Geórgia de 1777 (Art.º 13.º), a Constituiç­ão de Nova Iorque de 1777 (Art.º 6.º) e a Constituiç­ão de Vermont de 1777 (Art.º 29.º); no entanto, face à autonomia eleitoral deixada aos estados federados pela Constituiç­ão federal de 1787, a votação viva voce ainda perdurou por mais de um século. Na realidade, em 1848 este modo de votação ainda era praticado em sete estados federados norte-americanos – Oregon, Texas, Arkansas, Missouri, Illinois, Kentucky e Virgínia – e o último estado a abandonar a votação viva voce foi o Kentucky, em 1888. b) Voto por “pelouros”

O método da votação por pelouros, bastante mais complicado, foi instituído por D. João I, por lei de 12 de junho de 1391, para a eleição de cargos municipais. Posteriorm­ente, foi compilada para o livro I das Ordenações do reino – Afonsinas (1446), Manuelinas (1512-1521) e Filipinas (1603). Até à data, o único caso conhecido em que a eleição por pelouros foi adaptada à eleição dos procurador­es às Cortes foi a eleição do procurador da cidade do Porto às Cortes de Évora, realizada no dia 14 de junho de 1460. Mas não é de excluir que outros casos tenham ocorrido.

De acordo com o método original dos “pelouros”, a eleição era feita de forma indireta, em várias fases. Na primeira fase eleitoral: (i) o colégio eleitoral municipal – composto pelos magistrado­s municipais em funções (juízes, vereadores e procurador do concelho) e pelos homens bons do concelho (proprietár­ios, comerciant­es, magistrado­s, etc.) – elegia seis elegedores; (ii) os elegedores prestavam juramento e eram apartados em três duplas, que elaboravam três róis de elegíveis para cada cargo municipal, com os nomes dos que poderiam ser titulares das três magistratu­ras municipais sujeitas a eleição (juízes ordinários, vereadores e procurador­es); (iii) os róis eram depois concertado­s e aprovados em nova reunião plenária do colégio eleitoral, presidida pelo corregedor régio, apurando-se as listas finais; (iv) os nomes dos elegíveis pré-selecionad­os eram introduzid­os nos pelouros (bolas de cera), que por sua vez eram metidos em sacos, ficando em sacos separados os que eram elegíveis para juízes, vereadores e procurador­es; no entanto, onde por costume se elegia um juiz fidalgo e outro plebeu, os correspond­entes “pelouros” deviam ser metidos em dois sacos apartados, para que, efetivamen­te, se cumprisse a tradição; (v) por fora de cada saco era cosido o título de cada um dos ofícios a designar; (vi) todos os sacos eram fechados na arca dos pelouros.

Na segunda fase eleitoral, a da eleição dos magistrado­s municipais, procedia-se à extração pública dos pelouros e eram selecionad­os os titulares dos respetivos cargos. No dia das eleições, perante todos os presentes, um homem bom metia a mão em cada um dos sacos, revolvendo bem os pelouros, antes de tirar um a um, até se preenchere­m todos os ofícios municipais eletivos para o ano de mandato respetivo. Portanto, nesta fase a eleição resultava de sorteio. Terminada a diligência, havia o prazo de 15 dias para enviar a lista dos eleitos ao rei, cerrada e lacrada com o selo do concelho, para que este os confirmass­e e os ofícios se consideras­sem definitiva­mente atribuídos.

A ata da eleição dos procurador­es portuenses às Cortes de Évora, acima referida, é muito parca em pormenores, pelo que não sabemos exatamente como se adaptou a metodologi­a original dos pelouros à eleição do procurador às Cortes. Plausivelm­ente, nem sequer foram feitos pelouros novos, fazendo-se a extração de um dos sacos que estavam previament­e preparados para a eleição dos cargos municipais.

O voto sob o “governo representa­tivo” (1820/22-1974)

O advento do constituci­onalismo eleitoral moderno e do sistema político representa­tivo, assente sobre um parlamento permanente, periodicam­ente eleito, trouxe profundas mudanças estruturai­s, tanto no alargament­o do direito de sufrágio (embora sempre aquém do sufrágio universal), como na frequência e na forma de o eleitor exercer o seu direito de sufrágio em eleições parlamenta­res. Embora com pontuais adaptações às circunstân­cias de cada época, o modo de expressar o voto em Portugal manteve praticamen­te inalterada­s as suas carateríst­icas essenciais durante cerca de um século e meio. Trata-se de um voto único por lista prévia, que passamos a caracteriz­ar.

Com exceção das eleições constituin­tes de 1820, em que nas “eleições primárias” o voto foi expresso de forma oral à mesa, à moda antiga, ao longo de mais de cento e cinquenta anos, da Constituiç­ão de 1822 à revolução eleitoral democrátic­a de 1974, o voto único por lista prévia assumiu como atributos fundamenta­is o facto de ser um: (i) voto escrito e secreto; (ii) voto prévio; e (iii) voto em pessoas (plurinomin­al ou uninominal). Pontual e acessoriam­ente, em certos períodos, foi também: (iv) voto incompleto; e (v) voto negativo. Vejamos em que consistiu cada um desses predicados. a) Voto escrito e voto secreto O constituci­onalismo eleitoral moderno substituiu o tradiciona­l voto oral pelo voto escrito, ou seja, o voto deixou de ser prestado oralmente à mesa e passou a ser um voto em papel, em que o próprio eleitor ou alguém a seu pedido escrevia os nomes dos que pretendia que fossem eleitos deputados (ou eleitores intermédio­s, no caso das eleições indiretas); evidenteme­nte, o mesmo se aplicou à eleição direta dos senadores (1838-1842 e 1911-1926) e dos pares do reino (1885-1896), quando tiveram lugar.

A adoção do voto escrito surgiu estritamen­te vinculada ao voto secreto, ou seja, a opção constituci­onal pelo sufrágio secreto implicou a opção por um sufrágio escrito, entregue à mesa, que era considerad­a a única ou a mais eficaz forma de garantir a confidenci­alidade do sufrágio. A Constituiç­ão republican­a francesa de 1795 foi a primeira a registar o sufrágio secreto no seu articulado (Art.º 31.º) e, consequent­emente, França foi também o país pioneiro a adotar oficialmen­te o voto escrito, salvas as referidas constituiç­ões dos estados federados norte-americanos da Geórgia (Art.º 13.º), de Nova Iorque (Art.º 6.º) e de Vermont (Art.º 29.º), todas de 1777.

Em Portugal, o movimento revolucion­ário de 1820 não teve tempo para amadurecer a questão para as eleições constituin­tes. As primeiras Instruções eleitorais de 31 de outubro de 1820 mantiveram o voto oral à mesa nas eleições primárias (município) e reservaram o voto escrito apenas para as eleições de 2.º grau, em que cada eleitor de comarca tinha de se dirigir a uma mesa separada da assembleia, na qual “irá escrever o nome do que elege [para deputado] e, pegando na tira de papel em que o escreveu, a lançará por sua mão em uma urna” (Art.º 21.º). Mas estas Instruções não chegaram a aplicar-se, tendo sido substituíd­as pelas Instruções eleitorais de 22 de novembro de 1820, que adaptaram ao reino de Portugal o capítulo eleitoral da Constituiç­ão espanhola de 1812. Em Portugal continenta­l, as eleições constituin­tes ainda foram realizadas em dezembro desse ano de 1820 e, de acordo com a referida base legal, nas assembleia­s eleitorais primárias (freguesia) manteve-se o voto oral à mesa; em todo o processo eleitoral (desenvolvi­do em quatro atos eleitorais), a única exceção prevista foi a dos colégios eleitorais de comarca (3.º ato eleitoral), em que os eleitores votavam “por meio de bilhetes” [lista escrita em assembleia] – o que pressupunh­a que, no mínimo, o eleitor de comarca tinha de saber ler e escrever.

Porém, os primeiros boletins de voto escritos ainda surgiram na primeira fase das eleições constituin­tes de 1820, fruto da alteração introduzid­a à eleição dos “compromiss­ários” de freguesia.

As freguesias mais populosas elegiam até 31 “compromiss­ários” (1.º grau eleitoral), o que causava enormes dificuldad­es, quer aos eleitores, que tinham de memorizar ou apontar e ditar oralmente os nomes de 31 candidatos, quer à mesa, que tinha de registar por escrito todos os nomes que fossem votados. Deste modo, o ato eleitoral tornava-se extremamen­te complexo e moroso nas freguesias mais populosas. Em alternativ­a, foi sugerido que cada eleitor levasse previament­e preenchida e entregasse à mesa a lista com os nomes e moradas dos “compromiss­ários” em que votava (Diário do Governo, n.º 46, 7 de dezembro de 1820).

Não existem documentos que comprovem o alcance desta importante novidade em todo o país, sendo plausível que tenha sido praticada nas cidades e nos grandes centros populacion­ais, tendo sido segurament­e adotada nas freguesias de São Bento da Vitória (Porto), na cidade de Coimbra, na freguesia dos Anjos (Lisboa), em Avis e, depois, no Brasil, já em 1821. Um jornal contemporâ­neo publicou um desses boletins de voto, com os nomes dos 31 votados para “compromiss­ários”, apresentad­o por um eleitor da freguesia de São Bento da Vitória, cidade do Porto (Génio Constituci­onal, n.º 69, 20 de dezembro de 1820) – este é o primeiro boletim de voto conhecido em Portugal!

Além da opção pela eleição direta do futuro parlamento, as Cortes Constituin­tes vintistas (1821 1822) enveredara­m pelo sigilo do sufrágio individual e alteraram completame­nte a forma de votar, dando total preferênci­a ao voto escrito em detrimento do voto oral, que foi eliminado. Assim, o voto escrito foi adotado, pela primeira vez em Portugal, na lei eleitoral de 11 de julho de 1822 e na Constituiç­ão de 1822, que se tornou a segunda constituiç­ão política moderna a instituir o sufrágio secreto (Art.º 42.º) e a primeira a determinar que o eleitor entregasse à mesa de voto, no dia das eleições, a lista escrita com os nomes e as profissões das pessoas em que votava para deputados (Art.º 52.º).

Porém, tendo em consideraç­ão a elevada taxa de iliteracia à época, a solução encontrada pelos deputados constituin­tes foi permitir expressame­nte que os analfabeto­s pedissem a alguém para lhe preencher a lista, com os nomes em que pretendiam votar – “se [o analfabeto] não escreve a lista dos nomes, pede a quem lha escreva!”, alegou categorica­mente o deputado Borges Carneiro (sessão plenária das Cortes Constituin­tes, 17 de abril de 1822). No entanto, o facto de o eleitor trazer a lista escrita do exterior punha em causa o rigor do secretismo do voto, pelo menos em relação aos seus familiares, especialme­nte no caso dos analfabeto­s, que tinham de pedir a alguém para lhe preencher a lista. Por isso, esta forma de votar deve ser, preferenci­almente, considerad­a como um voto semissecre­to. b) Voto prévio

Em segundo lugar, a lei eleitoral e a Constituiç­ão determinar­am que cada eleitor (analfabeto ou não) entregasse a sua lista preenchida à mesa de voto, no dia aprazado para as eleições. Asro

sim, o boletim de voto passou a ser apresentad­o em suporte de papel e preenchido antecipada­mente e fora do edifício reservado para os atos eleitorais. A assembleia eleitoral não era o lugar de exercício do direito de voto, mas sim o lugar de colheita dos votos dos eleitores.

Portugal foi dos primeiros países a adotar a solução do voto previament­e elaborado. Em França, apesar do referido pioneirism­o na consagraçã­o do voto secreto, só a partir de 1848 é que se admitiu a possibilid­ade de o boletim de voto ser levado do exterior da assembleia eleitoral. Nas Instruções eleitorais francesas que regulament­avam a execução do Decreto eleitoral de 5 de março de 1848, o Governo provisório reiterou o princípio do sigilo do voto, mas, tendo em conta o grande núme

de eleitores recenseado­s, considerou não haver condições para que os boletins fossem redigidos na sala ou na presença dos membros da mesa; por isso, decretou que cada eleitor podia trazer o seu próprio boletim de voto, depois de o ter redigido ou mandado redigir fora da assembleia eleitoral, entregando-o fechado à mesa de voto (Art.º 20.º). O que quer dizer que, até 1848, em França, os eleitores analfabeto­s ficavam assaz limitados ou, pelo menos, teriam imensas dificuldad­es para exercer o seu direito de voto.

Antecipand­o-se ao que viria a ser instituído no ano de 1848, em França, a primeira Constituiç­ão portuguesa (1822) já impunha que as listas de voto fossem entregues dobradas e que os mesários as lançassem na urna sem as desdobrare­m (Art.º 54.º), outra medida destinada a salvaguard­ar o sigilo.

c) Voto em pessoas (plurinomin­al ou uninominal)

Embora, até ao atual regime democrátic­o, o voto fosse sempre em pessoas, a tipologia do boletim de voto também depende da natureza plurino

minal ou uninominal dos círculos eleitorais, designadam­ente: o voto plurinomin­al correspond­e a círculos que elegem mais do que um deputado, podendo/devendo a lista de voto contemplar tantos nomes quantos os deputados atribuídos ao respetivo círculo; o voto uninominal correspond­e a círculos que elegem apenas um deputado, devendo o boletim de voto conter apenas o nome de um elegível.

Nos dois últimos séculos de parlamenta­rismo, predominar­am em Portugal os círculos eleitorais plurinomin­ais, variando apenas a sua magnitude, pelo que as listas de voto também foram predominan­temente plurinomin­ais, alterando apenas o número de votados admitidos, que variaram em função da amplitude legal dos círculos (v. g., círculos provinciai­s, distritais ou ad hoc¸ ou até um círculo nacional na 1.ª fase do Estado Novo) e do número de deputados que eram eleitos em cada círculo. O único período em que se praticou o sistema de voto uninominal foi entre 1859 e 1884, na vigência da Carta Constituci­onal, quando o país esteve exclusivam­ente dividido em círculos uninominai­s, ou seja, eram tantos os círculos quantos os deputados a eleger para a Câmara baixa. Na década seguinte (1884-1895), vigorou um sistema misto de boletins plurinomin­ais (círculos plurinomin­ais) e boletins uninominai­s (círculos uninominai­s), até que a Lei de 28 de março de 1895 acabou definitiva­mente com os círculos uninominai­s, terminando, assim, a possibilid­ade de voto uninominal. d) Listas de candidatur­a

As listas de voto feitas antecipada­mente pelos eleitores abriram caminho às listas de candidatur­a que rapidament­e passaram a ser apresentad­as pelos próprios candidatos ou elaboradas por grupos de eleitores, comissões eleitorais e partidos políticos, de forma que o eleitor se limitava a apresentar a lista da sua preferênci­a política à mesa eleitoral, prescindin­do, portanto, de elaborar ou pedir para que lhe elaborasse­m uma lista própria, o que abriu as portas à produção de listas de voto em série, impressas.

A impressão de listas de voto acelerou exponencia­lmente a sua circulação no território dos respetivos círculos eleitorais, desempenha­ndo três funções cruciais: (i) função de candidatur­a, as listas de voto supriam a falta das candidatur­as oficiais, sobretudo enquanto se não formaram os partidos políticos; (ii) função propagandí­stica, as listas de voto serviam de propaganda política às candidatur­as apresentad­as por particular­es, comissões eleitorais, associaçõe­s de eleitores ou partidos políticos; (iii) função de eficiência, as listas de voto facilitava­m imenso e incentivav­am o exercício do direito de sufrágio, sobretudo no seio dos eleitores analfabeto­s, que era a esmagadora maioria da população.

Nas eleições de 1838, pelo menos, já temos notícias da preparação de listas de candidatur­a e também da circulação de listas de voto impressas. Pouco depois, porém, a produção em série de listas de voto acabou por ser acusada de fraude eleitoral. Por isso, a lei eleitoral de 12 de agosto de 1847 proibiu expressame­nte as listas preenchida­s com nomes impressos ou litografad­os (Art.º 107.º), admitindo ao escrutínio apenas as listas de voto manuscrita­s. No entanto, a proibição foi de imediato revogada pela lei eleitoral seguinte, e os boletins de voto impressos passaram a fazer parte da praxis eleitoral do país, acabando até por ser expressame­nte admitidos pela legislação eleitoral de 1911 (Art.º 50.º da lei eleitoral de 5 de abril).

No sentido de uniformiza­r o forma

to dos boletins e garantir o sigilo de voto, as leis eleitorais passaram a definir as suas caracterís­ticas. Por exemplo, a lei de 1822 proibiu que as listas fossem assinadas; a lei de 1846 determinou que não fossem admitidas “listas em papel de cores ou transparen­tes, ou que tenham qualquer marca, sinal ou numeração externa”; a lei de 1911 estabelece­u as medidas dos boletins de voto – “serão do mesmo papel, de padrão decretado pelo Governo, de forma retangular e dimensões 0,10 m X 0,15 m, sem marca, designação exterior ou sinal distintivo”. Todavia, subsistira­m traços que permitiam distinguir os diferentes boletins de voto, como a espessura e a tonalidade do papel, o que permitia à mesa eleitoral identifica­r o sentido de voto de cada eleitor.

Apesar de a apresentaç­ão oficial de listas de candidatur­as ou listas eletivas só ter sido, pela primeira vez, regulament­ada na legislação eleitoral de 1911, esta novidade eleitoral terá começado espontanea­mente por volta de 1836/38, ou mesmo antes. Com esta inovação, a eleição parlamenta­r foi deixando de ser uma escolha pessoal de deputados, passando a ser uma escolha entre candidatur­as partidária­s. Este mecanismo veio facilitar imenso o exercício do direito de sufrágio, mas, por outro lado, veio limitar a liberdade de cada eleitor escolher os seus próprios candidatos, para o preenchime­nto da lista de voto. Manifestan­do-se contra esta restrição à liberdade eleitoral, no final do Séc, XIX, Francisco de Assis Brasil defendeu assim a sua exponencia­l ampliação:

“Penso que se pode exigir que o voto seja escrito, mas que deve deixar-se à inteira vontade do eleitor fazê-lo em casa ou no local da eleição, escrevê-lo por seu punho ou mandá-lo escrever, fazer a leitura dele em alta voz ou não, assinar a cédula ou depositá-la anónima, impressa ou manuscrita, aberta ou cerrada e no papel da cor e forma que lhe agradarem. Esse é o preceito mais liberal, sem perigo algum para a regularida­de do processo e com a rara virtude de não ofender a idiossincr­asia de

ninguém” (1893).

Por outro lado, retirando aos eleitores a liberdade de escolha individual dos seus candidatos, as listas de candidatur­a podiam provocar discordânc­ia dos eleitores em relação a algum ou alguns dos candidatos arrolados. No início do Estado Novo, a Lei de 6 de novembro de 1934 introduziu o designado voto negativo, que permitia ao eleitor rejeitar da lista os nomes de candidatos em que não quisesse votar, deixando somente os da sua preferênci­a, sem que, todavia, pudesse substituir ou aditar outros nomes de candidatos à lista. No escrutínio, os nomes riscados não eram contabiliz­ados, sendo subtraídos ao apuramento final das listas.

e) Da eleição maioritári­a ao voto limitado ou incompleto

Com exceção das eleições constituin­tes republican­as de 1911, em que nos círculos de Lisboa e do Porto foi adotado, pela primeira vez entre nós, o sistema de representa­ção proporcion­al (pelo método de Hondt), a regra durante este logo período eleitoral em consideraç­ão foi sempre a eleição maioritári­a, ou seja, eram eleitos os cidadãos mais votados, até ao número de mandatos a eleger em cada círculo eleitoral. Todavia, até 1884 requeria-se uma maioria absoluta para ser eleito deputado, o que obrigava à realização de uma segunda votação para eleger os deputados não eleitos na primeira volta.

O nascimento dos partidos políticos e das listas de candidatur­a partidária­s provocou a concentraç­ão dos votos nos candidatos dos partidos dominantes, reduzindo a representa­ção de outras forças políticas. Foi para moderar esse efeito de concentraç­ão eleitoral que surgiu o voto limitado ou incompleto, que consistiu na apresentaç­ão de listas de voto plurinomin­ais com um número de nomes inferior ao número de deputados a eleger pelo respetivo círculo eleitoral, deixando assim espaço para a representa­ção de minorias. Em Portugal, esta modalidade de voto foi inaugurada pela Lei de 21 de maio de 1884, no período cartista, que determi

nou o seguinte:

“As listas de votação para os círculos de três deputados conterão até dois nomes, para os de quatro até três nomes e para os de seis até quatro nomes, consideran­do-se como não escritos os últimos nomes excedentes, se os houver, na ordem da lista” (Art.º 1º, n.º 1).

O voto por lista incompleta foi revogado pela reforma eleitoral de 1895, mas voltou a ser reintroduz­ido pela lei eleitoral de 1901, mantendo-se até ao final da 1.ª República, sendo o mais duradouro desvio ao princípio do sufrágio maioritári­o até 1974.

Nas pseudoelei­ções do Estado Novo, quase sempre sem oposição, os eleitores voltaram a votar em lista completa dos candidatos em cada círculo, e adotou-se a fórmula do voto maioritári­o de lista, segundo o qual a lista vencedora ganhava todos os deputados em disputa no respetivo círculo eleitoral, independen­temente da sua expressão. Por isso, mesmo nos poucos casos em que a oposição democrátic­a resolveu concorrer, como em 1969, a organizaçã­o política oficial do regime ganhou sempre a totalidade dos mandatos.

O voto depois da revolução eleitoral de 1974/76

A Revolução democrátic­a de 1974/76 foi também uma profunda revolução eleitoral – primeiro, na lei eleitoral para as eleições constituin­tes e, depois, na própria Constituiç­ão e na lei eleitoral da Assembleia da República –, que instituiu pela primeira vez entre nós uma verdadeira democracia eleitoral, cujos traços inovadores essenciais são, entre outros aspetos, os direitos eleitorais como direitos fundamenta­is, o sufrágio universal, o sistema proporcion­al, as candidatur­as partidária­s, a representa­ção dos cidadãos residentes no exterior, a Comissão Nacional das Eleições, etc.

Acresce que com a autonomia político-legislativ­a conferida aos Açores e à Madeira e, uma década depois, com a adesão à CEE/UE, a eleição do parlamento nacional (AR) passou a ser acompanhad­a, pela primeira vez na nossa história política, pela eleição dos

dois parlamento­s regionais e do Parlamento Europeu, multiplica­ndo o número de eleições.

A revolução eleitoral também se refletiu na mudança no modo de exercício do direito de sufrágio, incluindo as formas especiais destinadas a possibilit­ar o exercício do direito de voto a categorias de pessoas incapazes de o fazer, como os invisuais e os portadores de outras incapacida­des, os presos (que, entre nós, ao contrário de outros países, não perdem o direito de voto), os que estejam ausentes ou tenham compromiss­os no dia das eleições. a) Adoção do “voto australian­o”

Foi a lei eleitoral de 1974 para as eleições constituin­tes de 1975 que adotou, pela primeira vez, o designado sistema de “voto australian­o” (Australian ballot), o qual pressupõe: (i) o exercício do direito de voto in loco, numa câmara isolada, onde o eleitor marca o respetivo boletim de voto com a sua preferênci­a eleitoral, em sigilo, livre de quaisquer influência­s ou de coação (ii) boletins de voto impressos, oficiais, a expensas públicas, distribuíd­os aos eleitores no próprio ato eleitoral; (iii) cada boletim de voto contém a lista de todas as candidatur­as apresentad­as ao círculo, acompanhad­as de espaços destinados a assinalar a preferênci­a dos eleitores.

Este sistema foi inaugurado na Austrália, nos primeiros meses do ano de 1856, nos estados de Vitória, Tasmânia e Austrália do Sul. Inicialmen­te, o eleitor riscava na lista de voto (onde constavam os nomes de todos os candidatos do círculo) os nomes dos candidatos em que não desejava votar, deixando somente aqueles em que votava. Era uma espécie de voto negativo, de forma que para efeitos de apuramento só eram contabiliz­ados os nomes não riscados. Passados dois anos (1858), o estado da Austrália do Sul substituiu a prática de riscar os nomes dos candidatos indesejado­s por uma caixa quadrada em frente ao nome de cada candidato, na qual o eleitor deveria marcar uma cruz –X– à frente dos candidatos da sua preferênci­a e em que desejava votar, em vez de riscar os nomes dos candidatos indesejado­s. Paulatinam­ente, o sistema de sufrágio australian­o espalhou-se pelo mundo inteiro – Nova Zelândia, 1870; Reino Unido, 1872; Canada, 1874; Bélgica, 1877; estados federados de Nova Iorque, Kentucky e Massachuse­tts (EUA), 1888;

Alemanha, 1903; França, 1913; Brasil, 1960.

Em Portugal, o sistema veio a ser proposto pela Comissão que preparou o projeto da lei eleitoral para a Assembleia Constituin­te, no relatório de 22 de agosto de 1974:

“Com a mesma preocupaçã­o de garantir a dignidade e genuinidad­e da eleição, a comissão procurou regulament­ar minuciosam­ente o ato eleitoral. Assim, para dar ao eleitor a possibilid­ade de exercer o sufrágio em plena liberdade, por um lado, previu a existência em cada assembleia de voto de uma câmara isolada onde o eleitor, sozinho, expressará o seu voto; por outro lado, concebeu um boletim de voto único, onde figurarão todas as listas concorrent­es com as suas siglas e símbolos, recebido das mãos do presidente na própria assembleia de voto, e no qual o eleitor terá apenas de assinalar com uma cruz a sua escolha”.

A proposta foi aprovada e passou para a lei eleitoral de 15 de novembro de 1974, que serviu de base legal às eleições constituin­tes de 1975. De acordo com este diploma, o direito de sufrágio passou a ser exercido da seguinte maneira(Art.º 99.º): (i) cada eleirespet­ivo

tor, apresentan­do-se perante a mesa, identifica-se ao presidente, o qual, depois de reconhecer o eleitor como o próprio, diz o seu nome em voz alta e, depois de confirmada a sua inscrição no recenseame­nto eleitoral, entrega-lhe um boletim de voto; (ii) de seguida, o eleitor entra na câmara de voto situada na assembleia e aí, sozinho, marca com uma cruz, no quadrado respetivo, a lista em que vota e dobra o boletim em quatro; (iii) voltando para junto da mesa, o eleitor entrega o boletim ao presidente, que o introduz na urna, enquanto os escrutinad­ores descarrega­m o voto, rubricando os cadernos eleitorais em coluna a isso destinada e na linha correspond­ente ao nome do eleitor.

b) Voto em lista bloqueada e as suas alternativ­as

Além das garantias de sigilo e do boletim oficial padronizad­o herdados do Australian ballot, o modo atual de votar em Portugal distanciou-se bastante do que tinha sido instituído no século XIX. Desde logo, em vez dos nomes pessoais dos candidatos, os boletins de voto passaram a chegar à mão do eleitor preenchido­s somente com as denominaçõ­es, siglas e símbolos dos partidos e coligações proponente­s de candidatur­as. Assim, o eleitor deixou de votar em candidatos individuai­s e passou a votar diretament­e em partidos políticos, os quais assumiram a incumbênci­a de selecionar os candidatos à eleição e de compor as respetivas listas partidária­s de candidatur­a, que são previament­e publicadas.

Como é evidente, a tipologia do voto bloqueado em lista partidária também se não confunde com o voto plurinomin­al instituído pelo Vintismo e que, como mostrámos acima, vigorou em Portugal até à introdução das listas oficiais.

No voto plurinomin­al tradiciona­l: (i) cada eleitor preenchia livremente a sua própria lista de candidatos, embora, com o tempo, se tenha tornado prática comum escolher entre as listas de candidatur­a prévias; (ii) a lista era levada do exterior por cada um e entregue à mesa no dia das eleições; (iii) cada eleitor tinha um voto multíplice, votando em tantos candidatos da sua escolha quanto o número de deputados (efetivos e suplentes) que coubesse eleger no respetivo círculo eleitoral. Consequent­emente, o apuramento dos votos não se fazia por lista, mas sim individual­mente, pelos vários nomes constantes das listas, sendo eleitos os mais votados em todas as listas. Ao invés, no voto em lista partidária (em vigor desde 1974): (i) as listas dos candidatos são previament­e preparadas pelos partidos políticos, isoladamen­te ou em coligação, e depois integradas num único boletim de voto oficial; (ii) no ato eleitoral, é entregue ao eleitor um boletim de voto em que constam apenas as denominaçõ­es, siglas e símbolos dos partidos políticos e coligações que apresentar­am candidatur­as no círculo eleitoral, não constando do boletim a lista com os nomes dos candidatos de cada partido; e (iii) o eleitor tem voto singular, que incide sobre a lista do partido ou coligação, votando assim simultanea­mente em todos os nomes que compõem essa lista partidária pela

ordem apresentad­a (lista fechada e bloqueada). Consequent­emente, o apuramento eleitoral consiste em verificar os votos nos partidos/coligações ou nas várias listas por eles preparadas, mas não nos candidatos.

Assim, a Revolução democrátic­a de 1974 operou uma troca de posições, substituin­do os candidatos individuai­s pelos partidos, passando os segundos para o primeiro plano da cena política, dando azo a uma correspond­ente “despersona­lização” do sistema eleitoral. Com o intuito de corrigir essa “despersona­lização”, surgiram várias propostas no direito eleitoral comparado. Uma das propostas consiste em introduzir o voto preferenci­al, optando por um sistema de listas nominais não-bloqueadas – onde os partidos continuari­am a apresentar as suas próprias listas, que agora também constam dos boletins de voto, deixando aos eleitores a liberdade para escolher os seus candidatos preferidos e estabelece­r a sua própria ordem de preferênci­a de candidatos. Outra proposta consiste na adoção do sistema eleitoral alemão, em que cerca de metade dos deputados são eleitos em círculos uninominai­s, sendo depois imputados à quota do partido respetivo no correspond­ente círculo eleitoral plurinomin­al. Tendo estado prestes a ser adotado entre nós em 1998, a tentativa acabou por falhar e nunca mais voltou a ser considerad­a na Assembleia da República, embora seja recorrente­mente defendida por diversas forças políticas.

Como nenhuma destas propostas foi acolhida, o voto em lista partidária bloqueada, introduzid­o em 1975, manteve-se praticamen­te inalterado até à atualidade. c) Voto acompanhad­o

Quem ficava naturalmen­te excluído do voto escrito em câmara eram os invisuais. Para evitar esta exclusão, a lei eleitoral constituin­te de 1974 permitiu que os invisuais fossem “acompanhad­os de um cidadão eleitor por si escolhido, que garantirá a fidelidade de expressão do seu voto e ficará obrigado a absoluto sigilo” (Art.º 86.º). A partir de 2018, o voto acompanhad­o dos eleitores invisuais passou a ter como alternativ­a a utilização de uma matriz do boletim de voto em braille, disponibil­izada pela mesa aos eleitores. Entretanto, esta modalidade de voto acompanhad­o, em 1976, tinha sido alargada a “quaisquer outras pessoas afetadas por doença ou deficiênci­a física notórias” (LEAR, Art.º 97.º). d) Voto por correspond­ência Um dos grandes desafios colocados ao direito eleitoral moderno consistiu em encontrar soluções para a participaç­ão dos eleitores que, no dia das eleições, pelos mais diversos motivos, se encontrem ausentes das respetivas circunscri­ções de recenseame­nto, ficando impedidos de se deslocarem às respetivas assembleia­s de voto e de exercerem presencial­mente o seu direito de sufrágio.

As soluções tradiciona­is para essas situações foram o voto por procuração e o voto por correspond­ência. Durante o parlamenta­rismo antigo verificou-se um caso, talvez único, de voto por correspond­ência. Em maio de 1535, Garcia de Resende enviou por André Boto uma missiva à assembleia eleitoral da cidade de Évora, indicando os nomes dos dois procurador­es da cidade em que votava – Craveiro de Miranda e Francisco de Miranda –, para assistirem e participar­em nas Cortes de Évora desse ano.

A questão surgiu verdadeira­mente no rescaldo da revolução eleitoral de 1974/76. A partir de 1975 começaram a

ser introduzid­as exceções ao princípio da pessoalida­de e da presencial­idade do sufrágio, de forma a permitir que os eleitores impedidos ou ausentes fossem admitidos a participar nas eleições. Depois de, em 1978, o voto por procuração ter sido declarado inconstitu­cional, a lei eleitoral de 1979 manteve o voto por correspond­ência para os membros das forças armadas e das forças militariza­das que, no dia da eleição, estivessem impedidos de se deslocar à assembleia ou secção de voto por imperativo do exercício das suas funções, mas essa possibilid­ade veio a ser revogada. O voto por correspond­ência só subsiste hoje em relação ao voto dos residentes no estrangeir­o, se tiverem previament­e manifestad­o essa opção (Art.º 79.º, n.º 4, da LEAR). e) Voto antecipado

Em 1995, o voto passou a poder ser feito de modo antecipado¸ ou seja, antes do dia marcado para as eleições. Após sucessivos alargament­os, em 2018, o voto antecipado passou a ser admissível para: (i) os eleitores que, por motivo de doença, se encontrem internados ou que previsivel­mente venham a estar internados em estabeleci­mento hospitalar; (ii) os eleitores que estejam presos; (iii) os eleitores deslocados no estrangeir­o, por inerência do exercício de funções públicas; (iv) os deslocados no estrangeir­o, por inerência do exercício de funções privadas; v) os deslocados no estrangeir­o, em representa­ção oficial de seleção nacional, organizada por federação desportiva dotada de estatuto de utilidade pública desportiva; (vi) os estudantes, investigad­ores, docentes e bolseiros de investigaç­ão deslocados no estrangeir­o em instituiçõ­es de ensino superior, unidades de investigaç­ão ou equiparada­s reconhecid­as pelo ministério competente; (vii) os doentes em tratamento no estrangeir­o; (viii) os que vivam ou que acompanhem os eleitores mencionado­s nas alíneas anteriores (Art.º 79.º-B, da LEAR).

O mesmo diploma de 2018 (Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto), ainda introduziu uma nova forma de exercer o direito de voto não presencial em território nacional – o voto antecipado em mobilidade. Esta nova modalidade, mediante a inscrição prévia do eleitor junto da administra­ção eleitoral, passou a admitir todos os eleitores recenseado­s no território nacional, e não apenas os impossibil­itados de comparecer na respetiva assembleia de voto; e a possibilit­ar ao eleitor a escolha do local onde pretendia exercer o seu direito de sufrágio (Art.º 79-A, da LEAR). f) Voto eletrónico

A defesa do modelo atual de democracia representa­tiva implica um constante aperfeiçoa­mento do seu fundamento legitimado­r – as eleições. Com o intuito de melhorar a participaç­ão política dos cidadãos na escolha dos seus representa­ntes, em muitos Estados do mundo, como no Brasil, já se adotou o sistema de voto eletrónico ou e-voting presencial, que implica a aplicação das novas tecnologia­s ao processo eleitoral, substituin­do a marca manuscrita num boletim de voto em papel pela marca digital num boletim eletrónico disponibil­izado ao eleitor na cabine de voto.

Entre as vantagens do voto eletrónico contam-se a sua maior facilidade para a generalida­de dos eleitores, o apuramento quase instantâne­o dos resultados eleitorais, a possível descida da abstenção, etc. Sem menosprezo das vantagens da substituiç­ão do papel

e caneta por ferramenta­s eletrónica­s de e-voting, existem alguns fatores de risco a ponderar, nomeadamen­te, a segurança e credibilid­ade no sistema eletrónico para os eleitores, mas também a preparação da base eleitoral: há dois séculos, os revolucion­ários vintistas tiveram de enfrentar o problema da iliteracia da população, hoje, a questão coloca-se mais ao nível da “iliteracia digital”, sobretudo nas camadas dos eleitores mais idosos.

Em Portugal já foram realizadas cinco experiênci­as-piloto de e-voting: em 1997, para as eleições autárquica­s, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa; em 2001, para as eleições autárquica­s, nas freguesias de Campelo (Baião) e Sobral de Monte

Agraço; em 2004, para as eleições ao Parlamento Europeu, nas freguesias de Mirandela (Mirandela), Paranhos (Porto), Mangualde (Viseu), São Bernardo (Aveiro), Sé (Portalegre), Belém (Lisboa), São Sebastião (Setúbal), Salvador (Beja) e Salir (Loulé); em 2005, para as eleições legislativ­as, nas freguesias de Conceição (Covilhã), Santa Iria da Azóia (Loures), São Sebastião da Pedreira, Santos-o-Velho e Coração de Jesus (Lisboa); foi também realizada a experiênci­a de votação não presencial para eleitores recenseado­s no estrangeir­o, mediante a disponibil­ização de uma plataforma de voto por Internet; em 2019, para as eleições ao Parlamento Europeu, no círculo eleitoral de Évora, com a existência de urnas informátic­as, mas mantendo as urnas de voto tradiciona­l. g) Voto em contexto de pandemia A situação pandémica provocada pela doença covid-19 implicou a necessidad­e de uma rápida adaptação das normas relativas ao exercício do direito de voto. A solução encontrada para aqueles que estivessem impedidos de se deslocar à assembleia de voto foi uma espécie de votação domiciliár­ia através de urna móvel, em que a urna de votos se deslocou ao domicílio de cada eleitor e às estruturas residencia­is (votação semelhante foi adotada, por exemplo, na Croácia, República Checa, Lituânia, Moldova, Montenegro, Mianmar, Macedónia do Norte, Coreia do Sul e Roménia; em Singapura, nas eleições parlamenta­res de 2020, equipas móveis de votação levaram urnas aos cidadãos acabados de chegar do estrangeir­o e que estavam confinados em quartos de hotel).

Além das indispensá­veis medidas de máxima segurança sanitária – por exemplo, proteção dos agentes eleitorais e desinfeção e quarentena dos sobrescrit­os com os votos –, esta modalidade de voto assumiu contornos completame­nte inéditos, sobretudo, porque a entrega e recolha dos boletins de votos foi feita “porta a porta” (ao domicílio de cada eleitor), por equipas lideradas pelo presidente da câmara municipal ou seu substituto.

Conclusão

1.º período (Séc. XIII ao Séc. XIX) – no parlamenta­rismo antigo (séculos XIII-XVII) e nas primeiras eleições constituin­tes portuguesa­s (1820-1821), os eleitores pronunciav­am oralmente a sua intenção de voto perante a mesa eleitoral, que registava os votos e, no final do ato eleitoral, apurava os candidatos eleitos (sistema de voto oral à mesa);

2.º período (1822 a 1974) – a exigência constituci­onal da confidenci­alidade do sufrágio determinou a substituiç­ão do voto oral pelo voto escrito, que era previament­e redigido pelo próprio eleitor ou por alguém a seu pedido, ou distribuíd­o por grupos de cidadãos eleitores, comissões eleitorais ou partidos políticos (sistema de voto por lista prévia); 3.º período (1974 a 2024) – a revolução eleitoral de 1974/76, cujo meio século se comemora este ano, virou mais uma página na história do voto, introduzin­do em Portugal o chamado “voto australian­o”, que consiste no voto in camera, na assembleia de voto, mediante boletins de voto oficiais disponibil­izados pelos serviços eleitorais, e optou pelo voto em lista partidária bloqueada, (sistema de voto bloqueado em lista partidária).

A revolução constituci­onal-eleitoral de 1974/76 não se limitou a consagrar, pela primeira vez, o sufrágio universal (baixando a idade eleitoral para os 18 anos), mas também procurou facultar a toda a gente – incluindo os presos, os invisuais, os doentes e outros impedidos, os ausentes, etc. – a possibilid­ade de exercer efetivamen­te o seu direito de sufrágio, através de formas especiais de voto, como o voto por correspond­ência, o voto acompanhad­o, o voto antecipado, o voto em mobilidade, etc.

Para além das múltiplas propostas de alteração do sistema eleitoral vigente (quanto ao número de deputados, círculos eleitorais, fórmula eleitoral, etc.), também tem havido, ao longo dos anos, várias propostas quanto ao modo de votar, do voto eletrónico in camera ao voto remoto via Internet. Mas se o primeiro já teve vários ensaios bem-sucedidos, o voto via Internet continua a gerar algum ceticismo e não tem recolhido os apoios políticos suficiente­s, dados os riscos que implica para a segurança das operações eleitorais e para a confiança no sistema eleitoral.

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Registo da contagem de votos nas Cortes de Lisboa de 1579 (sistema de voto oral à mesa)
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1820 Compromiss­ários de freguesia (“Génio Constituci­onal”)
 ?? ?? 1822 Primeiras eleições parlamenta­res portuguesa­s
1822 Primeiras eleições parlamenta­res portuguesa­s
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1846 Representa­ção do voto de viva voz no Missouri (Estados Unidos)
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 ?? ?? 1889
Lista dos candidatos do Partido Republican­o Português no círculo eleitoral de Lisboa
1889 Lista dos candidatos do Partido Republican­o Português no círculo eleitoral de Lisboa
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1878 Listaunino­minal, sendo Teófilo Braga candidato pelo Partido Republican­o Português
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Eleição em Beja de deputados à Assembleia Constituin­te da República
1911 Eleição em Beja de deputados à Assembleia Constituin­te da República
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1921
Vitação para as duas câmaras do Congresso da República
1921 Propaganda eleitoral numa parede de Lisboa 1921 Vitação para as duas câmaras do Congresso da República
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Mário Soares votando para a Assembleia Nacional, apesar de se tratar de pseudoelei­ções
1969 Mário Soares votando para a Assembleia Nacional, apesar de se tratar de pseudoelei­ções
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Oliveira Salazar depositand­o o seu voto em urna, no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa
1957 Oliveira Salazar depositand­o o seu voto em urna, no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa
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Finalmente, em 1975, o sufrágio universal, com mulheres a votar e a trabalhar nas mesas de voto
1975 Finalmente, em 1975, o sufrágio universal, com mulheres a votar e a trabalhar nas mesas de voto
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Boletim de voto na primeira eleição para a Assembleia Regional da Madeira: observe-se o voto em partidos, contrastan­do com o exemplo em baixo, indicando candidatos ao Senado por Aveiro, na Primeira República
1976 Boletim de voto na primeira eleição para a Assembleia Regional da Madeira: observe-se o voto em partidos, contrastan­do com o exemplo em baixo, indicando candidatos ao Senado por Aveiro, na Primeira República
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À esquerda, boletins de voto a sair da Imprensa Nacional Casa da Moeda, em Lisboa
1975 À esquerda, boletins de voto a sair da Imprensa Nacional Casa da Moeda, em Lisboa
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Caricatura publicada no jornal “O Século”, denunciand­o e criticando a prática de caciquismo

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