COMO PORTUGAL TEM VOTADO ATRAVÉS DOS TEMPOS
No ano em que, assinalando-se o cinquentenário do 25 de Abril, devemos também ter em conta a revolução eleitoral aí desencadeada, abrimos caminho a rumos de investigação histórica ainda por desbravar
«Sendo a eleição o órgão normal por onde o povo deve manifestar a sua vontade soberana, evidente fica a utilidade de aperfeiçoar, quanto possível, o método para a execução deste direito fundamental». [J. F. Henriques Nogueira,
Sendo o corrente ano preenchido por um número incomum de eleições parlamentares – para a Assembleia Legislativa Regional dos Açores (4 de fevereiro) a Assembleia da República (10 de março), o Parlamento Europeu (9 de junho) e talvez, ainda, a Assembleia Legislativa Regional da Madeira –, justifica-se tentar conhecer um pouco da longa e complexa história dos modos de votar em Portugal, ao logo de vários séculos.
Mas este ano é também o do cinquentenário da revolução eleitoral de 1974, decorrente da lei eleitoral para a Assembleia Constituinte, de 15 de novembro desse ano, que, entre outras mudanças fundamentais, também alterou profundamente o modo de votar.
São estes os dois propósitos deste estudo sumário: contribuir para a história do voto em Portugal; e evocar o quinquagésimo aniversário da revolução eleitoral de 1974.
Uma história multissecular
O parlamentarismo português é dos mais antigos da Europa! Desde as Cortes de Leiria de 1254, pelo menos, que em Portugal se instituiu o princípio da representação política da comunidade, concretizado através de assembleias representativas gerais eletivas – as Cortes da antiga monarquia pré-absolutista e da monarquia constitucional, depois da revolução constitucional de 1820/22; o Congresso da 1.ª República, a Assembleia Nacional do Estado Novo e a atual Assembleia da República.
Ressalvados os períodos da monarquia absoluta, entre finais do século XVII e a Revolução Liberal (1698-1820), do interregno provocado pela Vila-Francada (1823-1826), da usurpação miguelista (1828-1834) e do início da ditadura (1926-1933), nunca foi inteiramente abandonado o princípio da representação política da nação por via eleitoral. Nem o Estado autoritário de 1933-1974, apesar de antiliberal, antidemocrático e antiparlamentar, ousou quebrar a ideia da representação eleitoral, embora esvaziando-a de conteúdo e tornando as eleições num exercício de ficção política.
Como é natural, ao longo de seis séculos e meio de parlamentarismo – descontados os referidos interregnos – existiu uma considerável diversidade, quer quanto ao tipo de representação parlamentar (totalmente distinta nos parlamentos permanentes instituídos pela Revolução constitucional de 1820, em comparação com as antigas Cortes, não permanentes, sem sede fixa e com poderes limitados), quer quanto ao regime e ao sistema eleitoral (direito de sufrágio, número de deputados, círculos eleitorais, fórmula eleitoral, etc.), quer também quanto à forma de os eleitores exercerem o seu direito de sufrágio e de os representantes serem eleitos. É sobre as variadas formas de expressar o voto para a eleição das assembleias representativas gerais do país que versa este trabalho.
Importa salientar que, durante muitos séculos, uma parte do parlamento não era eletiva e só após a implantação da República (1910) – à exceção do período das Cortes monocamarais vintistas (1820-1823) e das Cortes bicamarais setembristas (1836-1843) – é que se generalizou a prática dos parlamentos eleitos in totum. Efetivamente, nas Cortes antigas não eram eleitos os representantes das classes altas do clero e da nobreza – que tinham lugar por inerência – e durante a vigência da Carta Constitucional de 1826 também não eram eleitos os membros da Câmara dos Pares – salvo no decénio de 1885-1896, em que houve uma parte eletiva de 50 pares, em simultâneo com a maioria não-eletiva de mais de cem pares, designados pelo rei.
Tentar uma história do boletim de voto nas eleições parlamentares é uma
lide temerária, quer pela sua complexidade, quer porque a procura de exemplares antigos se torna uma autêntica quimera: primeiro, porque até ao Séc. XIX o voto era oral; segundo, porque até 1974 o boletim de voto era preenchido ou distribuído pelas candidaturas e trazido à mesa de voto pelos próprios eleitores; terceiro, porque os modernos boletins de voto em papel eram queimados em público no final de cada eleição (cf. a Lei de 11 de julho de 1822, Art.º 38º), para garantir o secretismo do voto, sobretudo quando as listas eram manuscritas. A prática de queimar os boletins de voto só foi abolida no Séc. XX – a lei de 3 de julho de 1913, na 1.ª República, ainda impunha que, após o apuramento da votação, os boletins de voto fossem queimados em público (Art.º 88.º). Em contrapartida, a lei eleitoral de 30 de setembro de 1852 determinou que os boletins de voto nulos deixassem de ser queimados com os restantes (Art.º 75.º), levando assim a que alguns fossem arquivados e chegassem aos dias de hoje.
Estas são algumas das razões que justificam que a história do boletim de voto (nomenclatura adotada em 1911 pela 1.ª República e que substituiu a de lista de voto) em Portugal ainda esteja por fazer! E este estudo é uma primeira tentativa para traçar um panorama sobre o assunto e abrir caminho a futuras investigações.
O voto na eleição das antigas Cortes (sécs. XIII-XVII)
O período das Cortes antigas (Séculos XIII-XVII) caracterizou-se pela falta de uma lei eleitoral nacional escrita, que uniformizasse os atos eleitorais em todo o país, pois os concelhos com assento em Cortes gozavam de grande autonomia na eleição dos seus procuradores, pelo que não era viável estabelecer taxativamente uma prática única, constante e uniforme, em relação à forma de votar. Mas, na realidade, acabou por se sedimentar um modo de eleição relativamente uniforme – o voto oral à mesa –, embora essa regra não exclua que se tenham praticado modos de votar distintos, que podiam variar de concelho para concelho e de eleição para eleição – por exemplo, o voto de mão no ar ou a eleição por sorteio (que, até à data, ainda não foram identificados em eleições de representantes concelhios às antigas Cortes gerais portuguesas).
a) Voto oral à mesa
A forma mais comum de votar para a eleição dos procuradores dos concelhos às antigas Cortes, em assembleias eleitorais que se reuniam na igreja matriz ou nos paços do concelho, foi a seguinte: (i) um votante de cada vez, aproximando se da mesa de voto, manifestava a sua intenção de voto; (ii) o voto era uninominal ou plurinominal, conforme o concelho elegesse um ou mais procuradores; (iii) o escrivão registava por escrito os nomes dos que eram votados para procuradores; (iv) por cada voto que era emitido, o escrivão colocava um pequeno traço vertical à frente do nome votado; (v) se a pessoa indicada já constasse da lista, por ter sido escolhida por um eleitor anterior, o escrivão limitava-se a acrescentar novo traço à frente do nome proferido. No final, o apuramento era feito pela contagem dos pequenos traços colocados à frente de cada nome, que correspondiam ao número de votos obtidos, ficando eleitos procuradores às Cortes os que obtivessem o maior número de traços/votos (maioria relativa) e, em caso de empate, prevalecia o nome que tivesse sido indicado primeiro.
Nas Cortes de Lisboa de 1828, destinadas a entronizar D. Miguel como rei absoluto, os procuradores do terceiro estado ainda foram eleitos de acordo com esta forma tradicional de votar.
Sobretudo na documentação medieval, esta forma de eleição surge identificada como votar “às vozes”, indicando que cada eleitor devia pronunciar oralmente a sua intenção de voto, perante a mesa. Porém, o voto mais comum, acima explanado, era semissecreto e não totalmente público, uma vez que a mesa era localizada de forma a que, em princípio, só os seus membros ouvissem a voz do votante.
Este tipo de sufrágio distingue-se do célebre sufrágio viva voce (voto em voz alta), o autêntico sufrágio público, que tinha de ser pronunciado pelo eleitor de forma a ser ouvido por toda a assembleia dos presentes e, geralmente, em espaços abertos ao público em geral (onde também podiam acorrer mulheres e crianças) e não exclusivamente destinados aos cidadãos com capacidade eleitoral ativa. O voto viva voce foi uma das características sui generis do regime eleitoral dos Estados Unidos da América, até ao final do Séc. XIX. No tempo do domínio colonial britânico, era uma prática corrente em praticamente todo o território; após a declaração de independência (1776), houve constituições dos novos Estados que o substituíram pelo voto escrito – nomeadamente, a Constituição da Geórgia de 1777 (Art.º 13.º), a Constituição de Nova Iorque de 1777 (Art.º 6.º) e a Constituição de Vermont de 1777 (Art.º 29.º); no entanto, face à autonomia eleitoral deixada aos estados federados pela Constituição federal de 1787, a votação viva voce ainda perdurou por mais de um século. Na realidade, em 1848 este modo de votação ainda era praticado em sete estados federados norte-americanos – Oregon, Texas, Arkansas, Missouri, Illinois, Kentucky e Virgínia – e o último estado a abandonar a votação viva voce foi o Kentucky, em 1888. b) Voto por “pelouros”
O método da votação por pelouros, bastante mais complicado, foi instituído por D. João I, por lei de 12 de junho de 1391, para a eleição de cargos municipais. Posteriormente, foi compilada para o livro I das Ordenações do reino – Afonsinas (1446), Manuelinas (1512-1521) e Filipinas (1603). Até à data, o único caso conhecido em que a eleição por pelouros foi adaptada à eleição dos procuradores às Cortes foi a eleição do procurador da cidade do Porto às Cortes de Évora, realizada no dia 14 de junho de 1460. Mas não é de excluir que outros casos tenham ocorrido.
De acordo com o método original dos “pelouros”, a eleição era feita de forma indireta, em várias fases. Na primeira fase eleitoral: (i) o colégio eleitoral municipal – composto pelos magistrados municipais em funções (juízes, vereadores e procurador do concelho) e pelos homens bons do concelho (proprietários, comerciantes, magistrados, etc.) – elegia seis elegedores; (ii) os elegedores prestavam juramento e eram apartados em três duplas, que elaboravam três róis de elegíveis para cada cargo municipal, com os nomes dos que poderiam ser titulares das três magistraturas municipais sujeitas a eleição (juízes ordinários, vereadores e procuradores); (iii) os róis eram depois concertados e aprovados em nova reunião plenária do colégio eleitoral, presidida pelo corregedor régio, apurando-se as listas finais; (iv) os nomes dos elegíveis pré-selecionados eram introduzidos nos pelouros (bolas de cera), que por sua vez eram metidos em sacos, ficando em sacos separados os que eram elegíveis para juízes, vereadores e procuradores; no entanto, onde por costume se elegia um juiz fidalgo e outro plebeu, os correspondentes “pelouros” deviam ser metidos em dois sacos apartados, para que, efetivamente, se cumprisse a tradição; (v) por fora de cada saco era cosido o título de cada um dos ofícios a designar; (vi) todos os sacos eram fechados na arca dos pelouros.
Na segunda fase eleitoral, a da eleição dos magistrados municipais, procedia-se à extração pública dos pelouros e eram selecionados os titulares dos respetivos cargos. No dia das eleições, perante todos os presentes, um homem bom metia a mão em cada um dos sacos, revolvendo bem os pelouros, antes de tirar um a um, até se preencherem todos os ofícios municipais eletivos para o ano de mandato respetivo. Portanto, nesta fase a eleição resultava de sorteio. Terminada a diligência, havia o prazo de 15 dias para enviar a lista dos eleitos ao rei, cerrada e lacrada com o selo do concelho, para que este os confirmasse e os ofícios se considerassem definitivamente atribuídos.
A ata da eleição dos procuradores portuenses às Cortes de Évora, acima referida, é muito parca em pormenores, pelo que não sabemos exatamente como se adaptou a metodologia original dos pelouros à eleição do procurador às Cortes. Plausivelmente, nem sequer foram feitos pelouros novos, fazendo-se a extração de um dos sacos que estavam previamente preparados para a eleição dos cargos municipais.
O voto sob o “governo representativo” (1820/22-1974)
O advento do constitucionalismo eleitoral moderno e do sistema político representativo, assente sobre um parlamento permanente, periodicamente eleito, trouxe profundas mudanças estruturais, tanto no alargamento do direito de sufrágio (embora sempre aquém do sufrágio universal), como na frequência e na forma de o eleitor exercer o seu direito de sufrágio em eleições parlamentares. Embora com pontuais adaptações às circunstâncias de cada época, o modo de expressar o voto em Portugal manteve praticamente inalteradas as suas caraterísticas essenciais durante cerca de um século e meio. Trata-se de um voto único por lista prévia, que passamos a caracterizar.
Com exceção das eleições constituintes de 1820, em que nas “eleições primárias” o voto foi expresso de forma oral à mesa, à moda antiga, ao longo de mais de cento e cinquenta anos, da Constituição de 1822 à revolução eleitoral democrática de 1974, o voto único por lista prévia assumiu como atributos fundamentais o facto de ser um: (i) voto escrito e secreto; (ii) voto prévio; e (iii) voto em pessoas (plurinominal ou uninominal). Pontual e acessoriamente, em certos períodos, foi também: (iv) voto incompleto; e (v) voto negativo. Vejamos em que consistiu cada um desses predicados. a) Voto escrito e voto secreto O constitucionalismo eleitoral moderno substituiu o tradicional voto oral pelo voto escrito, ou seja, o voto deixou de ser prestado oralmente à mesa e passou a ser um voto em papel, em que o próprio eleitor ou alguém a seu pedido escrevia os nomes dos que pretendia que fossem eleitos deputados (ou eleitores intermédios, no caso das eleições indiretas); evidentemente, o mesmo se aplicou à eleição direta dos senadores (1838-1842 e 1911-1926) e dos pares do reino (1885-1896), quando tiveram lugar.
A adoção do voto escrito surgiu estritamente vinculada ao voto secreto, ou seja, a opção constitucional pelo sufrágio secreto implicou a opção por um sufrágio escrito, entregue à mesa, que era considerada a única ou a mais eficaz forma de garantir a confidencialidade do sufrágio. A Constituição republicana francesa de 1795 foi a primeira a registar o sufrágio secreto no seu articulado (Art.º 31.º) e, consequentemente, França foi também o país pioneiro a adotar oficialmente o voto escrito, salvas as referidas constituições dos estados federados norte-americanos da Geórgia (Art.º 13.º), de Nova Iorque (Art.º 6.º) e de Vermont (Art.º 29.º), todas de 1777.
Em Portugal, o movimento revolucionário de 1820 não teve tempo para amadurecer a questão para as eleições constituintes. As primeiras Instruções eleitorais de 31 de outubro de 1820 mantiveram o voto oral à mesa nas eleições primárias (município) e reservaram o voto escrito apenas para as eleições de 2.º grau, em que cada eleitor de comarca tinha de se dirigir a uma mesa separada da assembleia, na qual “irá escrever o nome do que elege [para deputado] e, pegando na tira de papel em que o escreveu, a lançará por sua mão em uma urna” (Art.º 21.º). Mas estas Instruções não chegaram a aplicar-se, tendo sido substituídas pelas Instruções eleitorais de 22 de novembro de 1820, que adaptaram ao reino de Portugal o capítulo eleitoral da Constituição espanhola de 1812. Em Portugal continental, as eleições constituintes ainda foram realizadas em dezembro desse ano de 1820 e, de acordo com a referida base legal, nas assembleias eleitorais primárias (freguesia) manteve-se o voto oral à mesa; em todo o processo eleitoral (desenvolvido em quatro atos eleitorais), a única exceção prevista foi a dos colégios eleitorais de comarca (3.º ato eleitoral), em que os eleitores votavam “por meio de bilhetes” [lista escrita em assembleia] – o que pressupunha que, no mínimo, o eleitor de comarca tinha de saber ler e escrever.
Porém, os primeiros boletins de voto escritos ainda surgiram na primeira fase das eleições constituintes de 1820, fruto da alteração introduzida à eleição dos “compromissários” de freguesia.
As freguesias mais populosas elegiam até 31 “compromissários” (1.º grau eleitoral), o que causava enormes dificuldades, quer aos eleitores, que tinham de memorizar ou apontar e ditar oralmente os nomes de 31 candidatos, quer à mesa, que tinha de registar por escrito todos os nomes que fossem votados. Deste modo, o ato eleitoral tornava-se extremamente complexo e moroso nas freguesias mais populosas. Em alternativa, foi sugerido que cada eleitor levasse previamente preenchida e entregasse à mesa a lista com os nomes e moradas dos “compromissários” em que votava (Diário do Governo, n.º 46, 7 de dezembro de 1820).
Não existem documentos que comprovem o alcance desta importante novidade em todo o país, sendo plausível que tenha sido praticada nas cidades e nos grandes centros populacionais, tendo sido seguramente adotada nas freguesias de São Bento da Vitória (Porto), na cidade de Coimbra, na freguesia dos Anjos (Lisboa), em Avis e, depois, no Brasil, já em 1821. Um jornal contemporâneo publicou um desses boletins de voto, com os nomes dos 31 votados para “compromissários”, apresentado por um eleitor da freguesia de São Bento da Vitória, cidade do Porto (Génio Constitucional, n.º 69, 20 de dezembro de 1820) – este é o primeiro boletim de voto conhecido em Portugal!
Além da opção pela eleição direta do futuro parlamento, as Cortes Constituintes vintistas (1821 1822) enveredaram pelo sigilo do sufrágio individual e alteraram completamente a forma de votar, dando total preferência ao voto escrito em detrimento do voto oral, que foi eliminado. Assim, o voto escrito foi adotado, pela primeira vez em Portugal, na lei eleitoral de 11 de julho de 1822 e na Constituição de 1822, que se tornou a segunda constituição política moderna a instituir o sufrágio secreto (Art.º 42.º) e a primeira a determinar que o eleitor entregasse à mesa de voto, no dia das eleições, a lista escrita com os nomes e as profissões das pessoas em que votava para deputados (Art.º 52.º).
Porém, tendo em consideração a elevada taxa de iliteracia à época, a solução encontrada pelos deputados constituintes foi permitir expressamente que os analfabetos pedissem a alguém para lhe preencher a lista, com os nomes em que pretendiam votar – “se [o analfabeto] não escreve a lista dos nomes, pede a quem lha escreva!”, alegou categoricamente o deputado Borges Carneiro (sessão plenária das Cortes Constituintes, 17 de abril de 1822). No entanto, o facto de o eleitor trazer a lista escrita do exterior punha em causa o rigor do secretismo do voto, pelo menos em relação aos seus familiares, especialmente no caso dos analfabetos, que tinham de pedir a alguém para lhe preencher a lista. Por isso, esta forma de votar deve ser, preferencialmente, considerada como um voto semissecreto. b) Voto prévio
Em segundo lugar, a lei eleitoral e a Constituição determinaram que cada eleitor (analfabeto ou não) entregasse a sua lista preenchida à mesa de voto, no dia aprazado para as eleições. Asro
sim, o boletim de voto passou a ser apresentado em suporte de papel e preenchido antecipadamente e fora do edifício reservado para os atos eleitorais. A assembleia eleitoral não era o lugar de exercício do direito de voto, mas sim o lugar de colheita dos votos dos eleitores.
Portugal foi dos primeiros países a adotar a solução do voto previamente elaborado. Em França, apesar do referido pioneirismo na consagração do voto secreto, só a partir de 1848 é que se admitiu a possibilidade de o boletim de voto ser levado do exterior da assembleia eleitoral. Nas Instruções eleitorais francesas que regulamentavam a execução do Decreto eleitoral de 5 de março de 1848, o Governo provisório reiterou o princípio do sigilo do voto, mas, tendo em conta o grande núme
de eleitores recenseados, considerou não haver condições para que os boletins fossem redigidos na sala ou na presença dos membros da mesa; por isso, decretou que cada eleitor podia trazer o seu próprio boletim de voto, depois de o ter redigido ou mandado redigir fora da assembleia eleitoral, entregando-o fechado à mesa de voto (Art.º 20.º). O que quer dizer que, até 1848, em França, os eleitores analfabetos ficavam assaz limitados ou, pelo menos, teriam imensas dificuldades para exercer o seu direito de voto.
Antecipando-se ao que viria a ser instituído no ano de 1848, em França, a primeira Constituição portuguesa (1822) já impunha que as listas de voto fossem entregues dobradas e que os mesários as lançassem na urna sem as desdobrarem (Art.º 54.º), outra medida destinada a salvaguardar o sigilo.
c) Voto em pessoas (plurinominal ou uninominal)
Embora, até ao atual regime democrático, o voto fosse sempre em pessoas, a tipologia do boletim de voto também depende da natureza plurino
minal ou uninominal dos círculos eleitorais, designadamente: o voto plurinominal corresponde a círculos que elegem mais do que um deputado, podendo/devendo a lista de voto contemplar tantos nomes quantos os deputados atribuídos ao respetivo círculo; o voto uninominal corresponde a círculos que elegem apenas um deputado, devendo o boletim de voto conter apenas o nome de um elegível.
Nos dois últimos séculos de parlamentarismo, predominaram em Portugal os círculos eleitorais plurinominais, variando apenas a sua magnitude, pelo que as listas de voto também foram predominantemente plurinominais, alterando apenas o número de votados admitidos, que variaram em função da amplitude legal dos círculos (v. g., círculos provinciais, distritais ou ad hoc¸ ou até um círculo nacional na 1.ª fase do Estado Novo) e do número de deputados que eram eleitos em cada círculo. O único período em que se praticou o sistema de voto uninominal foi entre 1859 e 1884, na vigência da Carta Constitucional, quando o país esteve exclusivamente dividido em círculos uninominais, ou seja, eram tantos os círculos quantos os deputados a eleger para a Câmara baixa. Na década seguinte (1884-1895), vigorou um sistema misto de boletins plurinominais (círculos plurinominais) e boletins uninominais (círculos uninominais), até que a Lei de 28 de março de 1895 acabou definitivamente com os círculos uninominais, terminando, assim, a possibilidade de voto uninominal. d) Listas de candidatura
As listas de voto feitas antecipadamente pelos eleitores abriram caminho às listas de candidatura que rapidamente passaram a ser apresentadas pelos próprios candidatos ou elaboradas por grupos de eleitores, comissões eleitorais e partidos políticos, de forma que o eleitor se limitava a apresentar a lista da sua preferência política à mesa eleitoral, prescindindo, portanto, de elaborar ou pedir para que lhe elaborassem uma lista própria, o que abriu as portas à produção de listas de voto em série, impressas.
A impressão de listas de voto acelerou exponencialmente a sua circulação no território dos respetivos círculos eleitorais, desempenhando três funções cruciais: (i) função de candidatura, as listas de voto supriam a falta das candidaturas oficiais, sobretudo enquanto se não formaram os partidos políticos; (ii) função propagandística, as listas de voto serviam de propaganda política às candidaturas apresentadas por particulares, comissões eleitorais, associações de eleitores ou partidos políticos; (iii) função de eficiência, as listas de voto facilitavam imenso e incentivavam o exercício do direito de sufrágio, sobretudo no seio dos eleitores analfabetos, que era a esmagadora maioria da população.
Nas eleições de 1838, pelo menos, já temos notícias da preparação de listas de candidatura e também da circulação de listas de voto impressas. Pouco depois, porém, a produção em série de listas de voto acabou por ser acusada de fraude eleitoral. Por isso, a lei eleitoral de 12 de agosto de 1847 proibiu expressamente as listas preenchidas com nomes impressos ou litografados (Art.º 107.º), admitindo ao escrutínio apenas as listas de voto manuscritas. No entanto, a proibição foi de imediato revogada pela lei eleitoral seguinte, e os boletins de voto impressos passaram a fazer parte da praxis eleitoral do país, acabando até por ser expressamente admitidos pela legislação eleitoral de 1911 (Art.º 50.º da lei eleitoral de 5 de abril).
No sentido de uniformizar o forma
to dos boletins e garantir o sigilo de voto, as leis eleitorais passaram a definir as suas características. Por exemplo, a lei de 1822 proibiu que as listas fossem assinadas; a lei de 1846 determinou que não fossem admitidas “listas em papel de cores ou transparentes, ou que tenham qualquer marca, sinal ou numeração externa”; a lei de 1911 estabeleceu as medidas dos boletins de voto – “serão do mesmo papel, de padrão decretado pelo Governo, de forma retangular e dimensões 0,10 m X 0,15 m, sem marca, designação exterior ou sinal distintivo”. Todavia, subsistiram traços que permitiam distinguir os diferentes boletins de voto, como a espessura e a tonalidade do papel, o que permitia à mesa eleitoral identificar o sentido de voto de cada eleitor.
Apesar de a apresentação oficial de listas de candidaturas ou listas eletivas só ter sido, pela primeira vez, regulamentada na legislação eleitoral de 1911, esta novidade eleitoral terá começado espontaneamente por volta de 1836/38, ou mesmo antes. Com esta inovação, a eleição parlamentar foi deixando de ser uma escolha pessoal de deputados, passando a ser uma escolha entre candidaturas partidárias. Este mecanismo veio facilitar imenso o exercício do direito de sufrágio, mas, por outro lado, veio limitar a liberdade de cada eleitor escolher os seus próprios candidatos, para o preenchimento da lista de voto. Manifestando-se contra esta restrição à liberdade eleitoral, no final do Séc, XIX, Francisco de Assis Brasil defendeu assim a sua exponencial ampliação:
“Penso que se pode exigir que o voto seja escrito, mas que deve deixar-se à inteira vontade do eleitor fazê-lo em casa ou no local da eleição, escrevê-lo por seu punho ou mandá-lo escrever, fazer a leitura dele em alta voz ou não, assinar a cédula ou depositá-la anónima, impressa ou manuscrita, aberta ou cerrada e no papel da cor e forma que lhe agradarem. Esse é o preceito mais liberal, sem perigo algum para a regularidade do processo e com a rara virtude de não ofender a idiossincrasia de
ninguém” (1893).
Por outro lado, retirando aos eleitores a liberdade de escolha individual dos seus candidatos, as listas de candidatura podiam provocar discordância dos eleitores em relação a algum ou alguns dos candidatos arrolados. No início do Estado Novo, a Lei de 6 de novembro de 1934 introduziu o designado voto negativo, que permitia ao eleitor rejeitar da lista os nomes de candidatos em que não quisesse votar, deixando somente os da sua preferência, sem que, todavia, pudesse substituir ou aditar outros nomes de candidatos à lista. No escrutínio, os nomes riscados não eram contabilizados, sendo subtraídos ao apuramento final das listas.
e) Da eleição maioritária ao voto limitado ou incompleto
Com exceção das eleições constituintes republicanas de 1911, em que nos círculos de Lisboa e do Porto foi adotado, pela primeira vez entre nós, o sistema de representação proporcional (pelo método de Hondt), a regra durante este logo período eleitoral em consideração foi sempre a eleição maioritária, ou seja, eram eleitos os cidadãos mais votados, até ao número de mandatos a eleger em cada círculo eleitoral. Todavia, até 1884 requeria-se uma maioria absoluta para ser eleito deputado, o que obrigava à realização de uma segunda votação para eleger os deputados não eleitos na primeira volta.
O nascimento dos partidos políticos e das listas de candidatura partidárias provocou a concentração dos votos nos candidatos dos partidos dominantes, reduzindo a representação de outras forças políticas. Foi para moderar esse efeito de concentração eleitoral que surgiu o voto limitado ou incompleto, que consistiu na apresentação de listas de voto plurinominais com um número de nomes inferior ao número de deputados a eleger pelo respetivo círculo eleitoral, deixando assim espaço para a representação de minorias. Em Portugal, esta modalidade de voto foi inaugurada pela Lei de 21 de maio de 1884, no período cartista, que determi
nou o seguinte:
“As listas de votação para os círculos de três deputados conterão até dois nomes, para os de quatro até três nomes e para os de seis até quatro nomes, considerando-se como não escritos os últimos nomes excedentes, se os houver, na ordem da lista” (Art.º 1º, n.º 1).
O voto por lista incompleta foi revogado pela reforma eleitoral de 1895, mas voltou a ser reintroduzido pela lei eleitoral de 1901, mantendo-se até ao final da 1.ª República, sendo o mais duradouro desvio ao princípio do sufrágio maioritário até 1974.
Nas pseudoeleições do Estado Novo, quase sempre sem oposição, os eleitores voltaram a votar em lista completa dos candidatos em cada círculo, e adotou-se a fórmula do voto maioritário de lista, segundo o qual a lista vencedora ganhava todos os deputados em disputa no respetivo círculo eleitoral, independentemente da sua expressão. Por isso, mesmo nos poucos casos em que a oposição democrática resolveu concorrer, como em 1969, a organização política oficial do regime ganhou sempre a totalidade dos mandatos.
O voto depois da revolução eleitoral de 1974/76
A Revolução democrática de 1974/76 foi também uma profunda revolução eleitoral – primeiro, na lei eleitoral para as eleições constituintes e, depois, na própria Constituição e na lei eleitoral da Assembleia da República –, que instituiu pela primeira vez entre nós uma verdadeira democracia eleitoral, cujos traços inovadores essenciais são, entre outros aspetos, os direitos eleitorais como direitos fundamentais, o sufrágio universal, o sistema proporcional, as candidaturas partidárias, a representação dos cidadãos residentes no exterior, a Comissão Nacional das Eleições, etc.
Acresce que com a autonomia político-legislativa conferida aos Açores e à Madeira e, uma década depois, com a adesão à CEE/UE, a eleição do parlamento nacional (AR) passou a ser acompanhada, pela primeira vez na nossa história política, pela eleição dos
dois parlamentos regionais e do Parlamento Europeu, multiplicando o número de eleições.
A revolução eleitoral também se refletiu na mudança no modo de exercício do direito de sufrágio, incluindo as formas especiais destinadas a possibilitar o exercício do direito de voto a categorias de pessoas incapazes de o fazer, como os invisuais e os portadores de outras incapacidades, os presos (que, entre nós, ao contrário de outros países, não perdem o direito de voto), os que estejam ausentes ou tenham compromissos no dia das eleições. a) Adoção do “voto australiano”
Foi a lei eleitoral de 1974 para as eleições constituintes de 1975 que adotou, pela primeira vez, o designado sistema de “voto australiano” (Australian ballot), o qual pressupõe: (i) o exercício do direito de voto in loco, numa câmara isolada, onde o eleitor marca o respetivo boletim de voto com a sua preferência eleitoral, em sigilo, livre de quaisquer influências ou de coação (ii) boletins de voto impressos, oficiais, a expensas públicas, distribuídos aos eleitores no próprio ato eleitoral; (iii) cada boletim de voto contém a lista de todas as candidaturas apresentadas ao círculo, acompanhadas de espaços destinados a assinalar a preferência dos eleitores.
Este sistema foi inaugurado na Austrália, nos primeiros meses do ano de 1856, nos estados de Vitória, Tasmânia e Austrália do Sul. Inicialmente, o eleitor riscava na lista de voto (onde constavam os nomes de todos os candidatos do círculo) os nomes dos candidatos em que não desejava votar, deixando somente aqueles em que votava. Era uma espécie de voto negativo, de forma que para efeitos de apuramento só eram contabilizados os nomes não riscados. Passados dois anos (1858), o estado da Austrália do Sul substituiu a prática de riscar os nomes dos candidatos indesejados por uma caixa quadrada em frente ao nome de cada candidato, na qual o eleitor deveria marcar uma cruz –X– à frente dos candidatos da sua preferência e em que desejava votar, em vez de riscar os nomes dos candidatos indesejados. Paulatinamente, o sistema de sufrágio australiano espalhou-se pelo mundo inteiro – Nova Zelândia, 1870; Reino Unido, 1872; Canada, 1874; Bélgica, 1877; estados federados de Nova Iorque, Kentucky e Massachusetts (EUA), 1888;
Alemanha, 1903; França, 1913; Brasil, 1960.
Em Portugal, o sistema veio a ser proposto pela Comissão que preparou o projeto da lei eleitoral para a Assembleia Constituinte, no relatório de 22 de agosto de 1974:
“Com a mesma preocupação de garantir a dignidade e genuinidade da eleição, a comissão procurou regulamentar minuciosamente o ato eleitoral. Assim, para dar ao eleitor a possibilidade de exercer o sufrágio em plena liberdade, por um lado, previu a existência em cada assembleia de voto de uma câmara isolada onde o eleitor, sozinho, expressará o seu voto; por outro lado, concebeu um boletim de voto único, onde figurarão todas as listas concorrentes com as suas siglas e símbolos, recebido das mãos do presidente na própria assembleia de voto, e no qual o eleitor terá apenas de assinalar com uma cruz a sua escolha”.
A proposta foi aprovada e passou para a lei eleitoral de 15 de novembro de 1974, que serviu de base legal às eleições constituintes de 1975. De acordo com este diploma, o direito de sufrágio passou a ser exercido da seguinte maneira(Art.º 99.º): (i) cada eleirespetivo
tor, apresentando-se perante a mesa, identifica-se ao presidente, o qual, depois de reconhecer o eleitor como o próprio, diz o seu nome em voz alta e, depois de confirmada a sua inscrição no recenseamento eleitoral, entrega-lhe um boletim de voto; (ii) de seguida, o eleitor entra na câmara de voto situada na assembleia e aí, sozinho, marca com uma cruz, no quadrado respetivo, a lista em que vota e dobra o boletim em quatro; (iii) voltando para junto da mesa, o eleitor entrega o boletim ao presidente, que o introduz na urna, enquanto os escrutinadores descarregam o voto, rubricando os cadernos eleitorais em coluna a isso destinada e na linha correspondente ao nome do eleitor.
b) Voto em lista bloqueada e as suas alternativas
Além das garantias de sigilo e do boletim oficial padronizado herdados do Australian ballot, o modo atual de votar em Portugal distanciou-se bastante do que tinha sido instituído no século XIX. Desde logo, em vez dos nomes pessoais dos candidatos, os boletins de voto passaram a chegar à mão do eleitor preenchidos somente com as denominações, siglas e símbolos dos partidos e coligações proponentes de candidaturas. Assim, o eleitor deixou de votar em candidatos individuais e passou a votar diretamente em partidos políticos, os quais assumiram a incumbência de selecionar os candidatos à eleição e de compor as respetivas listas partidárias de candidatura, que são previamente publicadas.
Como é evidente, a tipologia do voto bloqueado em lista partidária também se não confunde com o voto plurinominal instituído pelo Vintismo e que, como mostrámos acima, vigorou em Portugal até à introdução das listas oficiais.
No voto plurinominal tradicional: (i) cada eleitor preenchia livremente a sua própria lista de candidatos, embora, com o tempo, se tenha tornado prática comum escolher entre as listas de candidatura prévias; (ii) a lista era levada do exterior por cada um e entregue à mesa no dia das eleições; (iii) cada eleitor tinha um voto multíplice, votando em tantos candidatos da sua escolha quanto o número de deputados (efetivos e suplentes) que coubesse eleger no respetivo círculo eleitoral. Consequentemente, o apuramento dos votos não se fazia por lista, mas sim individualmente, pelos vários nomes constantes das listas, sendo eleitos os mais votados em todas as listas. Ao invés, no voto em lista partidária (em vigor desde 1974): (i) as listas dos candidatos são previamente preparadas pelos partidos políticos, isoladamente ou em coligação, e depois integradas num único boletim de voto oficial; (ii) no ato eleitoral, é entregue ao eleitor um boletim de voto em que constam apenas as denominações, siglas e símbolos dos partidos políticos e coligações que apresentaram candidaturas no círculo eleitoral, não constando do boletim a lista com os nomes dos candidatos de cada partido; e (iii) o eleitor tem voto singular, que incide sobre a lista do partido ou coligação, votando assim simultaneamente em todos os nomes que compõem essa lista partidária pela
ordem apresentada (lista fechada e bloqueada). Consequentemente, o apuramento eleitoral consiste em verificar os votos nos partidos/coligações ou nas várias listas por eles preparadas, mas não nos candidatos.
Assim, a Revolução democrática de 1974 operou uma troca de posições, substituindo os candidatos individuais pelos partidos, passando os segundos para o primeiro plano da cena política, dando azo a uma correspondente “despersonalização” do sistema eleitoral. Com o intuito de corrigir essa “despersonalização”, surgiram várias propostas no direito eleitoral comparado. Uma das propostas consiste em introduzir o voto preferencial, optando por um sistema de listas nominais não-bloqueadas – onde os partidos continuariam a apresentar as suas próprias listas, que agora também constam dos boletins de voto, deixando aos eleitores a liberdade para escolher os seus candidatos preferidos e estabelecer a sua própria ordem de preferência de candidatos. Outra proposta consiste na adoção do sistema eleitoral alemão, em que cerca de metade dos deputados são eleitos em círculos uninominais, sendo depois imputados à quota do partido respetivo no correspondente círculo eleitoral plurinominal. Tendo estado prestes a ser adotado entre nós em 1998, a tentativa acabou por falhar e nunca mais voltou a ser considerada na Assembleia da República, embora seja recorrentemente defendida por diversas forças políticas.
Como nenhuma destas propostas foi acolhida, o voto em lista partidária bloqueada, introduzido em 1975, manteve-se praticamente inalterado até à atualidade. c) Voto acompanhado
Quem ficava naturalmente excluído do voto escrito em câmara eram os invisuais. Para evitar esta exclusão, a lei eleitoral constituinte de 1974 permitiu que os invisuais fossem “acompanhados de um cidadão eleitor por si escolhido, que garantirá a fidelidade de expressão do seu voto e ficará obrigado a absoluto sigilo” (Art.º 86.º). A partir de 2018, o voto acompanhado dos eleitores invisuais passou a ter como alternativa a utilização de uma matriz do boletim de voto em braille, disponibilizada pela mesa aos eleitores. Entretanto, esta modalidade de voto acompanhado, em 1976, tinha sido alargada a “quaisquer outras pessoas afetadas por doença ou deficiência física notórias” (LEAR, Art.º 97.º). d) Voto por correspondência Um dos grandes desafios colocados ao direito eleitoral moderno consistiu em encontrar soluções para a participação dos eleitores que, no dia das eleições, pelos mais diversos motivos, se encontrem ausentes das respetivas circunscrições de recenseamento, ficando impedidos de se deslocarem às respetivas assembleias de voto e de exercerem presencialmente o seu direito de sufrágio.
As soluções tradicionais para essas situações foram o voto por procuração e o voto por correspondência. Durante o parlamentarismo antigo verificou-se um caso, talvez único, de voto por correspondência. Em maio de 1535, Garcia de Resende enviou por André Boto uma missiva à assembleia eleitoral da cidade de Évora, indicando os nomes dos dois procuradores da cidade em que votava – Craveiro de Miranda e Francisco de Miranda –, para assistirem e participarem nas Cortes de Évora desse ano.
A questão surgiu verdadeiramente no rescaldo da revolução eleitoral de 1974/76. A partir de 1975 começaram a
ser introduzidas exceções ao princípio da pessoalidade e da presencialidade do sufrágio, de forma a permitir que os eleitores impedidos ou ausentes fossem admitidos a participar nas eleições. Depois de, em 1978, o voto por procuração ter sido declarado inconstitucional, a lei eleitoral de 1979 manteve o voto por correspondência para os membros das forças armadas e das forças militarizadas que, no dia da eleição, estivessem impedidos de se deslocar à assembleia ou secção de voto por imperativo do exercício das suas funções, mas essa possibilidade veio a ser revogada. O voto por correspondência só subsiste hoje em relação ao voto dos residentes no estrangeiro, se tiverem previamente manifestado essa opção (Art.º 79.º, n.º 4, da LEAR). e) Voto antecipado
Em 1995, o voto passou a poder ser feito de modo antecipado¸ ou seja, antes do dia marcado para as eleições. Após sucessivos alargamentos, em 2018, o voto antecipado passou a ser admissível para: (i) os eleitores que, por motivo de doença, se encontrem internados ou que previsivelmente venham a estar internados em estabelecimento hospitalar; (ii) os eleitores que estejam presos; (iii) os eleitores deslocados no estrangeiro, por inerência do exercício de funções públicas; (iv) os deslocados no estrangeiro, por inerência do exercício de funções privadas; v) os deslocados no estrangeiro, em representação oficial de seleção nacional, organizada por federação desportiva dotada de estatuto de utilidade pública desportiva; (vi) os estudantes, investigadores, docentes e bolseiros de investigação deslocados no estrangeiro em instituições de ensino superior, unidades de investigação ou equiparadas reconhecidas pelo ministério competente; (vii) os doentes em tratamento no estrangeiro; (viii) os que vivam ou que acompanhem os eleitores mencionados nas alíneas anteriores (Art.º 79.º-B, da LEAR).
O mesmo diploma de 2018 (Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto), ainda introduziu uma nova forma de exercer o direito de voto não presencial em território nacional – o voto antecipado em mobilidade. Esta nova modalidade, mediante a inscrição prévia do eleitor junto da administração eleitoral, passou a admitir todos os eleitores recenseados no território nacional, e não apenas os impossibilitados de comparecer na respetiva assembleia de voto; e a possibilitar ao eleitor a escolha do local onde pretendia exercer o seu direito de sufrágio (Art.º 79-A, da LEAR). f) Voto eletrónico
A defesa do modelo atual de democracia representativa implica um constante aperfeiçoamento do seu fundamento legitimador – as eleições. Com o intuito de melhorar a participação política dos cidadãos na escolha dos seus representantes, em muitos Estados do mundo, como no Brasil, já se adotou o sistema de voto eletrónico ou e-voting presencial, que implica a aplicação das novas tecnologias ao processo eleitoral, substituindo a marca manuscrita num boletim de voto em papel pela marca digital num boletim eletrónico disponibilizado ao eleitor na cabine de voto.
Entre as vantagens do voto eletrónico contam-se a sua maior facilidade para a generalidade dos eleitores, o apuramento quase instantâneo dos resultados eleitorais, a possível descida da abstenção, etc. Sem menosprezo das vantagens da substituição do papel
e caneta por ferramentas eletrónicas de e-voting, existem alguns fatores de risco a ponderar, nomeadamente, a segurança e credibilidade no sistema eletrónico para os eleitores, mas também a preparação da base eleitoral: há dois séculos, os revolucionários vintistas tiveram de enfrentar o problema da iliteracia da população, hoje, a questão coloca-se mais ao nível da “iliteracia digital”, sobretudo nas camadas dos eleitores mais idosos.
Em Portugal já foram realizadas cinco experiências-piloto de e-voting: em 1997, para as eleições autárquicas, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa; em 2001, para as eleições autárquicas, nas freguesias de Campelo (Baião) e Sobral de Monte
Agraço; em 2004, para as eleições ao Parlamento Europeu, nas freguesias de Mirandela (Mirandela), Paranhos (Porto), Mangualde (Viseu), São Bernardo (Aveiro), Sé (Portalegre), Belém (Lisboa), São Sebastião (Setúbal), Salvador (Beja) e Salir (Loulé); em 2005, para as eleições legislativas, nas freguesias de Conceição (Covilhã), Santa Iria da Azóia (Loures), São Sebastião da Pedreira, Santos-o-Velho e Coração de Jesus (Lisboa); foi também realizada a experiência de votação não presencial para eleitores recenseados no estrangeiro, mediante a disponibilização de uma plataforma de voto por Internet; em 2019, para as eleições ao Parlamento Europeu, no círculo eleitoral de Évora, com a existência de urnas informáticas, mas mantendo as urnas de voto tradicional. g) Voto em contexto de pandemia A situação pandémica provocada pela doença covid-19 implicou a necessidade de uma rápida adaptação das normas relativas ao exercício do direito de voto. A solução encontrada para aqueles que estivessem impedidos de se deslocar à assembleia de voto foi uma espécie de votação domiciliária através de urna móvel, em que a urna de votos se deslocou ao domicílio de cada eleitor e às estruturas residenciais (votação semelhante foi adotada, por exemplo, na Croácia, República Checa, Lituânia, Moldova, Montenegro, Mianmar, Macedónia do Norte, Coreia do Sul e Roménia; em Singapura, nas eleições parlamentares de 2020, equipas móveis de votação levaram urnas aos cidadãos acabados de chegar do estrangeiro e que estavam confinados em quartos de hotel).
Além das indispensáveis medidas de máxima segurança sanitária – por exemplo, proteção dos agentes eleitorais e desinfeção e quarentena dos sobrescritos com os votos –, esta modalidade de voto assumiu contornos completamente inéditos, sobretudo, porque a entrega e recolha dos boletins de votos foi feita “porta a porta” (ao domicílio de cada eleitor), por equipas lideradas pelo presidente da câmara municipal ou seu substituto.
Conclusão
1.º período (Séc. XIII ao Séc. XIX) – no parlamentarismo antigo (séculos XIII-XVII) e nas primeiras eleições constituintes portuguesas (1820-1821), os eleitores pronunciavam oralmente a sua intenção de voto perante a mesa eleitoral, que registava os votos e, no final do ato eleitoral, apurava os candidatos eleitos (sistema de voto oral à mesa);
2.º período (1822 a 1974) – a exigência constitucional da confidencialidade do sufrágio determinou a substituição do voto oral pelo voto escrito, que era previamente redigido pelo próprio eleitor ou por alguém a seu pedido, ou distribuído por grupos de cidadãos eleitores, comissões eleitorais ou partidos políticos (sistema de voto por lista prévia); 3.º período (1974 a 2024) – a revolução eleitoral de 1974/76, cujo meio século se comemora este ano, virou mais uma página na história do voto, introduzindo em Portugal o chamado “voto australiano”, que consiste no voto in camera, na assembleia de voto, mediante boletins de voto oficiais disponibilizados pelos serviços eleitorais, e optou pelo voto em lista partidária bloqueada, (sistema de voto bloqueado em lista partidária).
A revolução constitucional-eleitoral de 1974/76 não se limitou a consagrar, pela primeira vez, o sufrágio universal (baixando a idade eleitoral para os 18 anos), mas também procurou facultar a toda a gente – incluindo os presos, os invisuais, os doentes e outros impedidos, os ausentes, etc. – a possibilidade de exercer efetivamente o seu direito de sufrágio, através de formas especiais de voto, como o voto por correspondência, o voto acompanhado, o voto antecipado, o voto em mobilidade, etc.
Para além das múltiplas propostas de alteração do sistema eleitoral vigente (quanto ao número de deputados, círculos eleitorais, fórmula eleitoral, etc.), também tem havido, ao longo dos anos, várias propostas quanto ao modo de votar, do voto eletrónico in camera ao voto remoto via Internet. Mas se o primeiro já teve vários ensaios bem-sucedidos, o voto via Internet continua a gerar algum ceticismo e não tem recolhido os apoios políticos suficientes, dados os riscos que implica para a segurança das operações eleitorais e para a confiança no sistema eleitoral.