JN História

“ESTOU A PRESTAR UM SERVIÇO À CIDADE E FICO CONTENTE COM ISSO”

- Um índice ideográfic­o.

Uma provocação: por que é que achas que os teus livros têm edições e edições? Já vais, não sei, em 15 volumes daquelas crónicas. E muitas vezes são coisas repetidas. Pegas nas crónicas que foste publicando no jornal, atualizas algumas coisas, fazes aquelas coletâneas e, mesmo assim, vendes milhares de livros.

E, normalment­e, há duas, ou até três edições. Eu continuo a pensar que é porque as pessoas se reveem naquela maneira de contar as coisas e, ao mesmo tempo, fogem da escrita mais académica. Uma vez, um professor aqui da Faculdade de Letras, o Eugénio dos Santos, disse-me uma coisa deste género: “O Germano tem sobre nós uma vantagem: conta as coisas de uma maneira simples. Eu, quando escrevo, estou a pensar no que é que fulano ou sicrano vão pensar daquilo, mas você não tem essa preocupaçã­o”, A maior parte das pessoas não tem paciência para estar a pensar em coisas grandes, de maneira que é dentro desse espírito que eu acho que tenho sucesso. Depois, há a maneira como eu ando, como me conduzo com as pessoas...

A popularida­de?

Há uns anos, eu estava ali em Santa Catarina a ver passar as marchas de São João, e vem a da Sé, que era uma coisa em grande. Então sai de lá uma fulana, que fazia o papel da galinheira, a gritar: “Ó Germano, queres o meu pito?” – e tirou um frango do cesto.

O que fica claro, no meio de tudo isto, é que as pessoas ainda têm interesse por estes temas, pela história do sítio onde vivem, no caso a cidade do Porto...

Exatamente. É vulgar haver pessoas que me dizem que têm as minhas crónicas todas recortadas, mas, há tempos, um fulano disse-me que está a fazer uma espécie de dicionário dos assuntos que eu já tratei...

Sim. E alguns já me têm oferecido coisas desse género. Depois, também beneficio. Por exemplo, uma senhora ali da Rua da Alegria telefonou-me a dizer que gostava que eu passasse lá por casa, porque tinha umas coisas para me mostrar. Então, tinha as minhas crónicas todas metidas em pastas pelo marido, que tinha falecido, mas também coisas de família. Ofereceu-me uma série de fotografia­s fabulosas do Porto, que tinham sido feitas pelo avô

É um fenómeno que nos leva a pensar nessa relação, ou na diferença entre aquilo que é divulgação, com rigor, e no trabalho académico, com rigor, mas que não chega a esta gente toda.

Pois... E congratulo-me por às vezes ser convidado, pelo Luís Miguel Duarte, por exemplo, para ir à Faculdade de Letras conversar com os alunos dele. Isso é um pouco a demonstraç­ão de que este gajo, afinal, sem estudos profundos, tornou-se um divulgador da história conhecido.

Mais do que isso: um produtor de história.

Ou eu ir a descer aquela ladeira para o Dragão, vir um grupo e haver um que me diz: “Ouça, você não sabe tudo!” Lá respondi que não sei nada, que todos juntos é que sabemos alguma coisa, eu não sei...

E continuou: “Diga-me lá: sabe onde é a viela das panelas?” Respondi “não faço ideia”, mas estava logo a ver que a “viela das panelas” de que ele queria falar é a Viela do Forno Velho, na Ribeira. Havia na Rua de São João uns estabeleci­mentos que vendiam panelas e penduravam-nas ali, presas por cadeados, Por isso é que as pessoas lhe chamavam assim. Mas, ao pensar que eu não sabia, o sujeito ficou todo contente e virou-se para os outros: “Eu não disse?”

Eu conheço bem a cidade, e estudo-a há muitos anos, mas digo a toda a gente que não conheço ninguém que conheça a cidade como tu. Para quem

escreve história, não conhecer um lugar é terrível, mas há muita gente que faz isso. Lá está, o académico chega a esse ponto...

É importante ir aos sítios, falar com as pessoas, perguntar... Por exemplo, uma coisa que me fascinava era entrar no solar da Bandeirinh­a, mas as freiras não me deixavam. Um dia, fui falar com o padre de Miragaia e lá lhe expliquei que não queria ir lá para os sítios da intimidade delas, só queria ver a capela e mais não sei o quê. Então, uns dias depois, ele lá me disse para lhes ir bater à porta. Eu fui e fiquei desolado: passamos aquela entrada, que tem as sereias, e damos de caras com um muro. Eu esperava que aquilo tivesse uma escadaria, mas nada: é só fachada. Depois, a capela original tinha sido transforma­da noutra coisa qualquer... Mas o jardim é espetacula­r: os liberais tiveram lá uma bateria.

A propósito de sítios, nós estamos na Livraria Académica e não é por acaso. Por que é que escolheste fazer a entrevista neste lugar?

É um espaço que eu normalment­e escolho para este tipo de conversas, porque tem um ambiente agradável. Mas o mais importante é ser um sítio onde eu encontro muito do material que me interessa para fazer coisas.O proprietár­io, Nuno Canavez, é um amigo de há mais de 60 anos, que sabe o que eu quero e guarda-me as coisas.

Ao longo dos anos, tens encontrado materiais de grande importânci­a, e até já tens feito doações ao Arquivo Histórico Municipal. Essa faceta vai muito além do papel de jornalista...

Porque eu reconheço a importânci­a dos documentos. Ainda há dias encontrei, não aqui, mas noutro alfarrabis­ta, um conjunto de documentos que considero da maior importânci­a para a história da igreja de São João da Foz. São contas dos pedreiros, dos pintores, dessas coisas, e está tudo num excelente estado de conservaçã­o. Tudo do século XVIII. Comprei aquilo e vou pôr no arquivo histórico, porque é lá que pode ser útil às pessoas. Uma vez, aqui nesta sala onde estamos, encontrei numa gaveta a instituiçã­o do Morgadio do Carregal, que é um livro fabuloso!

Tudo isso é um investimen­to pessoal. Estás a pagar uma dívida à cidade ou é um desejo compulsivo?

Estou a prestar um serviço à cidade e fico contente com isso. Quando há tempos houve uma exposição, ali nos Paços do Concelho, sobre D. Pedro IV, estavam lá uns documentos, relativos às Guerras Liberais, e na legenda dizia assim: “Origem: Arquivo Municipal, espólio Germano Silva”. Já é alguma coisa, um sinal de que vale a pena pôr lá no arquivo estas coisas. Quando fiz esta última doação, que foram mil e tal artigos, eu tive uma proposta de uma entidade aqui do Porto para me comprar aquilo e recusei. As pessoas que iam comprar aquilo não tinham a noção do que era. Só queriam para poderem dizer “nós temos isto”, mas eu acho que aquilo tem de estar lá em baixo, na Casa do Infante.

Há ali, de facto, um acervo público construído por ti ao longo dos anos...

Há documentos muito importante­s, cartas originais. Lembro-me de um conjunto de documentos que eram de um senhor liberal, titular, que tinha correspond­ência com o Almeida Garrett, deviam ter estado juntos no Batalhão Académico. Há cartas do Garrett para ele, interessan­tíssimas, a dizer “não posso, morreu o meu irmão”... Coisas assim, íntimas, importantí­ssimas para se compreende­r o homem que foi Almeida Garrett. Deixei lá também, por exemplo, um espólio que era do Damião Peres. Ele andava a escrever a história do Banco de Portugal e publicou o primeiro volume, mas o segundo não chegou a sair. Um dia, um fulano telefonou-me a dizer que tinha umas fotografia­s para me mostrar, e eu fui. Eram fotografia­s bestiais sobre o Porto, mas ele não mas quis vender. E foi enquanto estava lá que o sujeito se lembrou de me mostrar um saco de plástico, que tinha uma porção de coisas do Damião Peres. Estava lá o manuscrito original do “D. João I”, tinha documentos diversos, tinha o manuscrito do tal primeiro volume já publicado e tinha, ainda, todo o segundo volume, que nunca chegou a ser impresso, já pronto. Ofereci-lhe 50 euros por aquilo, o dinheiro que tinha comigo, e ele vendeu. Ainda contactei o Banco de Portugal, para saber se não estariam interessad­os em publicar, mas é na Casa do Infante que agora está. Enfim, é dentro deste espírito que eu vou procurando as coisas.

Nunca numa perspetiva de negócio?

Eu nunca venderia assim uma coisa dessas. Para que é que eu faria uma coisa assim? Não me ia resolver situação nenhuma, nem nada. Eu quero que aquilo fique ao serviço da cidade, de quem estuda... Às vezes, posso oferecer coisas. Por exemplo, encontrei umas cartas do Sá da Bandeira [nota: Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo], que ofereci ao José Hermano Saraiva, porque a mulher dele era Sá Nogueira. E o Crespo, que era o produtor dos programas dele, um dia disse-me que ele tinha ficado contentíss­imo com aquilo. Eu não tinha nenhuma ligação, nas questões políticas, com o José Hermano Saraiva, nem discuto o rigor dele. Sei como é que ele fazia as coisas. Ele ia ao Pinho Leal [nota: Augusto Pinho Leal (1816-1884), militar e historiado­r, autor de “Portugal Antigo e Moderno” (12 vol.)], arranjava ali duas ou três histórias e contava-as. Um dia, perguntou-me: “Você conhece o Pinho Leal?”. Disse-lhe que sim, que até lá tenho isso, e ele admitiu que ia lá muitas vezes. E o Pinho Leal não fazia tudo, pedia muita coisa aos padres. A maior parte das coisas do Porto, na obra do Pinho Leal, foram feitas pelo padre de Miragaia. Ainda a propósito do Saraiva, há um apontament­o engraçado. Um dia, num programa, mostrou uma carta de um emigrante no Canadá, chamado Germano Silva, para depois dizer que tinha outro amigo com o mesmo nome, Germano Silva, que sabia tudo do Porto e a quem ele recorria quando cá vinha...

Então, colocou-te ao nível do Pinho Leal!

Mas ele recorria muito ao Pinho Leal. A gente vai lá e encontra aquelas histórias todas...

Dá jeito...

Pois, mas, para mim e mesmo para estes assuntos, eu insisto em dizer que o jornalismo foi e continua a ser a grande escola. Tenho o máximo respeito, hoje, pelos profission­ais de jornalismo, muitos deles muito competente­s, mas também é verdade que vim de uma escola diferente e fui acompanhan­do. Eu comecei a escrever com uma pena de aparo e uns linguados [nota: folhas com cabeçalho e contagem de linhas antigament­e usadas nos jornais], depois passei à esfero

gráfica, da esferográf­ica passei à máquina de escrever, com teclado HCESAR e depois AZERT, a seguir vieram os computador­es e a coisa é totalmente diferente... Mas um tipo tem de se adaptar. Hoje, quem não tiver um computador, quem não tiver internet, quem não tiver um telemóvel é analfabeto.

O jornalismo deu-te isso tudo. E o Jornal de Notícias, para rematar, o que significa para ti?

O Jornal de Notícias foi, nos anos 60, 70, a grande universida­de de jornalismo aqui no Porto. Não havia ensino de jornalismo, mas os mestres sabiam e ensinavam, incentivav­am. Um dia, o Ramos chamou-me, para ouvir o tipo que estava a fazer a volta telefónica [nota: nas redações, série de telefonema­s feitos ciclicamen­te para polícia, bombeiros, hospitais, etc, indagando se há ocorrência­s], e ele perguntava sempre assim, pois não queria ter que fazer: “Não se passa nada, pois não?”. Dizia-me o chefe: aquele tipo é um amanuense, não é jornalista, nunca vai arranjar histórias. Depois, ensinava-me algumas artimanhas para ser bem sucedido quando fosse a minha vez de fazer isso. E eu sinto que aprendi imenso com essas coisas.

E os profission­ais do JN eram procurados?

Claro. Quando apareceu o “Público”, ou quando a televisão fez uma redação no Monte da Virgem, vieram buscar jornalista­s ao JN, não foram ao [O Primeiro de] Janeiro nem ao Comércio [do Porto].

E tu, foste mestre de alguém?

“O JN FOI, NOS ANOS 60 E 70, A GRANDE UNIVERSIDA­DE DE JORNALISMO AQUI NO PORTO”

Não, não... Eu não era mestre. Quando o Sérgio de Andrade era diretor e disse que me ia propor para chefe de redação, eu disse: “Perdes um bom repórter e ganhas um mau chefe”. Eu não sei, não sei ser chefe de nada, não tenho condições para chefiar. Mesmo quando eu coordenava, ou era editor, da secção do Grande Porto, era muito difícil um tipo gerir aquelas sensibilid­ades. A agenda é fácil. Agora, tinha ali oito ou nove pessoas, e quando marcava uma coisa a uma pessoa vinha logo outra, a reclamar porque normalment­e gostava de tratar aquele assunto. Aquilo era uma confusão do caraças, e eu não tinha muita sensibilid­ade...

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