01 CONSTRUINDO A MAIOR BASE DE DADOS DA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA
Pensar antes de fazer
Ainda pode ser admirada em Santarém, na Casa-Museu Anselmo Braamcamp Freire, a secretária em que trabalhava o autor, historiador erudito de enciclopédico saber. A peça é a coisificação coeva de uma base de dados: milhares de fichinhas distribuídas por muitas gavetas, organizadas por temas, e com sistema de remissivas entre si. Já hoje, podemos ter na nossa secretária, sem que sintamos sequer que ocupam espaço, múltiplas bases de dados digitais, em que se pode armazenar uma quantidade de informação milhares de vezes superior à da secretária de Anselmo Braamcamp Freire. E no entanto…
O fascínio por tal possibilidade tem-nos feito esquecer questões fundamentais, que é preciso colocar antes de começar a construir uma base de dados. A tal aconselham o trabalho que dá, o caminho sem retorno em que se entra e, sobretudo, o produto final. O que queremos, como historiadores, fornecer aos utilizadores da nossa base de dados: por detrás de uma fachada moderna, um produto opaco, um produto erróneo e/ou enganador, uma junção de materiais cheia de incongruências? Cuja recuperação seja feita de forma igualmente amadora, levando a conjuntos de dados que não tenham em conta a estrutura e as lacunas da informação? Ou queremos, antes, uma reorganização da informação feita com o máximo cuidado, inserida em estruturas o mais possível universais e normalizadas, acompanhada de instruções e guias que tem que ser “obrigatório ler” (mas antes, fazê-los...)? Acresce, no tempo presente, depois de décadas a criar milhões de bases de dados, um produto que tenha garantia de continuidade e de durabilidade, tanto ao nível dos conteúdos científicos como da forma informática.
Não há só questões “técnicas” nem tão-pouco “humanidades digitais”. Alguma teoria de bases de dados
históricas vinda da tarimba do historiador
Qualquer junção de “fontes” obedece a critérios e, quanto maior for, mais precisa de regras. Ser transparente quanto aos primeiros e profissional quanto às segundas é o mínimo que se pede. Todos conhecemos a distorção histórica das edições de documentos feitas em comemorações históricas ou, mais grave ainda, os preconceitos ideológicos que afinal contaminaram grandes monumentos de erudição. Porém, o lustre técnico, a tentação de imitar as “ciências exatas” e, mais do que tudo, o efeito mágico das grandes quantidades de materiais que as bases de dados vieram permitir, bem como “fazer a magia funcionar” através de “queries”, leva-nos por vezes esquecer que as condições de base, para serem fiáveis e úteis ao progresso do conhecimento, são a boa conceção do levantamento documental e uma estruturação deste a partir de princípios corretos do ponto de vista da ciência histórica. Afinal, as velhas “heurística” e “crítica”, que podem e devem ser repensadas, mas não apenas a nível de fachada.
É possível, desde logo, arrumar ideias e evitar enviesamentos se considerarmos que – ao contrário do que o nome indica - os materiais das bases não são propriamente “dados”. Vários teóricos das ciências sociais têm vindo a insistir em tal, num caminho que tem ultimamente convergido com a reflexão sobre as “fontes históricas” vistas como produtos socialmente construídos. Uma primeira reconfiguração conferiu-lhes o carácter de “capturados” (de “dati” a “capti”, no plural latino, ou, em inglês, “from data to capta”. Bruno Latour deu um passo em frente e propôs “obtidos” (“sublati”), termo que reforça a natureza construída dos materiais que se coloca à disposição dos investigadores. Construída pelos próprios cientistas, claro! Desde a conceção do inquérito; e, na verdade, se este tiver sido corretamente idealizado, desde a concetualização do problema historiográfico. Problema e inquérito estes que devem ser a primeira etapa de consulta da base de “obtidos”, sob pena de esta se tornar, para o utilizador pouco informado, realmente uma base de “dados” – mas, com tanta frequência, afinal presentes envenenados. Ecoa clara a sugestão de E. Anheim, na esteira de Marc Bloch, quanto ao maior ganho da “interdisciplinaridade” entre história e antropologia: a prévia e transparente comunicação aos utilizadores dos protocolos de construção da recolha e da organização dos materiais com os quais se construiu a “síntese”.
Nesta linha de ideias, a base de dados do projeto VINCULUM não se quer tal, mas sim almeja ser uma “base de obtidos”. Uma metabase e não uma metafonte. O que não é fácil, quando se alcança, em final de Janeiro de 2024, 6900 vínculos, 23 900 registos de autoridade pessoais; 25 950 documentos.
Como “obtivemos” os materiais: um percurso de reunião e de tratamento da informação A CONSTRUÇÃO DO MAPA DE LEVANTAMENTO
A base de dados foi concebida como um produto de enquadramento teórico e não técnico. Partiu-se da reconstrução das instituições produtoras de informação – da Coroa, da Igreja e do vínculo – e estudou-se o meio de transmissão da informação produzida (tipologias de documentos).
De seguida, localizaram-se os arquivos portugueses onde se encontrava a informação e procedeu-se ao levantamento por fundos arquivísticos, dada a uniformidade das informações em cada um deles.
DO ESTILHAÇAMENTO ARQUIVÍSTICO À RECONSTITUIÇÃO DOS ARQUIVOS DOS VÍNCULOS
Esta operação incorporava a noção de que os fundos arquivísticos em questão tinham sido alvo de profundas transformações aquando do final do Antigo Regime – processo que, recorde-se, durou um século, na sua primeira fase. As instituições ou foram simplesmente extintas, e os seus arquivos, deitados fora ou enfiados em instalações precárias, ou foram sendo transformadas em diferentes serviços, com algum aproveitamento dos arquivos, e disposição do resto; ou, no caso de alguns arquivos de família, foram conservados de forma afetiva, retransformados e, a certa altura, sobretudo, vendidos. A palavra “estilhaçamento” será a que melhor reproduz o que sucedeu a uma informação que não era histórica, mas viva, e que, na melhor das hipóteses, se tornou histórica (mas demasiado fossilizada).
Para recuperar o carácter vivo das informações – que no caso dos vínculos é essencial à sua compreensão como entidade corporativa com agência institucional (o conceito do projeto), procedeu-se a uma especifica reorganização da informação recolhida: ela foi reconduzida ao vínculo com instituição produtora, mesmo se apenas existisse em cópias de outras instituições. Este último caso era, aliás, o mais numeroso, de longe, dada a rarefação dos arquivos dos vínculos na própria vida de muitos, em função da sua muito menor estruturação institucional, em relação à Coroa e à Igreja, e dado o desaparecimento dos arquivos, no caso dos que tinham subsistido até à extinção.