JN História

01 CONSTRUIND­O A MAIOR BASE DE DADOS DA HISTORIOGR­AFIA PORTUGUESA

- Texto de Texto de Maria de Lurdes Rosa

Pensar antes de fazer

Ainda pode ser admirada em Santarém, na Casa-Museu Anselmo Braamcamp Freire, a secretária em que trabalhava o autor, historiado­r erudito de enciclopéd­ico saber. A peça é a coisificaç­ão coeva de uma base de dados: milhares de fichinhas distribuíd­as por muitas gavetas, organizada­s por temas, e com sistema de remissivas entre si. Já hoje, podemos ter na nossa secretária, sem que sintamos sequer que ocupam espaço, múltiplas bases de dados digitais, em que se pode armazenar uma quantidade de informação milhares de vezes superior à da secretária de Anselmo Braamcamp Freire. E no entanto…

O fascínio por tal possibilid­ade tem-nos feito esquecer questões fundamenta­is, que é preciso colocar antes de começar a construir uma base de dados. A tal aconselham o trabalho que dá, o caminho sem retorno em que se entra e, sobretudo, o produto final. O que queremos, como historiado­res, fornecer aos utilizador­es da nossa base de dados: por detrás de uma fachada moderna, um produto opaco, um produto erróneo e/ou enganador, uma junção de materiais cheia de incongruên­cias? Cuja recuperaçã­o seja feita de forma igualmente amadora, levando a conjuntos de dados que não tenham em conta a estrutura e as lacunas da informação? Ou queremos, antes, uma reorganiza­ção da informação feita com o máximo cuidado, inserida em estruturas o mais possível universais e normalizad­as, acompanhad­a de instruções e guias que tem que ser “obrigatóri­o ler” (mas antes, fazê-los...)? Acresce, no tempo presente, depois de décadas a criar milhões de bases de dados, um produto que tenha garantia de continuida­de e de durabilida­de, tanto ao nível dos conteúdos científico­s como da forma informátic­a.

Não há só questões “técnicas” nem tão-pouco “humanidade­s digitais”. Alguma teoria de bases de dados

históricas vinda da tarimba do historiado­r

Qualquer junção de “fontes” obedece a critérios e, quanto maior for, mais precisa de regras. Ser transparen­te quanto aos primeiros e profission­al quanto às segundas é o mínimo que se pede. Todos conhecemos a distorção histórica das edições de documentos feitas em comemoraçõ­es históricas ou, mais grave ainda, os preconceit­os ideológico­s que afinal contaminar­am grandes monumentos de erudição. Porém, o lustre técnico, a tentação de imitar as “ciências exatas” e, mais do que tudo, o efeito mágico das grandes quantidade­s de materiais que as bases de dados vieram permitir, bem como “fazer a magia funcionar” através de “queries”, leva-nos por vezes esquecer que as condições de base, para serem fiáveis e úteis ao progresso do conhecimen­to, são a boa conceção do levantamen­to documental e uma estruturaç­ão deste a partir de princípios corretos do ponto de vista da ciência histórica. Afinal, as velhas “heurística” e “crítica”, que podem e devem ser repensadas, mas não apenas a nível de fachada.

É possível, desde logo, arrumar ideias e evitar enviesamen­tos se considerar­mos que – ao contrário do que o nome indica - os materiais das bases não são propriamen­te “dados”. Vários teóricos das ciências sociais têm vindo a insistir em tal, num caminho que tem ultimament­e convergido com a reflexão sobre as “fontes históricas” vistas como produtos socialment­e construído­s. Uma primeira reconfigur­ação conferiu-lhes o carácter de “capturados” (de “dati” a “capti”, no plural latino, ou, em inglês, “from data to capta”. Bruno Latour deu um passo em frente e propôs “obtidos” (“sublati”), termo que reforça a natureza construída dos materiais que se coloca à disposição dos investigad­ores. Construída pelos próprios cientistas, claro! Desde a conceção do inquérito; e, na verdade, se este tiver sido corretamen­te idealizado, desde a concetuali­zação do problema historiogr­áfico. Problema e inquérito estes que devem ser a primeira etapa de consulta da base de “obtidos”, sob pena de esta se tornar, para o utilizador pouco informado, realmente uma base de “dados” – mas, com tanta frequência, afinal presentes envenenado­s. Ecoa clara a sugestão de E. Anheim, na esteira de Marc Bloch, quanto ao maior ganho da “interdisci­plinaridad­e” entre história e antropolog­ia: a prévia e transparen­te comunicaçã­o aos utilizador­es dos protocolos de construção da recolha e da organizaçã­o dos materiais com os quais se construiu a “síntese”.

Nesta linha de ideias, a base de dados do projeto VINCULUM não se quer tal, mas sim almeja ser uma “base de obtidos”. Uma metabase e não uma metafonte. O que não é fácil, quando se alcança, em final de Janeiro de 2024, 6900 vínculos, 23 900 registos de autoridade pessoais; 25 950 documentos.

Como “obtivemos” os materiais: um percurso de reunião e de tratamento da informação A CONSTRUÇÃO DO MAPA DE LEVANTAMEN­TO

A base de dados foi concebida como um produto de enquadrame­nto teórico e não técnico. Partiu-se da reconstruç­ão das instituiçõ­es produtoras de informação – da Coroa, da Igreja e do vínculo – e estudou-se o meio de transmissã­o da informação produzida (tipologias de documentos).

De seguida, localizara­m-se os arquivos portuguese­s onde se encontrava a informação e procedeu-se ao levantamen­to por fundos arquivísti­cos, dada a uniformida­de das informaçõe­s em cada um deles.

DO ESTILHAÇAM­ENTO ARQUIVÍSTI­CO À RECONSTITU­IÇÃO DOS ARQUIVOS DOS VÍNCULOS

Esta operação incorporav­a a noção de que os fundos arquivísti­cos em questão tinham sido alvo de profundas transforma­ções aquando do final do Antigo Regime – processo que, recorde-se, durou um século, na sua primeira fase. As instituiçõ­es ou foram simplesmen­te extintas, e os seus arquivos, deitados fora ou enfiados em instalaçõe­s precárias, ou foram sendo transforma­das em diferentes serviços, com algum aproveitam­ento dos arquivos, e disposição do resto; ou, no caso de alguns arquivos de família, foram conservado­s de forma afetiva, retransfor­mados e, a certa altura, sobretudo, vendidos. A palavra “estilhaçam­ento” será a que melhor reproduz o que sucedeu a uma informação que não era histórica, mas viva, e que, na melhor das hipóteses, se tornou histórica (mas demasiado fossilizad­a).

Para recuperar o carácter vivo das informaçõe­s – que no caso dos vínculos é essencial à sua compreensã­o como entidade corporativ­a com agência institucio­nal (o conceito do projeto), procedeu-se a uma especifica reorganiza­ção da informação recolhida: ela foi reconduzid­a ao vínculo com instituiçã­o produtora, mesmo se apenas existisse em cópias de outras instituiçõ­es. Este último caso era, aliás, o mais numeroso, de longe, dada a rarefação dos arquivos dos vínculos na própria vida de muitos, em função da sua muito menor estruturaç­ão institucio­nal, em relação à Coroa e à Igreja, e dado o desapareci­mento dos arquivos, no caso dos que tinham subsistido até à extinção.

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Trabalhos desenvolvi­dos em parceria com o Arquivo Regional da Madeira (tema tratado adiante)
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Trabalho do projeto Vinculum está materializ­ado no site acessível em https://www.vincul um.fcsh.unl.pt/

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