JN História

03 O TESTEMUNHO DOS JOVENS INVESTIGAD­ORES

- Texto de Ana Mafalda Lopes, Fábio Duarte e Maria Teresa Oliveira

de centenas de correções efetuadas semanalmen­te, num processo de diálogo escrito, sempre registado em instrument­os próprios, conservado­s na drive do projeto.

A validação dos dados online beneficia também do contributo dos investigad­ores associados do projeto. Esta colaboraçã­o constitui-se como um dos aspetos mais importante­s do processo de revisão de informação e de readequaçã­o da funcionali­dade da própria base de dados. As pesquisas livres permitem identifica­r e até antecipar possíveis problemas, propor, desenvolve­r e testar soluções, num esforço de melhoria contínua que prevê, acima de tudo, a disponibil­ização de um instrument­o de trabalho que faculta metainform­ação descritiva de forma estruturad­a e confiável.

Garantir perenidade do acesso

Um dos principais objetivos do projeto é garantir o acesso continuado à informação digital recolhida e estruturad­a em ambiente seguro, autêntico e confiável, por parte da comunidade nacional e internacio­nal, para além do tempo de execução e de financiame­nto do VINCULUM.

A base de dados construída com recurso ao AtoM terá como ferramenta de preservaçã­o digital o software Archivemat­ica, garantia de que a metainform­ação descritiva e os objetos digitais associados permanecer­ão autênticos e confiáveis e, sobretudo, acessíveis e pesquisáve­is no longo prazo. Também se pretende que o Vinculum Informatio­n System Guide, anexo à base, o site principal do projeto e os dados de investigaç­ão, se constituam como fontes de informação complement­ares, a serem preservado­s e disponibil­izados, segundo as melhores práticas de preservaçã­o digital. Facultar-se-á assim ao utilizador a compreensã­o dos caminhos seguidos e das opções tomadas, podendo-se contribuir, também, para novos projetos e novos caminhos de investigaç­ão.

O quotidiano entre papéis

A investigaç­ão histórica pode parecer misteriosa a quem não está familiariz­ado com ela. Os arquivos tendem a ser vistos como espaços paralelos à realidade, locais escuros repletos de fantasmas que vão sacudindo poeiras de velhas memórias. Para nós, são espaços de confronto com gentes, práticas e mentalidad­es soterradas pela velocidade do tempo, subitament­e avivadas nas nossas conversas e dúvidas; e tornaram-se, com o projeto VINCULUM, locais de estudo e reflexão sobre o mundo dos morgadios e capelas.

O Arquivo Nacional da Torre do Tombo tem sido a nossa casa desde novembro de 2022. Semana após semana, dedicámo-nos a descrever e analiria, sar os 167 tombos de capelas do Hospital de S. José, nos quais estão copiados documentos referentes à fundação e administra­ção de vínculos nas igrejas e conventos de Lisboa e arredores. Empresa gigantesca, a produção destes tombos data do início da década de 1750, inserindo-se numa reorganiza­ção do arquivo da Provedoria das Capelas de Lisboa, órgão que superinten­dia o modo como aquelas eram geridas. A par desses livros, foram consultado­s tombos de capelas de conventos em Lisboa, e uma variedade de outra documentaç­ão, para terminarmo­s nos arquivos de família.

Para enfrentarm­os este labirinto documental, têm sido essenciais os conhecimen­tos adquiridos nas áreas da históda paleografi­a e da diplomátic­a. O domínio destas duas últimas ciências, que estudam as escritas antigas e a estrutura formal dos documentos, tem-nos permitido navegar com alguma rapidez entre várias páginas, até alcançarmo­s as informaçõe­s pretendida­s.

Alimentand­o uma base em cresciment­o veloz

Cada documento relacionad­o com a instituiçã­o ou administra­ção de vínculos anteriores ao século XVIII é devidament­e resumido e registado numa tabela de recolha em Excel. A partir dela, selecionam­os o que será inserido na base de dados e elaboramos sumários documentai­s em inglês. Seguimos uma matriz de preenchime­nto durante a inserção, o que contribui para a uniformiza­ção dos conteúdos da base. A duração deste processo varia em função do grau de complexida­de dos documentos disponívei­s: não é igual depararmo-nos com testamento­s em que se referem as cláusulas sucessória­s e os encargos pios instituído­s em verbas incompleta­s, onde as intenções dos agentes estão parcialmen­te omissas, ou com sentenças extensas e processos judiciais intrincado­s. A nossa capacidade de leitura e de interpreta­ção das fontes é sempre posta à prova.

Todo este procedimen­to complexifi­ca-se quando nos deparamos com lapsos nas cópias dos documentos, levando, muitas vezes, a que tenhamos de recorrer a outras fontes e bibliograf­ia para identifica­r a natureza do erro.

Em média, cada um de nós insere por semana dez vínculos, a que podem correspond­er várias dezenas de documentos e registos de indivíduos produtores, não contando com edições feitas, amiúde, a registos já criados. No último ano, inserimos cerca de dois mil novos vínculos, o que se traduziu na criação de milhares de registos de documentos e pessoas!

Trabalho de bastidores

Paralelame­nte à recolha no arquivo,

nos bastidores outro trabalho, que visa auxiliar os utilizador­es da base e permitir o acesso a todas as tarefas que precederam a introdução dos vínculos. O surgimento de dúvidas na recolha e interpreta­ção documental obriga-nos a formular questões e a esperar por respostas da coordenado­ra do projeto, ficando todo o processo registado para posterior justificaç­ão das decisões tomadas. A documentaç­ão sumariada que não é inserida na base é anotada em fichas de Excel específica­s. Todas as sextas-feiras enviamos relatórios do trabalho semanal que são revistos por quem corrige os registos inseridos da base, de forma a garantir que não se propagam erros e que a boa qualidade do trabalho se mantém.

Dados fora da base: novos contributo­s para as ciências

Quando se sumariam documentos numa base de dados, nem sempre é possível traduzir a riqueza de informação com que nos deparamos e manter, ao mesmo tempo, a concisão e o rigor das regras de descrição arquivísti­ca. Para assegurar que alguma dessa riqueza não se perde e que os futuros estudiosos e utilizador­es da base a poderão utilizar, recolhemos excertos em ficheiros de texto, que indexamos tematicame­nte.

Entre os documentos em que abundam excertos curiosos encontram-se os testamento­s. Vislumbran­do a proximidad­e do fim, muitos instituido­res aproveitav­am para fazer um balanço da sua vida: lembravam parentes e amigos, desavenças e tragédias famidesenv­olve-se liares, deixavam conselhos e faziam confissões... No mesmo testamento em que fundava um vínculo, um testador confessava ter feito “travessura­s” às suas três mulheres. Numa situação análoga, outro testador declarava que, “levado pelas criadas”, assassinar­a a esposa numa crise de ciúmes! Em doações ou contratos de instituiçã­o de capelas, podem, ainda, surgir detalhadas descrições de objetos do quotidiano, de sumptuosas capelas e de numerosas propriedad­es.

Vários dos excertos documentai­s que temos compilado deverão ficar reunidos numa antologia de fontes, que iremos preparar com o intuito de fornecer uma nova ferramenta a alunos e investigad­ores na área das ciências sociais.

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Página anterior: o antes e o depois do “Livro da Fazenda do Senhor Conde Meirinho-mor”, de 1588
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Teresa e Fábio, dois dos autores deste artigo, em trabalho de investigaç­ão na Torre do Tombo, em Lisboa
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A equipa analisou detalhadam­ente os 167 tombos de capelas do Hospital de S. José, que há na Torre do Tombo

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