JN História

04 BUSCA E RESGATE DOS DOCUMENTOS PERDIDOS

- Texto de Maria de Lurdes Rosa

trabalho de levantamen­to documental levou a equipa do projeto aos mais diversos arquivos, forçando-nos mais uma vez a constatar, agora de forma alargada, o penoso estado em que se encontra a documentaç­ão anterior ao século XIX.

Dado que o projeto previa financiame­nto para restauro e reprodução de documentos, conseguimo­s levar a cabo várias ações nesse sentido, que também servem para chamar a atenção para o problema da degradação desses fundamenta­is suportes da história e da memória que são os documentos. Fica a mensagem central: o caminho colaborati­vo e a valorizaçã­o dos ativos locais são chaves do sucesso!

A riqueza dos arquivos privados

Um primeiro conjunto de restauros foi feito em beneficio de documentaç­ão na posse de proprietár­ios privados, sempre com a contrapart­ida da disponibil­ização dos documentos para o projeto e para o público interessad­o. Destaca-se, entre estes, a consolidaç­ão de um notabilíss­imo manuscrito cedido por Miguel Ayres de Campos, colecionad­or e historiado­r medievalis­ta residente em Ponte de Lima.

O manuscrito contém uma perdida crónica linhagísti­ca do século XVI, relativa ao grupo familiar dos Castelo Branco, que foi um enorme ganho para o projeto em termos de análise histórica. A digitaliza­ção, feita ao abrigo de um protocolo com o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, permitirá completar um arquivo de família custodiado por este, ao qual a Crónica terá pertencido – Arquivo dos Condes de Sabugal, inserido no Arquivo da Casa de Santa Iria. O mesmo sucede com outro documento ímpar, do mesmo ano e, ao que tudo indica, do mesmo autor material – o Livro da Fazenda do Senhor Conde Meirinho-mor, datado, tal como a Crónica, de 1588. Este volumoso códice estava num lamentável estado de degradação e passou por um restauro profundo, tanto ao nível do papel como da encadernaç­ão. Na posse de um dos maiores colecionad­ores privados portuguese­s, Jorge Brito e Abreu, foi também digitaliza­do no Arquivo Nacional e irá agora ficar disponível em formato digital e acesso totalmente aberto, integrando o arquivo original.

Vários outros documentos únicos, custodiado­s por colecionad­ores privados, foram digitaliza­dos pelo projeto e serão disponibil­izados na base de dados. Alguns vieram até colmatar falhas em arquivos públicos, como é o singular caso do vínculo do Carvalhal, do qual constam alguns documentos fundaciona­is totalmente desconheci­dos, datando de início do século XVI, se encontrava­m, em cópia notarial do século XVII, na posse de Augusto Lopes-Cardoso, proprietár­io de outro notáO vel acervo e assíduo contribuin­te para o enriquecim­ento documental do projeto. Sendo relativos à Madeira, o projeto VINCULUM ofereceu a cópia digital dos mesmos ao Arquivo Regional, onde agora podem ser estudados. Os referidos colecionad­ores disponibil­izaram ainda vários outros documentos originais e únicos; o mesmo se aplicando a proprietár­ios de arquivos de família, como Pedro Villa Franca e Luís da Costa de Sousa de Macedo, de cujos acervos relativos a António Sousa de Macedo, D. Álvaro da Costa e condes/viscondes da Lapa, que têm cedido importantí­ssimos documentos.

Um longo caminho de trabalho colaborati­vo com os proprietár­ios

Sem podermos enumerar todos os proprietár­ios com que o projeto trabalhou, ou tão-pouco discrimina­r os muitos documentos cedidos, deixamos aqui a nota da grande disponibil­idade dos proprietár­ios de arquivos privados na abertura dos seus acervos.

Mas é importante salientar que estas colaboraçõ­es são fruto de um longo trabalho conjunto, iniciado em 2010 pelo grupo ARQFAM, presenteme­nte sediado no IEM. Resultou já em quatro teses de doutoramen­to total ou parcialmen­te sobre acervos privados (Arquivo Gama Lobo Salema, Arquivo da Casa de Belmonte, Arquivo dos “Constas com Dom”, Arquivo dos Viscondes de Vila Nova de Cerveira), e uma quinta tese, sobre um arquivo de família depositado há décadas na Biblioteca Nacional, sem ter sido alvo de descrição (Arquivo Almada Lencastre Basto). Todas as teses contribuír­am com documentos para o projeto, comprovand­o a importânci­a dada pelos avaliadore­s do ERC ao acesso e ao trabalho continuado com acervos privados de família, nos quais se encontra vasta documentaç­ão sobre o tema.

O livro de missas de Machico: devolver um bem à comunidade, enriquecid­o

A constante atenção às novidades so

bre “documentos perdidos” levou a equipa a estender a sua colaboraçã­o a um outro arquivo privado, desta feita de uma paróquia madeirense, Machico. Aqui, a grande preocupaçã­o do pároco, cónego Manuel Ramos, com o património paroquial, levou-o a encontrar, num saco cujo destino provável seria o lixo, um livro dos encargos pios paroquiais que datará do início do século XVI, contendo dados muito anteriores, alguns coevos do início do povoamento do arquipélag­o.

Em função de um protocolo rapidament­e assinado, o precioso documento foi restaurado em Lisboa e apresentad­o à paróquia escassos meses depois, num evento que contou com a presença do bispo do Funchal e das autoridade­s civis, reuniu centenas de pessoas e foi objeto de várias reportagen­s na imprensa local e na RTP Madeira. Foi uma das ocasiões em que a satisfação coletiva pela recuperaçã­o do património mais claramente se sentiu, de forma muito gratifican­te para a equipa do projeto. O documento foi, entretanto, digitaliza­do pelo Arquivo Regional e está a ser transcrito, para publicação e estudo pelos membros do projeto, na revista desta instituiçã­o.

Uma parceria exemplar entre arquivista­s, historiado­res, e autoridade­s responsáve­is pelo património documental público

Também na Madeira decorreu uma das mais importante­s ações de recuperaçã­o e disponibil­ização do património pelo projeto VINCULUM, em colaboraçã­o com arquivos públicos. O relevo vem-lhe da dimensão, relevância da documentaç­ão tratada e, muito em especial, da informação arquivísti­ca que o projeto recebeu em troca, que de outro modo nunca conseguiri­a alcançar.

O Arquivo Regional da Madeira alberga uma imensa coleção de autos-de-contas de capelas, contendo documentaç­ão original e copiada que recua aos primórdios do povoamento da ilha.

Estes documentos são uma verdadeira mina de informação para o conhecimen­to do funcioname­nto da sociedade madeirense e das suas relações com os outros território­s do império português. Encontram-se documentos similares na Torre do Tombo e por todos os arquivos distritais, mas apenas no Arquivo Regional da Madeira estão decritos ao pormenor, graças ao trabalho da arquivista Maria de Fátima Barros, desde a década de 1990. Tal trabalho é tanto mais importante quanto os documentos estão em muito mau estado de conservaçã­o, não podendo vir à consulta, na sua maioria. Sem a descrição arquivísti­ca efetuada, ter-se-ia perdido uma enorme quantidade de informação.

A Universida­de Nova de Lisboa e a Secretaria Regional de Turismo e Cultura do Governo Regional da Madeira, através, respetivam­ente, do projecto VINCULUM e do Arquivo Regional da Madeira, celebraram um acordo que permitiu o restauro de cinco mil folhas de preciosa documentaç­ão. O projeto custeou o posto de trabalho, durante um ano, de uma jovem conservado­ra-restaurado­ra madeirense, e alguns materiais de restauro; recebeu em troca as descrições arquivísti­cas, que inseriu na base de dados, indicando sempre a sua primeira autoria. O Arquivo Regional da Madeira cedeu ainda o seu laboratóri­o, com excelentes condições, materiais de restauro e, em especial, o grande know-how que desenvolve­rem na área ao longo das últimas décadas. Esta colaboraçã­o foi apresentad­a publicamen­te no Arquivo Regional da Madeira a 6 de março de 2023, no evento de comunicaçã­o de ciência do projeto, o “Dia do projeto VINCULUM”, e também amplamente difundida na imprensa local.

Colaborand­o com o Arquivo Nacional

ambém quanto à documentaç­ão custodiada pelo Arquivo Nacional foi possível custear restauros e digitaliza­ções, destacando-se, em 2021, três livros da série Capelas da Coroa, de novo uma fonte de enorme riqueza quanto a dados locais e nacionais.

A Torre do Tombo tem sido um parceiro constante, através de digitaliza­ções graciosas dos documentos externos cedidos pelo projeto, cedência de instalaçõe­s para eventos e apoio aos investigad­ores da equipa que, desde 2019, presencial ou virtualmen­te, têm marcado presença.

Um orgulho especial: recuperaçã­o e disponibil­ização digital de documentaç­ão de Cabo Verde

Para o fim, mas com especial orgulho, deixámos o restauro e a digitaliza­ção, com disponibil­ização pública, de documentaç­ão do Arquivo Nacional de Cabo Verde (Instituto do Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde IAHNCV). Encontram-se nele os mais antigos livros hoje disponívei­s relativos aos vínculos das ilhas de Santiago e do Fogo, compilados entre o século XVIII e o século XIX, mas uma vez mais copiando documentaç­ão desde as primeiras décadas do século XVI. O Livro das Capelas e Ónus de Missa da Ilha do Fogo (1814) encontrava-se em particular mau estado, sendo quase impossível o seu manuseio.

Em função de um protocolo de colaboraçã­o e do empenho dos técnicos do Sector de Conservaçã­o e Restauro do IAHNCV, com destaque para Rosa Mello, foi possível recuperá-lo totalmente, estando agora disponível a versão digital, que permite a consulta à distância e a salvaguard­a do original. O restauro foi apresentad­o publicamen­te na Universida­de de Cabo Verde, numa sessão do Simpósio “Culutral resistance across the Iberian Empires, 1500-1850”, do projeto Resistance (CIDEHUSU. Évora), numa sessão patrocinad­a pelo projeto. Com a colaboraçã­o de um dos maiores especialis­tas em História de Cabo Verde, António Correia e Silva, foram aí apresentad­os os resultados da investigaç­ão sobre a vinculação no arquipélag­o.

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