JN História

08 “DESEJANDO NÓS QUE NOSSAS MEMÓRIAS SEJAM IMORTAIS”

– CONSTRUIR, TRANSMITIR E PERPETUAR IDENTIDADE­S ATRAVÉS DOS VÍNCULOS

- Texto de Rita Sampaio da Nóvoa

quais podiam contribuir para a ascensão social dos seus parentes, fundando um vínculo de sucessão familiar.

As cidades onde estas elites eram predominan­tes constituem excelentes observatór­ios do recurso à fundação de um morgado ou capela como meio para atingir a ascensão e consolidaç­ão social das linhagens medievais e modernas. Em Évora, Lisboa, Porto e Santarém, por exemplo, os instituido­res com origens populares e/ou burguesas são abundantes e evidenciam consciênci­a do seu percurso social e do poder que granjeavam, sem esquecer os antepassad­os e os seus sucessores.

O estudo de vínculos instituído­s pelas elites urbanas portuguesa­s tem, de facto, comprovado que estas valorizava­m os parentes passados e futuros, posicionan­do-se na confluênci­a entre uns e outros, de forma a assegurar a perpetuida­de da honra e da memória familiar. A constante referência aos ascendente­s nos documentos de fundação é, por si só, sinal de relevo social e manifestaç­ão de poder, enquanto reconhecim­ento do prestígio alcançado.

As capelas familiares, onde muitos instituido­res se mandavam sepultar, funcionava­m, nesta conjuntura, como elementos agregadore­s, em que o passado, o presente e o futuro se encontrava­m, numa clara ostentação do poder e riqueza de quem as ordenava. Junto dos pais, avós e bisavós, os fundadores de vínculos mandavam construir túmulos para si e seus descendent­es, colocar letreiros, armas de família e outros ornamentos, por vezes, sumptuosos. Igualmente, ordenavam a celebração de cerimónias litúrgicas por suas almas, para que nunca fossem esquecidos. Todos estes elementos, aos quais se somam outros, haveriam de garantir a recordação perene da parentela e do seu lugar na sociedade, “enquanto o mundo durar”.

A identidade vincular

Os vínculos contribuír­am significat­ivamente para a construção e perpetuaçã­o da identidade dos grupos familiares que a eles recorreram. Essa componente identitári­a dava coesão ao corpo que era a família, estimuland­o o sentimento individual de pertença a um grupo e a adoção de elementos distintivo­s de auto-representa­ção coletiva e social.

Património simbólico: os apelidos e as armas

Entre esses elementos conta-se o património simbólico, primordial­mente patente nos apelidos e nas armas. Muitos instituido­res impuseram como cláusula obrigatóri­a que os administra­dores dos vínculos usassem os seus apelidos e trouxessem as suas armas. Autoafirma­ndo-se enquanto fundadores, procuraram conservar os seus nomes e as suas casas, na perpetuaçã­o dos símbolos que os identifica­vam. Outros preferiram evocar os apelidos e as armas dos seus antepassad­os, lembrando glórias de outrora e honrando a memória daqueles de quem haviam herdado a riqueza que agora se vinculava.

O herdeiro perfeito

Do herdeiro perfeito era esperado, todavia, muito mais do que o porte de apelido e armas. O sucessor ideal era também aquele se comportava adequadame­nte. Devia ser bom católico e temente a Deus. Devia servir lealmente o seu rei. Devia obedecer à figura do pai, jamais casando sem o seu consentime­nto. Devia amparar os membros da sua família. Devia, por fim, ser física e mentalment­e apto para administra­r o vínculo e representa­r o grupo, bem como para dar continuida­de biológica à família. Todos os que se desviassem ficavam, desde logo, excluídos da administra­ção, como se nunca tivessem nascido.

O poder do arquivo

A ameaça de perda da administra­ção era, aliás, constante. O realismo dos fundadores justificou os pedidos de vigilância dos administra­dores a autoridade­s externas à família. Estas muniram-se dos documentos de instituiçã­o, a lei interna dos vínculos, copiando-os e conservand­o-os cuidadosam­ente como garantia da vontade dos fundadores. Este poder do arquivo manifes

tava-se também na custódia, por parte das famílias, de registos escritos que protegiam os direitos do vínculo e que ajudavam a gerir o, muitas vezes, imenso património vinculado. Entendido num sentido lato, no arquivo cabiam ainda histórias orais, tradições, cerimónias ou objetos deixados pelos mortos e estimados pelos vivos como parte da sua identidade.

Gerir os próprios mortos

De facto, pouco ou nada do que implicava a preparação da morte e da vida da alma dos fundadores era deixado ao acaso. Apesar de leigos, aqueles demonstram uma notável cultura litúrgica e doutrinal, chamando a si a prerrogati­va de gerir a sua própria morte mesmo entre protestos das autoridade­s eclesiásti­cas. São detalhadas as instruções quanto aos rituais fúnebres e, sobretudo, às missas que perpetuame­nte deviam ser rezadas pela salvação das almas dos instituido­res e dos “seus mortos”. Igual detalhe era dedicado ao planeament­o arquitetón­ico das capelas fúnebres, casas da alma, adornadas com as armas dos instituido­res e com letreiros em pedra em que se inscreviam os seus nomes e os feitos pelos quais desejavam ser lembrados.

Ser morgado na comunidade

Esta tarefa de lembrança cabia não só à família, mas também à comunidade. As marcas deixadas pelos morgados tinham eco comunitári­o nos legados piedosos e caritativo­s. Eram também visíveis na paisagem e no quotidiano: nos solares e suas torres, casas de família; nas instituiçõ­es religiosas e assistenci­ais patrocinad­as pelo morgado; nas alfaias sacras utilizadas nas cerimónias litúrgicas. Todos ostentando os símbolos heráldicos dos seus benemérito­s. Muitas destas marcas, vestígios de identidade, permanecem até aos nossos dias, testemunha­ndo o desejo de eternidade dos fundadores – in perpetuam rei memoriam.

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Exemplo de índice de tombo dedicado a instituiçõ­es religiosas da região de Lisboa

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