Geopolítica, realpolitik e os fantasmas do passado
Termos muito usados quando se comenta a política internacional, “geopolítica” e “realpolitik” nem sempre são entendidos com o propósito com que foram criados, tendo conotações negativas cujas origens se encontram no passado da Alemanha
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Todos quantos se interessam pela política internacional estão, de algum modo, familiarizados com os termos geopolítica e realpolitik. O termo geopolítica é hoje amplamente usado para designar os múltiplos problemas, conflitos e tensões que usualmente marcam a política internacional. Quanto à realpolitik, de uso mais seletivo, ganhou notoriedade pela associação à política externa de Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA nos governos de Nixon e Ford, nos anos 1970, falecido em finais de 2023. Fundamentalmente, a realpolitik ficou entendida como uma política externa amoral que prossegue interesses, ignorando considerações morais, valores e Direitos Humanos sempre que necessário. Menos conhecido é o facto de os dois termos terem uma história ligada à Alemanha da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. Ambos adquiriram significados diferentes dos originais (e uma forte carga negativa) devido à sua associação à Alemanha nacionalista de finais do século XIX e à Alemanha nazi dos anos 1930 e 1940. A geopolítica já se libertou, a realpolitik não. É interessante pô-lasr em paralelo.
2A geopolítica foi criação de um sueco germanófilo, Rudolf Kjellén (1864-1922), na transição do século XIX para o XX. Pretendia designar problemas e especificidades políticas, num determinado Estado, devido às características geográficas do seu território. O contexto em que surgiu foi a discussão das fronteiras, quando se perspetivava o fim da união de Estados Suécia-Noruega, que existia desde 1814 sob supremacia sueca (a dissolução ocorreu em 1905, levando à independência da Noruega). Kjellén era um nacionalista-conservador, que se opunha à dissolução, e foi sobretudo na Alemanha que o seu trabalho adquiriu projeção, em especial a partir do livro de 1916 Staten som livsform (“O Estado como forma de vida”). Na Alemanha dos anos 20 e 30, a geopolítica seguiu um percurso estreitamente ligado aos trabalhos do general-geógrafo Karl Haushofer. Então, a Europa e o mundo eram marcados pelos profundos antagonismo e rivalidade entre britânicos e alemães, que se projetaram mais tarde nos EUA, pelo que a geopolítica ficou negativamente conotada com a Alemanha e o nazismo. No imediato pós-guerra, o seu uso foi praticamente banido, especialmente em contexto anglo-saxónico. Nas últimas décadas do século XX, a geopolítica regressou dissociada desse passado comprometedor.
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Quanto à realpolitik, está ligada a August Ludwig von Rochau (1810-1873), político e jornalista alemão impregnado de ideais liberais e radicais. O termo surgiu em 1853, em Grundsätze der Realpolitik (Fundamentos da Realpolitik), em que Von Rochau criticou o idealismo utópico e a sua incapacidade de fazer triunfar as ideias liberais e unificar a Alemanha. O que este designava como realpolitik era uma forma de ação política que interligava as ideias liberais-nacionais e progressistas e os constrangimentos do poder. O que devia ser afastado da ação política eram utopias impraticáveis, não valores e princípios morais. O que deu depois à realpolitik uma carga negativa leva-nos, de novo, à Alemanha do passado. Heinrich von Treitschke e outros historiadores nacionalistas apropriaram-se do termo e passaram a associá-lo à política de unificação da Alemanha de Otto von Bismarck. Numa Europa marcada por profundas rivalidades nacionalistas, essa associação levou, no exterior, a denegri-la como uma política externa maquiavélica. Além desse passado, o “efeito Kissinger” nos anos 70, associado às suas controversas políticas como secretário de Estado, criou a restante carga negativa da realpolitik. Mas há ironia nas trajetória da geopolítica e da realpolitik quando postas em paralelo. Olhando para os significados originais dos termos e para a forma como se expandiram, o mais problemático nem éa realpolitik, mas a geopolítica. Todavia, é sobre a primeira que mais pairam, ainda hoje, os fantasmas da Alemanha do passado.