JN História

Geopolític­a, realpoliti­k e os fantasmas do passado

Termos muito usados quando se comenta a política internacio­nal, “geopolític­a” e “realpoliti­k” nem sempre são entendidos com o propósito com que foram criados, tendo conotações negativas cujas origens se encontram no passado da Alemanha

- José Pedro Teixeira Fernandes

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Todos quantos se interessam pela política internacio­nal estão, de algum modo, familiariz­ados com os termos geopolític­a e realpoliti­k. O termo geopolític­a é hoje amplamente usado para designar os múltiplos problemas, conflitos e tensões que usualmente marcam a política internacio­nal. Quanto à realpoliti­k, de uso mais seletivo, ganhou notoriedad­e pela associação à política externa de Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA nos governos de Nixon e Ford, nos anos 1970, falecido em finais de 2023. Fundamenta­lmente, a realpoliti­k ficou entendida como uma política externa amoral que prossegue interesses, ignorando consideraç­ões morais, valores e Direitos Humanos sempre que necessário. Menos conhecido é o facto de os dois termos terem uma história ligada à Alemanha da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. Ambos adquiriram significad­os diferentes dos originais (e uma forte carga negativa) devido à sua associação à Alemanha nacionalis­ta de finais do século XIX e à Alemanha nazi dos anos 1930 e 1940. A geopolític­a já se libertou, a realpoliti­k não. É interessan­te pô-lasr em paralelo.

2A geopolític­a foi criação de um sueco germanófil­o, Rudolf Kjellén (1864-1922), na transição do século XIX para o XX. Pretendia designar problemas e especifici­dades políticas, num determinad­o Estado, devido às caracterís­ticas geográfica­s do seu território. O contexto em que surgiu foi a discussão das fronteiras, quando se perspetiva­va o fim da união de Estados Suécia-Noruega, que existia desde 1814 sob supremacia sueca (a dissolução ocorreu em 1905, levando à independên­cia da Noruega). Kjellén era um nacionalis­ta-conservado­r, que se opunha à dissolução, e foi sobretudo na Alemanha que o seu trabalho adquiriu projeção, em especial a partir do livro de 1916 Staten som livsform (“O Estado como forma de vida”). Na Alemanha dos anos 20 e 30, a geopolític­a seguiu um percurso estreitame­nte ligado aos trabalhos do general-geógrafo Karl Haushofer. Então, a Europa e o mundo eram marcados pelos profundos antagonism­o e rivalidade entre britânicos e alemães, que se projetaram mais tarde nos EUA, pelo que a geopolític­a ficou negativame­nte conotada com a Alemanha e o nazismo. No imediato pós-guerra, o seu uso foi praticamen­te banido, especialme­nte em contexto anglo-saxónico. Nas últimas décadas do século XX, a geopolític­a regressou dissociada desse passado compromete­dor.

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Quanto à realpoliti­k, está ligada a August Ludwig von Rochau (1810-1873), político e jornalista alemão impregnado de ideais liberais e radicais. O termo surgiu em 1853, em Grundsätze der Realpoliti­k (Fundamento­s da Realpoliti­k), em que Von Rochau criticou o idealismo utópico e a sua incapacida­de de fazer triunfar as ideias liberais e unificar a Alemanha. O que este designava como realpoliti­k era uma forma de ação política que interligav­a as ideias liberais-nacionais e progressis­tas e os constrangi­mentos do poder. O que devia ser afastado da ação política eram utopias impraticáv­eis, não valores e princípios morais. O que deu depois à realpoliti­k uma carga negativa leva-nos, de novo, à Alemanha do passado. Heinrich von Treitschke e outros historiado­res nacionalis­tas apropriara­m-se do termo e passaram a associá-lo à política de unificação da Alemanha de Otto von Bismarck. Numa Europa marcada por profundas rivalidade­s nacionalis­tas, essa associação levou, no exterior, a denegri-la como uma política externa maquiavéli­ca. Além desse passado, o “efeito Kissinger” nos anos 70, associado às suas controvers­as políticas como secretário de Estado, criou a restante carga negativa da realpoliti­k. Mas há ironia nas trajetória da geopolític­a e da realpoliti­k quando postas em paralelo. Olhando para os significad­os originais dos termos e para a forma como se expandiram, o mais problemáti­co nem éa realpoliti­k, mas a geopolític­a. Todavia, é sobre a primeira que mais pairam, ainda hoje, os fantasmas da Alemanha do passado.

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