Visita guiada a 1974-75 e à mudança de regime
Na abordagem historiográfica, um processo revolucionário é, evidentemente, muito mais do que as sensações das pessoas que então o viveram – ou protagonizaram –, o mesmo se aplicando às leituras instrumentais que dele fazem protagonistas políticos, mesmo que 50 anos depois, da esquerda à direita. A perspetiva de Irene Flunser Pimentel, que agora nos brinda com “Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975 – Epsiódios menos conhecidos” (Temas e Debates) é, evidentemente, a perspetiva historiográfica. Que se guia sobretudo pelas balizas cronológicas plasmadas no título (embora recue à substituição de Salazar por Caetano e reconheça na promulgação da Constituição de 1976 a consumação da
transição democrática), mas não alinha na instrumentalização dada por comentadores nada sérios ao significado da meta final deste ensaio, à esquerda vista como a aniquilação da revolução, à direita propagandeada como a verdadeira revolução. Como noutro espaço desta revista diz o coronel Aniceto Afonso, todas as datas marcantes do processo revolucionário português são controversas e geradoras de divisão, mas só uma une todos os amantes da liberdade e da democracia, devendo por isso ser celebrada: o 25 de Abril.
Evidentemente, o sentido de oportunidade prende-se com a efeméride redonda que Portugal assinala por estes dias, mas as mais-valias transcendem em muito o que seria uma mera evocação de acontecimentos já bastante repisados. Desde logo, o enquadramento que, fruto da sua continuada investigação da autora em torno da PIDE/DGS, nos dá não apenas do papel da polícia política (extinta no âmbito da revolução portuguesa) na Guerra Colonial, mas também dos contactos dessa instituição com diversas congéneres ocidentais, no âmbito da pertença de Portugal à NATO, bem como do seu processo de extinção e do que foi a postura perante Portugal, nos tempos revolucionários, de países como os Estados Unidos, a França ou a Alemanha.
Armadilhas do “efeito Rashomon”
Apesar da perspetiva diacrónica e do desenvolvimento e fundamentação de tudo o que se afirma, Irene Pimentel salvaguarda que “não se trata de qualquer análise exaustiva de todas as questões em torno da implantação da democracia em Portugal”. A isso a obriga a ética de historiadora, mas, do ponto de vista de um público mais vasto que a este trabalho terá acesso, fique desde já a garantia de que o livro de que aqui tratamos constitui instrumento precioso para a compreensão de um período simultaneamente tão transformador e tão turbulento.
Exemplo da seriedade posta na construção do texto – e eximindo-nos nós de de desenvolver a ideia de que toda a historiografia deve ser também divulgação – é o tratamento dado ao 25 de Novembro, que, como atrás notámos, é a mais polémica das datas que o período revolucionário português (num sentido lato e não na aceção estrita dos coevos que falavam em PREC - Processo Revolucionário em Curso), enfatizando a presença do chamado “efeito Rashomon”, como constrangimento com que se debatem os investigadores que tentam estudar este período. Tendo ido buscar o nome ao filme “Rashomon” (“Às Portas do Inferno”), do cineasta japonês Akira Kurosawa (1950), este “efeito Rashomon” traduz o conflito de testemunhos dissonantes sobre um mesmo acontecimento, subjetividade que pode resultar de múltiplos fatores: as normais armadilhas da memória, eventualmente inconscientes, ou ponderadas decisões quanto ao papel que se quer assumir na história, ou ainda a simples circunstância de cada testemunho ser condicionado pelos filtros pessoais de quem o dá.
Sem se assumir como tal, e mesmo sendo absolutamente claro que não estamos perante um levantamento exaustivo de ocorrências no tão dinâmico período em causa, este livro poderá ser visto, em nosso entender, como um perfeito guia para compreender – focando as vertentes militar e civil/partidária, que tanto podiam ser concordantes como antagónicas – a transição entre dois regimes: uma ditadura e uma democracia constitucional.
E a importância dessa passagem, que teremos de entender consumada quando se verifica uma estabilização institucional, tanto civil como militar, torna-se evidente nas notas pessoais, mais reflexivas do que impressivas, usadas pela autora na reta final deste trabalho, quando afirma que, “(...) num balanço geral, Portugal transformou-se num país democrático, que descolonizou, ergueu um Estado social, possibilitou a mobilidade social ascendente e democratizou a educação”.
Ou seja, independentemente do que eram então as ambições de quem estava envolvido na complexa teia de acontecimentos de 1974-75 (ou 76), a rutura com um passado de atraso e um regime opressivo foi um sucesso: “Pode dizer-se hoje que uma jovem, filha de pessoas que se exilaram no Brasil ou em Espanha devido ao 25 de Abril, tudo ganhou com a democratização, o novo Código Civil, as leis igualitárias e paritárias, a democratização do ensino e o Estado social. Como tudo ganharam com o 25 de Abril o filho ou a filha de camponeses pobres e analfabetos do norte do país ou assalariados miseráveis do sul. Para os seus filhos, netos e bisnetos, é impensável um país sem democracia, por mais imperfeita que esta seja, sem mobilidade social, sem educação e sem Estado social.”