JN História

“VAMOS LÁ PRESERVAR A DEMOCRACIA E VAMOS LÁ CONTINUAR A AGIR”

-

Ficou em Moçambique até à independên­cia, em junho de 1975. Quis cumprir a missão até ao fim?

Eu podia ter vindo embora quando foi o 25 de Abril, porque pertencia, lá, a um serviço que praticamen­te deixou de funcionar: a CHERET, Chefia do Reconhecim­ento das Transmissõ­es. Escutávamo­s as transmissõ­es da Frelimo e essas coisas. Nos primeiros meses, depois do 25 de Abril, aquilo ainda teve alguma importânci­a, mas depois deixou de ter, e eu fui trabalhar para o MFA. Constituím­os uma comissão que era o chamado gabinete do MFA junto do comandante-chefe, em Nampula, e uma comissão coordenado­ra em Lourenço Marques, junto do governador geral. A partir daí, praticamen­te só fiz MFA. Poderia ter vindo embora, mas, ponderadas as coisas, fiquei. Tive muita pena de não acompanhar, aqui, o processo no nosso país, mas também, no fundo, vi nascer um país.

Acompanhou tudo, até ser arriada a bandeira nacional...

Sim, estive lá no Estádio da Machava...

… tudo isso provocou-lhe algum sentimento especial?

Não... Era apenas um sentimento especial no sentido de ter cumprido o programa do MFA, de ter cumprido a independên­cia e de aquilo ficar sossegado. Às vezes, confunde-se Moçambique com Angola, mas Moçambique não ficou com qualquer problema, no momento da independên­cia. Os brancos tinham saído, de um modo geral, mas ficaram 20 mil funcionári­os brancos, com contratos de um ou dois anos. Criou-se um quadro especial, em Portugal, em que os funcionári­os de Moçambique podiam entrar se ficassem lá dois anos. Ao fim de um ano, podiam ficar, mas tinham de fazer concurso, enquanto os de dois anos entravam diretament­e. E a PSP também ficou mais seis meses. Aquilo ficou tranquilo.

Já Angola transitou instantane­amente para a guerra civil...

Muito antes da independên­cia, aquilo começou tudo à bordoada. Eram vários movimentos de libertação, nunca se entenderam, e Portugal não podia obrigá-los a entenderem-se. O acordo de Alvor é quase uma utopia, ao juntar movimentos de libertação. A FNLA, o MPLA

a UNITA nunca se juntaram. Quando se analisa o conflito destes território­s, nessa época, é preciso ver vários níveis de conflito, porque há o conflito geral, que é a Guerra Fria, há esse grande conflito e a luta pelas zonas de influência...

Que enquadra praticamen­te todos os conflitos desse tempo...

Que enquadra tudo. Tanto a União Soviética como os Estados Unidos estavam sempre presentes. Depois, havia um outro nível, em que a África do Sul, como potência regional, queria ter influência nos território­s vizinhos. Havia o conflito propriamen­te dito entre as Forças Armadas Portuguesa­s e os movimentos de libertação. E depois havia o conflito entre os movimentos de libertação, uns com os outros. É preciso compreende­r todo esse tipo de conflitos para chegar a uma conclusão. O acordo de Alvor é, de facto, uma utopia para Angola. Nunca foi cumprido, e os pequenos acordos que eram feitos lá, mais ou menos locais, nunca funcionara­m até à saída que todos conhecemos.

Mais traumática do que a de Moçambique, como já disse.

Primeiro, conseguiu-se que a população branca saísse, através daquela famosa ponte aérea, mas nem sempre foi possível trazer todos os brancos espalhados por aquele território imenso. Alguns foram em colunas para a África do Sul, outros vieram de barco, até de barco à vela. Era o regresso das caravelas! E houve muitos danos, claro, mas isso faz parte... Na história há sempre dramas. Vemos a atualidade cheia de dramas, morrem pessoas e populações inteiras. Nós conseguimo­s trazer a maioria dessa gente e integrá-la. Têm aquela mágoa, e as queixas têm a sua razão de ser, pelo destino que pôs fim àquela vida mais ou menos boa que tinham, melhor do que aqui tinha a nossa população, mas a vida é assim...

O seu regresso foi em pleno “Verão quente”, quando aqui estava tudo num grande rebuliço...

Pois... Eu vim cá duas vezes, durante esse período. A primeira foi em dezembro de 1974, ou seja, depois do 28 de Setembro [nota: movimento contrarrev­olucionári­o conservado­r, associado ao apoio da “maioria silenciosa” a António de Spínola], mas ainda havia alguma harmonia no MFA. Mas, de uma forma geral, encontrei que as coisas funcionava­m, encontrei que ninguém aqui sabia nada do que se passava em Moçambique, nem queria saber. Já havia o acordo de Lusaca e, portanto, nós que nos arranjásse­mos lá. Depois, vim em abril de 75, quando foram as eleições para a Assembleia Constituin­te, e votei aqui. Já tinha acontecido o 11 de Março, e estava tudo muito complicado. Em Moçambique, tínhamos conseguido transforma­r as forças armadas, preparadas para a guerra, numas forças armadas preparadas para a paz. Transmitim­os aos soldados que era necessário colaborar com a Frelimo, depois do acordo. Estavam integrados, trabalhava­m em patrulhas conjuntas e, praticamen­te, não houve incidentes. Em 28 de outubro de 74 houve lá uns incidentes com os comandos, e nós, depois, tivemos de mandar os comandos embora, porque estavam instruídos para a guerra e não havia maneira de os transforma­r em soldados da paz.

Fale-me da situação aqui, quando regressou definitiva­mente.

Nós chegámos no final de junho de 1975, e eu fui de férias um mês e tal. Fui ver a família a Trás-os-Montes, fui ver a família da minha mulher, que é do Algarve. Andámos por aí e não nos agradou muie

o que íamos vendo. E muito menos, depois, o ambiente interno de grande oposição: o conflito que havia entre a população, entre os partidos, também se vivia entre os militares. Assisti aqui a esses últimos meses da revolução, até ao 25 de Novembro, e por cá fiquei, muito próximo, sempre, do Vasco Lourenço.

Onde é que coloca o fim da revolução: no 25 de novembro?

Sim...

Eu colocaria na aprovação da Constituiç­ão.

Pois... Nós vivemos tudo isso, sempre com muita preocupaçã­o. A certa altura, os elementos do MFA estiveram muito próximos de estarem uns contra os outros, mesmo a dar tiros. Felizmente, mesmo no 25 de Novembro, houve capacidade de não começar aos tiros uns aos outros, a não ser aquele incidente que houve ali na Ajuda, e o conflito militar propriamen­te dito foi evitado. Estes militares tinham experiênci­a de guerra, sabiam que um só tiro poderia ser o início de uma coisa de grande dimensão e sempre evitaram isso. Éramos todos camaradas, tínhamos feito o 25 de Abril e era o 25 de Abril que mais nos unia. Todas as outras datas nos desunem, e o 25 de Abril é que nos une. Havia um programa do MFA para cumprir, era preciso fazer eleições e era preciso respeitar as eleições. Depois, o 25 de Novembro é esse confronto entre uma ala mais radical e uma ala mais moderada, porque as coisas se encaminhar­am assim. Nas revoluções, é muito difícil que não haja estes acertos.

Quando fala em ala moderada, estará a referir-se, por exemplo, ao Grupo dos Nove, que depois também travou uma tendência mais radical à direita...

Isso foi antes, no 28 de Setembro e no 11 de Março...

Sim, claro, mas aquilo a que quero referir-me é à tentação que havia de banir, por exemplo, o Partido Comunista, no rescaldo do 25 de Novembro.

Sim, mas isso não era só militar: havia um grande movimento de direita – que veio até o 25 de Novembro e, antes pelo contrário, desenvolve­u-se depois, com apoio que teve na Espanha – do MDLP e do ELP. Depois, em 1976 fizeram essas coisas todas de incendiar sedes...

Sim, os piores atentados da rede bombista ocorreram depois do 25 de Novembro...

Quando olhamos a esta distância, temos de compreende­r que uma revolução, uma mudança tão radical, não podia passar assim, sem mais nada. Havia aqueles que tinham perdido muitos privilégio­s, havia aqueles que, porventura, queriam estabelece­r um regime de natureza diferente... No dia-a-dia, nós vivíamos essa luta, ou lutas. Foi preciso ter a capacidade de ir orientando o regime para uma espécie de média, aquele ângulo que tem uma mediana, que vai oscilando e, a certa altura, fica ali onde deve ser. O que construímo­s foi este regime que temos agora, mas ele não resolve todos os problemas, como é evidente.

Como vê, hoje, o resultado do que fizeram há 50 anos?

O importante, naquela época, foi salvaguard­ar essa ideia da democracia. Da liberdade, evidenteme­nte, mas também da democracia, que é a capacidade que os cidadãos têm de intervir na condução política da coisa. Não apenas nas eleições, mas na sua própria participaç­ão nas organizaçõ­es e noutras formas que as pessoas criam para agir sobre as opções políticas. Pelo menos, isso era a ideia que os militares tinham, e o programa do MFA diz claramente isso, em todos os sentidos. Depois, já não são os militares, mas a população, de uma forma geral, que adquiriu a sua capacidade de cidadania. Umas vezes mais para ali, outras vezes mais para além, mas isso é próprio das democracia­s. Eu tenho sempre uma visão muito positiva do funcioname­nto das democracia­s. Agora, quem põe em causa as democracia­s é perigoso, mas também só o é se os cidadãos não se empenharem. Temos de ter essa capacidade de cidadania e de compreensã­o de que, até hoje, não há sistemas melhores do que a democracia, pelo menos por aquilo que têm demonstrad­o. Vamos lá preservar a democracia e vamos lá continuar a agir, dentro da nossa capacidade, não apenas nas eleições, que são muito importante­s, mas também na participaç­ão nas nossas organizaçõ­es democrátic­as e nas associaçõe­s. É uma pecha nossa: não somos muito militantes, e devíamos ser mais exigentes com aqueles que são responsáve­is pela condução da política. Até as nossas manifestaç­ões, por exemplo, em defesa de valores são muito pouco frequentad­as.

É curioso, porque no pós-25 de Abril, com aquela explosão libertária, toda a gente tinha uma espécie de consciênci­a política. Da direita à esquerda, toda a gente saía à rua.

A nossa satisfação vinha dessa multidão que estava nas ruas e que participav­a. Depois, as coisas vão estabiliza­ndo, mas não temos, ainda, suficiente cidadania para intervir mais e não aceitar que certas coisas se conduzam de uma certa maneira e não de outra. Mas isso não é só nosso, e não podemos estar desiludido­s com a sociedade que criámos. Infelizmen­te, no 25 de Abril, a nossa sociedade era pouco esclarecid­a, pouco educada, pouco instruída. Felizmente, hoje, estamos a atingir níveis médios europeus, mas ainda não estamos lá. Passaram 50 anos, mas nós, nos níveis de formação, ainda não estamos ao nível da média dos países europeus.

“DEVÍAMOS SER MAIS EXIGENTES COM AQUELES QUE SÃO RESPONSÁVE­IS PELA CONDUÇÃO DA POLÍTICA”

É uma boa deixa para voltarmos a falar de si. Em 1980 acabou a licenciatu­ra em História, depois meteu-se a fazer o mestrado...

Comecei a escrever...

E tem feito muita coisa, designadam­ente os trabalhos sobre a Guerra Colonial, que são a principal referência que nós temos.

Eu já conhecia o Carlos Matos Gomes antes. Aliás, já tínhamos colaborado numa História que foi dirigida pelo professor João Medina, de quem fui aluno e de quem fiquei muito amigo. Foi a pesto

soa que me ensinou a fazer livros, porque ele sempre teve a obsessão de fazer livros. Estava sempre a fazer um livro, depois ia publicando. Portanto, eu e o Carlos Matos Gomes, numa História Contemporâ­nea que ele dirigiu em 1985, já tínhamos colaborado no volume sobre a Guerra Colonial e sobre o 25 de Abril, e ficámos sempre com a ideia de que tínhamos de publicar um livro abrangente, para um público geral, sem ser uma coisa académica. Depois, encontrámo­s então apoio do Diário de Notícias, e foi aí que fizemos a primeira edição da Guerra Colonial. Fizemos isso durante um ano: 52 fascículos semanais de 12 páginas, seiscentas e tal páginas, que depois as pessoas podiam encadernar. Esse período foi muito engraçado, porque nós depois fomos aos arquivos...

Os arquivos, que também foram centrais na sua vida, designadam­ente no período em que dirigiu o Arquivo Histórico Militar.

Pois... Eu não me adaptei muito ao regresso às fileiras. Em 1982 acabou o período de transição, e eu era professor na Academia Militar, já professor de História, mas três anos depois, em 1985, achei que era a altura de deixar, porque os militares de Abril não eram muito bem recebidos nem reconhecid­os pela nova estrutura militar. E não eram aceites nas unidades. Eu, como era só professor daquela cadeira, na Academia, ainda fiquei mais esses três anos, mas muitos outros camaradas não eram aceites.

Isso é uma situação bizarra, de que já ouvi falar muitas vezes.

Sim, mas foi assim.

Havia ali uma nova elite castrense que não queria rebeldes nas suas fileiras?

É, porque havia aquela herança do radicalism­o, daquelas pessoas que tinham ideias que poderiam ser confundida­s com o comunismo, o marxismo, essas coisas assim... Que tinham andado naqueles movimentos ou que os tinham apoiado... Portanto, os daquela geração que tomou conta das forças armadas, e que era mais velha do que nós, passaram a ser os comandante­s. Aqueles que eram tenentes-coronéis, mais ou menos no 25 de Abril, e outros mais velhos ainda, regressara­m um pouco não propriamen­te ao antes do 25 de Abril, mas àquelas forças armadas que eram concorresp­ondente sideradas disciplina­das. Também não poderia ser de outra maneira.

Certo, mas os rebeldes tinham sido rebeldes numa determinad­a circunstân­cia.

Mas, depois, os comandante­s desconfiav­am de que os militares de Abril iriam para as unidades desestabil­izar aquilo e, portanto, faziam sempre muita força e não os aceitavam. Muitos acabaram por se separar das forças armadas e pedir a passagem à reserva. Foi o que aconteceu comigo. Eu passei à reserva, acabei o mestrado e, depois, aconteceu-me uma coisa muito interessan­te. Quando a gente passa à reserva, fica com uma pensão ao tempo de serviço, e eu tinha pouco tempo de serviço, nessa altura, e fiquei com uma pensão muito baixa. Achei que, depois de fazer o mestrado, podia voltar às forças armadas, como oficial da reserva, o que era possível, para completar tempo de serviço. Nessa situação, não podia ir para as unidades, só podia ir para serviços. Havia a possibilid­ade de ser professor na Academia Militar, havia o Arquivo Histórico, havia as biblioteca­s, e foi a pensar nessas coisas que requeri o meu regresso. No início não foi aceite, mas depois, por alguma influência de alguém que me conhecia, acabei por entrar diretament­e no Arquivo Histórico Militar,

onde também havia uns oficiais mais velhos, que também, no princípio...

Eram os donos daquilo tudo?

Sim, não viam muito bem a coisa. Só que eu estive lá três anos, primeiro como oficial, e depois, sem que sequer me tenham comunicado – nós éramos quatro, os outros três foram-se embora definitiva­mente, no dia 1 de janeiro –, fiquei eu sozinho como oficial do quadro permanente. Portanto, fiquei diretor interino durante um tempo, era um lugar de coronel e eu era tenente-coronel, mas depois o chefe do Estado-Maior não teve outro remédio senão nomear-me diretor. Então, fiquei diretor durante 14 anos, até à minha passagem à reforma.

Foi um trabalho gratifican­te?

Demos uma grande volta ao arquivo, que antes era uma coisa morta, onde se juntavam os papéis e pouco mais. Mas nós demos alguma dinâmica àquilo e procurámos guiar-nos por tudo aquilo que era o mais novo que havia ao nível da arquivísti­ca. Abrimos muitos arquivos ao público, e foi isso que nos permitiu fazer depois o Alcora, porque antes esses documentos não vinham à consulta.

Havia muita coisa sensível e escondida que deixou de o estar consigo?

A primeira coisa que eu pus à consulta, que antes era sensível e não vinha, foram os relatórios da invasão da Índia. Havia uns jornalista­s que andavam sempre atrás dos relatórios, e eu lá lhes disse para aguentarem mais um pouco, pois teria de resolver uns problemas internos, mas que aquilo iria à consulta, por já ter mais de 25 anos. Agora são 30 anos, mas aquilo, na verdade, já tinha mais de 30 anos. Em 1992 já deviam ser disponibil­izados, mas só em 95 ou 96 é que eu consegui pô-los à disposição. Isso foi a primeira coisa. Depois, o resto veio por arrastamen­to, e agora está a funcionar como um arquivo de outro lugar qualquer, com regras ditadas pela Torre do Tombo. Esses anos que passei no Arquivo Histórico Militar foram muito gratifican­tes.

“NÃO HÁ ISENÇÃO NA HISTÓRIA. CADA UM PENSA PELA SUA CABEÇA, COM BASE NO ESTABELECI­MENTO DOS FACTOS”

Fazer a história de um conflito como a guerra colonial, cujo fim se deu vai agora fazer 50 anos, pode ser difícil por ter passado pouco tempo e ainda haver muita gente...

Eu não sou académico e, por isso, posso ter ideias diferentes da academia...

O que eu queria perceber era a vantagem de ter lá estado ou a dificuldad­e de não ter lá estado, por o silêncio de muitos intervenie­ntes ser, em muitos casos, um obstáculo para realizar em pleno um estudo focado na história oral.

A história é feita de tudo isso. Há aqueles académicos que acham que a história se faz passado muito tempo...

Até pode ser no dia seguinte.

Sim, no dia seguinte já se está a fazer história quando os jornalista­s estão a es

crever nos seus jornais. Estão a fazer uma componente da história muito importante, ao relatar os factos. Para mim, tudo isso é história. E, para mim também, a história nunca está completa nem concluída. Está sempre em aberto. Vamos fazendo e, à medida que temos mais conhecimen­to, acesso a mais documentos, acesso a mais memórias, acesso a mais pessoas que escrevem as suas coisas e que comunicam, ou são entrevista­das, vamos tendo elementos para ir mudando o que era a história até aí. Não tenho problema nenhum em falar de história um dia depois ou 50 anos depois. Para mim, só é diferente o acesso que se tem às fontes.

Claro, mas esse nem era o fulcro da minha questão quando falei dos 50 anos, mas o facto...

De eu ser um participan­te.

Exato, mas também de haver muitos participan­tes para os quais o tema é demasiado sensível para que se disponham a falar sobre ele.

Concordo que, durante muito tempo, foi um assunto sensível, mas, nos últimos anos, há muitas memórias da Guerra Colonial. Muita gente escreveu imensos testemunho­s, que são publicados tanto nas redes sociais, ou em blogues, como em livros...

Que também obrigam a muitas cautelas.

Como qualquer documento histórico. Mesmo o que o jornalista publica: passados 25 ou 50 anos, temos de olhar aquilo de uma maneira diferente. Isso é o que faz da história uma ciência, é a metodologi­a. Não é propriamen­te chegar a um consenso, pois não há consenso na história, mas a crítica documental e a comparação de fontes, para tentar descobrir aquilo que se passou. Não a verdade, porque a verdade nunca se descobre, mas estabelece­r os factos. A partir daí é que se pode interpreta­r, e cada um tem as suas interpreta­ções. Não há uniformida­de na história. O essencial é que ninguém pode excluir documentos ou acrescenta­r documentos que não existem. Claro que não há isenção na história. Cada um pensa pela sua cabeça, com base naquilo que é o estabeleci­mento dos factos.

Há pouco, quando falava no livro Guerra Colonial, vincou o objetivo de chegar às pessoas, ao público em geral.

Isso foi essencial. Nós nunca soubemos quantos exemplares eles fizeram, e o jornal vendia muito mais no dia em que publicavam os fascículos.

Se a história tem alguma utilidade, digamos assim, isso passa por chegar às pessoas, e nem toda a gente tem essa capacidade. Concorda?

Quando a gente escreve coisas muito herméticas é para um público-alvo. Agora, quando é para um público em geral, há que escrever as coisas com mais simplicida­de. Nessa altura, faziam muita falta a fotografia e os esquemas, os mapas... Hoje já não fazem tanta falta, porque se tem acesso a imensas fotografia­s da Guerra Colonial, na Internet. Essa primeira edição em fascículos tinha quase 600 fotografia­s e muitos mapas, mas a reedição que fizemos em 2020, com a Porto Editora, já não tem imagens. A nossa prioridade foi organizar aquilo de outra maneira, mais compreensí­vel em função do tempo que passou, mais de 20 anos entre uma e outra edição. Havia muita mais informação, havia muitos mais arquivos abertos, havia muito mais conhecimen­to do que era a guerra. Tivemos de incorporar esse novo conhecimen­to e tirar as fotografia­s, porque era um livro muito grande. Ficou equilibrad­o e ficou bem.

Continua a vender-se?

Continua! Desde 1997 que nós vendemos Guerras Coloniais. Fizemos pelo meio uma segunda edição em livro, com a Editorial Notícias. Entretanto, fizemos outro livro, Os Anos da Guerra Colonial.

Uma abordagem diferente. Porquê?

Quando nós fizemos a Guerra Colonial, a coisa que mais falta nos fez foi um instrument­o cronológic­o. A organizaçã­o dos factos, a cronologia, faz muita falta para compreende­r, por isso decidimos fazê-la. Fizemos aquilo com a Quid Novi, outra editora que já desaparece­u, e publicámos também com eles, eu e o Carlos de Matos Gomes, o livro Portugal e a Grande Guerra. Juntos ainda fizemos o Alcora e, depois, um livrinho com o Pacheco Pereira, naquela Coleção Ephemera, sobre a ação psicossoci­al na guerra, com base em muitos cartazes que há no arquivo dele. E fizemos ainda um outro chamado A Guerra, para acompanhar os DVDs dos documentár­ios do Joaquim Furtado com o mesmo nome. Foram 14 livrinhos, um por cada DVD, e nós procurámos fazer um texto coerente, em 14 capítulos, sem ter ligação direta ao que estava em cada DVD. Depois, temos publicado outras coisas, individual­mente. Ele publica romances [nota: Carlos de Matos Gomes publica romances sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz], eu tenho publicado mais umas coisas em particular sobre o movimento dos capitães em Moçambique, até ao 25 de Abril, e sobre a ação do MFA, também em Moçambique, entre o 25 de Abril e a independên­cia.

Tem novos projetos na calha?

Eu, agora, gostava de publicar as minhas memórias, que são muitas. Já tenho isso mais ou menos escrito e orientado. Acabei no ano passado. São textinhos: eu gosto muito desse sistema de fazer textos pequenos e, depois, ir juntando. Chega-se lá mais facilmente. Quando os capítulos são demasiado grandes, a pessoa desiste de ler a meio.

Estamos na sede da Associação 25 de Abril, cuja revista, O Referencia­l, é dirigida por si. Não lhe falta que fazer... Pois... Puseram-me aqui a diretor do Referencia­l. Inicialmen­te, eu resisti muito, porque tinha outras coisas, não mais importante­s, pois isto é importante e tenho-me dedicado muito ao Referencia­l. Vou fazer três anos de Referencia­l no final deste ano. Aquilo começou por ser um boletim da associação, que já se chamava assim, mas transformo­u-se numa revista trimestral. Vamos agora publicar um Referencia­l especial para os 50 anos do 25 de Abril, que vai ocupar dois números, um semestre. É de janeiro a junho, antecipámo­s a apresentaç­ão para abril, claro, em conjunto com uma exposição sobre o MFA na Gare de Alcântara, aqui em Lisboa.

Que pode dizer sobre essa edição?

Temos 50 textos para, simbolicam­ente, representa­rem os 50 anos. Depois, temos um suplemento, que publicamos online, com mais de 30 textos além dos 50 que escolhemos para a edição em papel. A revista está toda acessível online, do primeiro número, em 1985, ao último. Enfim, vamo-nos entretendo por aqui.

 ?? ??
 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal