O CANTO DAS MONJAS
Oconhecimento sobre a práxis ritual dos mosteiros medievais depende, em larga medida, dos livros pertinentes que sobreviveram à passagem do tempo: códices litúrgicos em sentido próprio, usados nas celebrações (missal, antifonário, gradual, etc.); e livros complementares como, por exemplo, o cerimonial, que, não servindo diretamente o ritual, conformam os modos da sua realização.
Para os mosteiros cistercienses, a pesquisa beneficia da circunstância de a Ordem de Cister promover a uniformidade litúrgica nas diversas comunidades, seja quanto ao calendário, ou à ordenação dos ofícios, ou, ainda, às formas de cantochão a seguir, para dar apenas alguns exemplos mais significativos, pelo que a informação disponível sobre os livros de uma comunidade repercute-se no conhecimento da experiência cultual de outras casas monásticas. Também isto reforça a necessidade de desenvolver estudos comparativos alargados e de meios digitais de conservação e partilha de dados, como vem sendo prosseguido no projeto focado na comunidade textual da abadia feminina de Lorvão.
Claro que a imagem obtida a partir dos códices é sempre uma mera aproximação à experiência ritual histórica: quer porque muitas fontes desapareceram, quer ainda porque não são livros descritivos, relatando o que a celebração foi, mas prescritivos, que informam como o ritual deve ser. A realização efetiva depende das possibilidades concretas existentes, seja em recursos humanos, como o número e as competências dos intervenientes, seja nas condicionantes materiais, desde o espaço celebrativo que pode impor ajustamentos a uma procissão, por exemplo, até ao tipo de alfaias litúrgicas ou de instrumentos musicais disponíveis em cada comunidade.
Embora incompleta, os códices possibilitam, ainda assim, uma imagem da vida da comunidade cisterciense de Lorvão, pautada de modo pervasivo pelos ritmos da liturgia que se expande nos tempos do tempo.
Ainda vem longe a aurora quando o mosteiro desperta e as monjas acedem ao coro, cumprindo a palavra da Escritura que ecoa na Regra: “no meio da noite, levanto-me para te louvar, Senhor”. O canto dissolve o silêncio – começam as Matinas, abrindo o ciclo orante quotidiano, que será reiterado com “salmos, hinos e cânticos espirituais” nos momentos e modos prescritos para as missas e as demais horas do ofício, para as procissões e as vigílias, para os dias correntes e as grandes solenidades, para a entrada e consagração de mais uma religiosa ou para o seu sepultamento.
Quanto às “formas” musicais, embora houvesse modalidades polifónicas (lembre-se um Benedicamus domino para três vozes), a maioria do repertório fazia-se em cantochão, com as versões melódicas resultantes da ampla reforma propugnada por São Bernardo, um dos sinais mais expressivos, sem dúvida, da identidade cisterciense. Os códices que, ao longo dos séculos, foram dando corpo à “biblioteca litúrgico-musical” de Lorvão não tinham mera destinação funcional: foram, naquele seu tempo, marcas de pertença e símbolos de poder; neste tempo, que permanece seu também, são interpelação e surpresa.