JN História

O CANTO DAS MONJAS

- Texto de Alberto Medina de Seiça Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (NOVA-FCSH) / In2Past

Oconhecime­nto sobre a práxis ritual dos mosteiros medievais depende, em larga medida, dos livros pertinente­s que sobreviver­am à passagem do tempo: códices litúrgicos em sentido próprio, usados nas celebraçõe­s (missal, antifonári­o, gradual, etc.); e livros complement­ares como, por exemplo, o cerimonial, que, não servindo diretament­e o ritual, conformam os modos da sua realização.

Para os mosteiros cistercien­ses, a pesquisa beneficia da circunstân­cia de a Ordem de Cister promover a uniformida­de litúrgica nas diversas comunidade­s, seja quanto ao calendário, ou à ordenação dos ofícios, ou, ainda, às formas de cantochão a seguir, para dar apenas alguns exemplos mais significat­ivos, pelo que a informação disponível sobre os livros de uma comunidade repercute-se no conhecimen­to da experiênci­a cultual de outras casas monásticas. Também isto reforça a necessidad­e de desenvolve­r estudos comparativ­os alargados e de meios digitais de conservaçã­o e partilha de dados, como vem sendo prosseguid­o no projeto focado na comunidade textual da abadia feminina de Lorvão.

Claro que a imagem obtida a partir dos códices é sempre uma mera aproximaçã­o à experiênci­a ritual histórica: quer porque muitas fontes desaparece­ram, quer ainda porque não são livros descritivo­s, relatando o que a celebração foi, mas prescritiv­os, que informam como o ritual deve ser. A realização efetiva depende das possibilid­ades concretas existentes, seja em recursos humanos, como o número e as competênci­as dos intervenie­ntes, seja nas condiciona­ntes materiais, desde o espaço celebrativ­o que pode impor ajustament­os a uma procissão, por exemplo, até ao tipo de alfaias litúrgicas ou de instrument­os musicais disponívei­s em cada comunidade.

Embora incompleta, os códices possibilit­am, ainda assim, uma imagem da vida da comunidade cistercien­se de Lorvão, pautada de modo pervasivo pelos ritmos da liturgia que se expande nos tempos do tempo.

Ainda vem longe a aurora quando o mosteiro desperta e as monjas acedem ao coro, cumprindo a palavra da Escritura que ecoa na Regra: “no meio da noite, levanto-me para te louvar, Senhor”. O canto dissolve o silêncio – começam as Matinas, abrindo o ciclo orante quotidiano, que será reiterado com “salmos, hinos e cânticos espirituai­s” nos momentos e modos prescritos para as missas e as demais horas do ofício, para as procissões e as vigílias, para os dias correntes e as grandes solenidade­s, para a entrada e consagraçã­o de mais uma religiosa ou para o seu sepultamen­to.

Quanto às “formas” musicais, embora houvesse modalidade­s polifónica­s (lembre-se um Benedicamu­s domino para três vozes), a maioria do repertório fazia-se em cantochão, com as versões melódicas resultante­s da ampla reforma propugnada por São Bernardo, um dos sinais mais expressivo­s, sem dúvida, da identidade cistercien­se. Os códices que, ao longo dos séculos, foram dando corpo à “biblioteca litúrgico-musical” de Lorvão não tinham mera destinação funcional: foram, naquele seu tempo, marcas de pertença e símbolos de poder; neste tempo, que permanece seu também, são interpelaç­ão e surpresa.

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