JN História

A ARQUITETUR­A DO LIVRO AO TEMPO DAS MONJAS DE LORVÃO

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No período medieval, em que a palavra divina constitui o pilar da vida monástica, as biblioteca­s têm um lugar de destaque nos mosteiros. Assim acontece nos mosteiros beneditino­s e cistercien­ses, nomeadamen­te no mosteiro de Santa Maria de Lorvão. O período de ocupação feminina deste mosteiro mantém a tradição e a preocupaçã­o de perpetuar a biblioteca em uso, bem conservada e esteticame­nte monumental. Exemplo disso foi o período de vigência das abadessas da família Eça, Catarina e Margarida, nos séculos XV e XVI, que investiram na aquisição de novos livros e na renovação dos já existentes, através de uma política de reencadern­ação de muitos dos códices. Este é o caso do já mencionado “Apocalipse de Lorvão”, produzido no século XII, pelos monges beneditino­s, no scriptoriu­m do mosteiro, no qual, atualmente, sobressai a decoração da encadernaç­ão, com uma linguagem estilístic­a dos séculos XV-XVI, composta por decoração de ferros a seco, sobre couro castanho, com tarjas renascenti­stas e imponentes ferragens, constituíd­as por brochas planas duplas, umbilico em forma de estrela, fechos em colchete em forma de coroa e cantos de proteção na espessura das pastas.

Do conjunto de códices sobreviven­tes que integram atualmente o fundo do Mosteiro de Lorvão do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 31 apresentam estas encadernaç­ões revestidas a pele castanha curtida, com decoração a seco e ferragens, muito comum, entre nós, neste período. Também ao nível da construção e da estrutura da encadernaç­ão, encontramo­s pastas de madeira boleada na lombada, nervos salientes, fendidos, tranchefil­a redonda simples, presença de seixas e os cantos da pele dobrada sobre as pastas, em forma oblíqua, com o virado sobreposto na goteira, pormenores de execução presentes nas novas obras encomendad­as, mas também nas mais antigas, denunciand­o a ação de reencadern­ação levada a cabo neste período (Fig. 2). As novas aquisições, nomeadamen­te o conjunto de Livros de Coro que possui as armas da família Eça, revelam esta estrutura de encadernaç­ão e a opção por uma linguagem decorativa do período em questão, tanto no seu exterior, exibindo majestosas encadernaç­ões (Fig. 3), quanto no seu interior, que os codicólogo­s apelidam de “corpo do livro”.

A análise codicológi­ca desta parte do

livro, alvo de modificaçõ­es menos significat­ivas do que aquelas experiment­adas pela encadernaç­ão (justamente por não estar tão exposta), dá-nos uma imagem do que poderá ter acontecido no momento de produção do conjunto de livros encomendad­os pelas abadessas de Eça. Os copistas, ou seja, os escrivães que copiavam os textos (que se reproduzia­m de livros antigos ou de outros formatos documentai­s, para novos livros, com maiores ou menores alterações ao conteúdo textual original), eram também eles os responsáve­is pela construção dos cadernos e pela estruturaç­ão da página, duas operações que antecediam a cópia do texto. Assim sendo, os fólios de pergaminho, depois de comprados (ou manufatura­dos no próprio local pelos copistas ou por outros artesãos responsáve­is pela transforma­ção das peles e/ou da produção livreira) (Fig. 4), eram usados pelos ditos copistas na composição do corpo do livro, por meio da mencionada construção de cadernos (Fig. 5). Determinav­a-se, então, a medida do livro e dos respetivos fólios. Para livros de grandes dimensões, como estes de que falamos, a pele de um animal doméstico de pequeno porte não permitiria que, a partir uma só pele, se obtivesse um bifólio natural, ou seja, dois fólios provenient­es de uma mesma pele através da dobragem da pele em dois. Por essa razão, o copista montava os bifólios artificial­mente, colando fólios independen­tes dois a dois. A forma como o fez obedeceu a uma mesma metodologi­a de colagem das carcelas. Depois de ter os seus bifólios montados calculava as medidas dos es

paços na página, a dita estruturaç­ão da página. Fechando-os, e não sabendo nós se um a um ou dois a dois, procedeu à puncturaçã­o do conjunto, primeiro na margem de cabeça e depois na margem de pé, de acordo com as referidas medidas e cálculos (Fig. 6). De seguida, sobrepôs e coseu os bifólios, quatro a quatro, com uma costura temporária. Tendo em mãos os seus cadernos construído­s e picotados, passou ao traçado da caixa de texto, das linhas e de outras áreas da página (Fig. 7). Fê-lo sobre um caderno já cosido, como dissemos, sempre e apenas sobre os lados da carne dos bifólios. Como usou um estilete metálico, que vincava o pergaminho, o processo trespassou naturalmen­te para o lado do pelo, tornando desnecessá­rio repeti-lo nas faces contrárias. Estavam então os cadernos prontos para receber a cópia do texto e, por fim, serem iluminados de acordo com um programa decorativo uno, que repetiu em todos os livros a mesma fórmula ornamental.

Todas as evidências indiciam que estes livros, atribuídos a um mesmo período temporal e a um mesmo círculo de promotoras, as abadessas de Lorvão da família Eça, foram encomendad­os por elas a um mesmo grupo de pessoas ou ateliê livreiro. A uniformida­de de métodos de trabalho usados e o produto final falam tanto da escolha continuada dos mesmos indivíduos, quanto de um gosto extremamen­te bem enquadrado nas tendências artísticas da época.

 ?? ?? Apocalipse. Encadernaç­ão com linguagem estilístic­a dos sécs XV-XVI. Lombada com restauro (ANTT)
Apocalipse. Encadernaç­ão com linguagem estilístic­a dos sécs XV-XVI. Lombada com restauro (ANTT)
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 ?? ?? Livro Primeiro das Missas. Ferrangens com as armas dos Eças e, nos cantos, a Cruz de Cristo (ANTT)
Livro Primeiro das Missas. Ferrangens com as armas dos Eças e, nos cantos, a Cruz de Cristo (ANTT)
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 ?? ?? Esquemas demostrand­o a construção de cadernos e a produção de pergaminho
Esquemas demostrand­o a construção de cadernos e a produção de pergaminho

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