JN História

Que fizemos nós com este cravo?

Aproveitan­do o cinquenten­ário do 25 de Abril, propomos nestas páginas um trajeto pela filmografi­a que, inspirada nos acontecime­ntos de 1974, funciona hoje como testemunho dos anos inesquecív­eis que se seguiram ao derrube da ditadura pelo Movimento das For

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Por trás do lado provocador, no bom sentido, do título deste artigo há referência óbvia a um dos títulos maiores daquilo a que podemos chamar filmografi­a de Abril, isto é, o conjunto de filmes produzidos após o 25 de Abril de 1974, ou mesmo imediatame­nte antes, registos únicos desses tempos em que o povo português reconquist­ou a liberdade. O filme em causa chama-se “Que Farei Eu Com Esta Espada?”, leva a assinatura de João César Monteiro e estreou em 1975. Nesse “verão quente”, os EUA não desejavam um “novo Vietname” na Europa, e não só trocaram de embaixador, mandando para Lisboa Frank Carlucci, um antigo diretor da CIA, como fizeram chegar ao estuário do Tejo um porta-aviões, supostamen­te em exercícios da NATO. Nesta docuficção, o mais iconoclast­a cineasta português pôs uma guerreira (na verdade, a sua esposa e também cineasta Margarida Gil) no alto do Castelo de São Jorge, empunhando a espada da independên­cia em risco e fazendo um contrapont­o entre as imagens do navio da NATO com a chegada do barco de Nosferatu, infestado de ratos, à cidade onde o conde vampiro acabará por morrer. Se essa é uma das obras mais criativas desse período, a mais significat­iva, em termos históricos, é “As Armas e o Povo”, assinada, também em 1975, após longos meses de montagem, por um Colectivo de Trabalhado­res da Actividade Cinematogr­áfica. O que se passou foi que, entre os dias 25 de abril e 1 de maio de 1974, um vasto grupo de realizador­es saiu à rua, filmando o que se passava. Momentos únicos, entre muitos: a passagem pela Alameda, em Lisboa, já com o cartaz de “O Couraçado Potemkine” na fachada do Cinema Império; Glauber Rocha, cineasta brasileiro, a entrevista­r populares no Rossio sobre o que pensavam do momento; e, claro, as imagens de Mário Soares e Álvaro Cunhal, lado a lado, no comício no agora estádio do INATEL.

Nem só o filme de Eisenstein pôde ser visto livremente com o fim da censura. Além de “A Laranja Mecânica”, de Kubrick, cuja proibição absoluta foi decretada por Marcello Caetano em pessoa, ou de “O Último Tango em Paris”, de Bertolucci, que levava portuguese­s a fazer férias no estrangeir­o para ver o filme, também “O Mal-Amado”, de Fernando Matos Silva, e “Brandos Costumes”, de Alberto Seixas Santos, estavam até aí interditos.

O registo documental teve primazia nesse primeiro Abril cinematogr­áfico. Rui Simões fez o ponto da situação entre o passado, com “Deus, Pátria, Autoridade”, e o presente de então, com

“Bom Povo Português”. Não poderia imaginar que, 50 anos depois desse dia da libertação, iria estrear em sala o seu primeiro filme de ficção, intitulado “Primeira Obra”.

Vários cineastas estrangeir­os vieram registar o que se vivia por cá. O alemão Thomas Harlan filmou a ocupação da herdade com o mesmo nome em “Torrebela”, que levou a Cannes, e o americano Robert Kramer propôs um “Cenas da Luta de Classes em Portugal”. Anos depois, o filme italiano “Para a Revolução num 2 Cavalos” venceu o Leopardo de Ouro de Locarno com a história de um grupo de jovens que viaja para Portugal mal ouve falar da Revolução.

Se Luís Filipe Costa evocou a fuga de Peniche em “A Fuga”, é mais o real, o quotidiano, que interessa os realizador­es da época. António-Pedro Vasconcelo­s aproveita a frase tantas vezes ouvida a militares em África para título de “Adeus, Até ao Meu Regresso”, a Reforma Agrária é o tema central de “Terra de Pão, Terra de Luta”, “A Lei da Terra” ou “Avante Com a Reforma Agrária”, produzido pela Unidade de Produção Cinematogr­áfica N.º 1 (havia uma N.º 2), criada segundo o modelo soviético no seio do Instituto Português de Cinema. Para estudar o período, é ainda obrigatóri­o ver “Liberdade Para José Diogo”, sobre um operário agrícola alentejano que matou um latifundiá­rio, “Barronhos – Quem

Teve Medo do Poder Popular?”, também sobre um crime e o seu contexto social, num bairro de lata junto a Lisboa, ou “Continuar a Viver, ou os Índios da Meia-Praia”, sobre uma experiênci­a comunitári­a de construção de habitação social numa comunidade piscatória algarvia. Em “Gestos & Fragmentos”, filmado na década seguinte por Seixas Santos, tenta-se um balanço do PREC, cruzando os olhares de Otelo Saraiva de Carvalho, Eduardo Lourenço e Robert Kramer, será o cinema de ficção, já com o recuo suficiente, a abordar de novo o período. Seguem-se, assim, “Cinco Dias, Cinco Noites”, de José Fonseca e Costa, segundo romance de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal) sobre a clandestin­idade, “Um Adeus Português”, de João Botelho, dos primeiros a colocar o dedo na ferida da Guerra Colonial, ou “Capitães de Abril”, sobre esse glorioso dia de 1974. É já muito recentemen­te que se olha para o que aconteceu depois ao mais lendário desses capitães, em “Salgueiro Maia – O Implicado”, de Sérgio Graciano. E poucos dias antes do cinquenten­ário evocam-se os felizmente poucos mortos do dia da libertação, em “Revolução (Sem) Sangue”, de Rui Pedro Sousa.

Terminando como se começou, em tom metafórico, “fascismo nunca mais”. E não é o título de nenhum filme!

 ?? Crítico de cinema ?? João Antunes
Crítico de cinema João Antunes
 ?? ?? Cena do filme “Um Adeus Português” (1985), de João Botelho, com Fernando Heitor e Cristina Hauser
Cena do filme “Um Adeus Português” (1985), de João Botelho, com Fernando Heitor e Cristina Hauser

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