A Rússia e o estatuto de grande potência
Recuperar um papel e uma esfera de influência perdidos no final da Guerra Fria é algo que ajuda a explicar, mesmo sem que isso o possa justificar, a guerra levada a cabo pela Rússia de Putin em território ucraniano
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Associa-se a ideia de grande potência ao Congresso de Viena (1815) e ao Concerto da Europa, acordo informal entre Áustria, Rússia, Prússia, França e Grã-Bretanha para assegurar paz e estabilidade. Apesar de ser um conceito fluido, uma grande potência é vista como um Estado com influência política, diplomática, económica e militar importante no mundo exterior, e os seus interesses ultrapassam fronteiras. Não obstante a igualdade jurídica entre estados soberanos ser estruturante no Direito Internacional, a realidade é outra. Mais subtilmente do que no século XIX, o mundo é muito hierarquizado, cheio de práticas e regras não jurídicas, e as grandes potências têm estatuto superior aos restantes. No plano simbólico, isso projeta sucesso, dá prestígio e torna deferentes outros estados. No plano tangível, dá ganhos estratégicos e materiais. Especialmente na área geopolítica envolvente (esfera de influência) os estados menores tendem a ser seguidistas da sua política externa. Pelo menos, evitam contrariá-la abertamente. Na prática, as grandes potências conseguem configurar acordos internacionais refletindo os seus interesses políticos, económicos e de segurança.
2A busca de estatuto na política internacional não é mero passadismo, nem pode ser reduzida a irracionalidade emotiva. Liga-se à complexidade das motivações humanas, a que não escapam os decisores, tanto em estados autoritários como em democracias liberais. E é uma constante na política internacional, ainda que sob lógicas que variam com o zeitgeist (espírito da época). Pode assumir formas pacíficas e altruístas, por exemplo em matéria de direitos humanos e ambiente, mas também formas egoístas que podem levar à guerra, como quando uma grande potência impõe as suas preferências de política externa a estados racalcitrantes, numa zona vista como a sua esfera de influência. A história mostra-nos que o estatuto de grande potência acaba, quase sempre, por estar ligado ao teste da guerra num dado momento. Hoje, os EUA são o Estado com maior estatuto internacional, algo impossível de desligar da vitória na Segunda Guerra Mundial (e depois na Guerra Fria), tendo criado uma ordem internacional liberal, que, ainda que altruísta e atrativa para outros, reflete os seus interesses e preferências.
3A Rússia quer obsessivamente ser reconhecida como grande potência, estatuto perdido após a Guerra Fria. A ordem internacional liberal levaria a transformá-la num Estado normal aos olhos do Ocidente. Teria de seguir um caminho similar ao da Alemanha e do Japão, derrotados na Segunda Guerra Mundial e depois reintegrados no Ocidente político. Teria de implementar valores democráticos e liberais, o que, tratando-se de um imenso e diverso Estado-império, poderia levar à desagregação. Teria de interiorizar os códigos e práticas da ordem liberal internacional, em que os EUA têm uma primazia indisputada que os europeus normalmente aceitam bem e de que até necessitam, como mostra a importância da NATO na sua segurança militar. Mais do que isso, teria de abdicar de uma esfera de influência na sua área geopolítica contígua (grosso modo o antigo espaço soviético). Todavia, para a atual Rússia, pelo menos sob o governo autoritário de Putin, a aceitação desse status de um Estado à maneira do Ocidente não é vista como um caminho para a normalidade e para uma boa cidadania global. É algo percebido como uma humilhação que lhe nega o estatuto de grande potência, retirando-lhe prestígio e poder. A obsessão em ser vista como grande potência pelo mundo (admirando-a ou temendo-a, pouco importa) foi transformada numa questão existencial por Putin. Para ele, a Rússia tem de ter estatuto para definir o seu próprio interesse a bem ou a mal. Se necessário, pela guerra, como fez na Ucrânia. O que é irracional, absurdo e passadista quando visto pelo prisma do Ocidente, parece explicável (mas não legalmente, nem moralmente, justificável) por uma visão do mundo em que a obsessão pelo estatuto de grande potência se tornou uma questão existencial.