Jornal de Notícias - Notícias Magazine

ELÉTRICA E SEM PAPAS NA LÍNGUA

- TEXTO Sara Dias Oliveira FOTOGRAFIA João Silva/Global Imagens

Lisboa ao longe, o vento que vai e vem,

o homem que corta a relva no seu veículo motorizado no jardim público da marginal do Barreiro rente ao Tejo, meia dúzia de homens e mulheres de galochas no rio à cata do que ali anda e até onde a água lhes deixa, algumas senhoras numa aula matinal de ginástica. Blaya chega. Calças de ganga abertas de lado até aos joelhos, camisola de malha de algodão doce sem mangas e acima do umbigo, casaco impermeáve­l com as cores do arco-íris mescladas. Corpo tatuado, porque sim, cabelo apanhado, porque lhe apetece, respostas na ponta da língua, como sempre. O tempo está incerto, o vento enfraquece, o homem da relva desaparece, as senhoras da ginástica vão à sua vida, a chuva dá sinal. E Lisboa, lá ao fundo, coberta pelo nevoeiro, deixa de se ver. Blaya veste o impermeáve­l e prepara-se para as fotografia­s. O Barreiro, onde vive há poucos meses, é o cenário. Antes disso, a sua vida. Olhos nos olhos, sem rodeios, com gargalhada­s pelo meio entre os pingos da chuva.

Karla Rodrigues no cartão de cidadão, Blaya para o Mundo. Trinta e dois anos de vida. Diz o que lhe vai na alma, diz o que pensa, pensa no que diz. “Às vezes, temos de ter cuidado, mas, por norma, tudo o que eu penso tento dizê-lo de uma maneira ou de outra, tento chegar lá para tentarem perceber a minha linha de pensamento.” Há uma semana, no Instragram, aparece de cuecas, barriga à mostra, top vermelho, sentada no chão, pernas cruzadas. E escreve: “Podia encolher a barriga, meter as cuecas mais pra cima, amarrar o cabelo, endireitar as costas, não mostrar a unha que arranquei, esconder as unhas dos pés porque o verniz está a sair, meter um sorriso e um olhar mais interessan­te mas não, não me apetece”. Mais de 52 mil gostos neste post e muitos comentário­s. “Mulheres reais não têm que ser mulheres desleixada­s”, escreve alguém. Blaya reage: “Cada mulher é real sendo desleixada ou não. Cada mulher é como é consoante a sua realidade. Para si estou a ser desleixada para mim estou apenas relaxada”. Neste momento, tem 343 mil seguidores no Instragram e agora não segue ninguém. “Não quero saber da vida de ninguém.”

Usa as redes sociais para fazer o que lhe apetece e vai lá todos os dias. “Na verdade, as pessoas são como são e não há aquela coisa da mulher real ou da mulher irreal, cada mulher tem a sua realidade seja ela como for. Se está toda maquilhada, se tem silicone, é a realidade dela, é uma mulher real. Tento mostrar quem sou e mostrar que não faz mal as pessoas mostrarem quem são.” Tanto aparece altamente produzida como a amamentar a filha, a dançar com os seus bailarinos ou a demonstrar o amor pelos animais, sobretudo os abandonado­s e maltratado­s. É para o lado que acorda.

A única mania que assume é limpar os cantos da boca, garante que não é superstici­osa, mas usa sempre um colar do seu mestre de tatuagens da Tailândia. É do Sporting, mas não liga muito ao futebol e não segue o que se passa na bola. Não acredita em Deus, tem um pequeno templo em casa, ao estilo tailandês, para agradecer a vida, gosta de andar em centros comerciais, fazer compras. Coleciona tatuagens de artistas de quem gosta e do seu referido mestre da Tailândia. É uma questão de gosto pessoal. E a primeira tatuagem, feita aos 16 anos, já foi à vida. Era uma lua que deixou de fazer sentido.

Acaba de lançar uma linha de roupa com leggings transparen­tes, blusas e camisolas de algodão doce com cores alegres (uma das camisolas tem a frase “Boy eu tou me a cagar”). “Acho que faz falta um bocadinho de cor, um bocadinho de irreverênc­ia nas pessoas.” Está envolvida numa campanha para a compra de equipament­os para os bombeiros. “O Pafi Ajuda a Poupar Água” é um livro infantil, e Blaya está no videoclipe da campanha com dança e língua gestual. O que a faz feliz? “Estar na minha vida, estar com as pessoas de quem gosto, estar com a minha filha, ir ao parque, inventar coisas novas, ir às compras”, responde. Cantar, pular, sentir. “Fazer música, estar com os bailarinos, fazermos concertos.” Sentir o feedback do público, que salte, que cante, que ria, que seja feliz também. É o que lhe dá energia para continuar.

O seu nome artístico tem uma história. Blaya significa rapariga. Nos anos 1990, na altura do mIRC, o chat da altura, o seu nickname era dama. “No Algarve, os rapazes chamavam às raparigas blaya, e então ficou blaya, sempre era melhor do que dama. Já há muito tempo que uso Blaya.” É mãe há quase dois anos de Aura Electra. O nome da filha também não é por acaso.

Não cria expectativ­as em torno do que quer que seja, não pensa muito como vai ser ou deixar de ser. Vai e tenta fazer o seu melhor. Se tem dúvidas, pergunta, e não tem sonhos porque não quer pensar em coisas irreais ou que estão lá longe, inalcançáv­eis. Tem, isso sim, objetivos. Um deles é fazer grandes palcos com uma grande performanc­e. Um verdadeiro show. “Acho que é o que faz falta em Portugal. Temos concertos, sim, mas grandes performanc­es que exijam várias coisas, unicórnios a voar, cavalos-marinhos a saltar para o público, não temos.”

IRREVERÊNC­IA E PALHAÇADAS

Aos dois meses sobrevoa o Atlântico ao colo da mãe, vinda de Fortaleza, Ceará, Brasil, onde nasceu. “O meu pai veio para cá jogar à bola. Eu nasci, ele veio e, passados dois meses, vim com a minha mãe”, recorda. Instalam-se na zona de Lisboa, mudam-se para a Amora, na margem sul, depois partem para o Algarve. “Vida de jogador da bola basicament­e é isto: é andar de um lado para o outro, e nós íamos atrás.” Habitua-se a andar com a casa às costas.

A família estabiliza em Ferreira do Alentejo. Pré, escola primária, externato do 5.º ao 9.º, liceu em Beja e viagens de autocarro. Não é uma aluna brilhante, gosta da escola, porta-se bem nas aulas e, volta e meia, manda berros ao ar livre. “Sempre fui assim irreverent­e, sempre gostei de coisas diferentes, sempre gos

tei de dança, sempre gostei de estar em movimento. Mas, no geral, era calma. Estou sempre na minha mas, às vezes, gosto de fazer palhaçadas. No liceu, o pessoal conhecia-me por fazer palhaçadas ou por gritar no meio do recinto, fazia coisas assim muito espontânea­s”, recorda. Está focada no desporto, na música e na dança. “Gostava de ler e de escrever e então escolhi Humanidade­s.” Forma um grupo de dança que começa a participar nos campeonato­s do desporto escolar. Dois anos de liceu, volta a fazer as malas, muda-se para Sines para morar com o primeiro namorado. No liceu, entra no curso técnico de Informátic­a e, ao mesmo tempo, ia a Lisboa fazer cursos de hip-hop para ser professora.

Dois anos de Informátic­a, muda-se para Lisboa, sempre com o apoio dos pais. Aos 19 anos, está de novo na capital, entra no grupo de dança Ritmos Urbanos. Dança em empresas, em eventos, faz uma tour da Coca-Cola Zero pelo país. “Naquela altura, os bailarinos aproveitav­am as oportunida­des todas que existiam e aproveitav­am para fazer tudo. Quanto mais coisas fizessem, melhor.”

Primeiro a música, depois a dança. Aos 14 anos, está a escrever rap. Aos 17, grava o EP “Número 1”, que fica apenas no meio digital. “Percebi que o rap feminino não era muito grande em Portugal e não havia muita saída. O rap masculino quase não tinha saída, havia muitos rappers, mas não havia assim muitos concertos. E o rap feminino, ainda menos.” Concentra-se na dança e, pelos seus ouvidos, vão passando Eminem, Missy Elliott, Da Waesel, Sam The Kid. Aos 20, estava nos Buraka Som Sistema. Um casting para bailarinos, Conductor dos Buraka sabia que cantava e fazia rap nos tempos do curso de Informátic­a. “Fui fazer o casting, e como sabiam que também cantava, foi dois em um.” O primeiro concerto fora de Portugal foi na Suécia. “Não sabia as letras, inventava, mas as pessoas também não percebiam nada do que eu es

 ??  ??
 ?? FOTOS: DIREITOS RESERVADOS ??
FOTOS: DIREITOS RESERVADOS

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal