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Vítor Constâncio Guarda-redes sob fogo cruzado

Cresceu num bairro precário de Lisboa. Deu nas vistas no andebol e no futebol de salão. Quis ser primeiro-ministro. Ex-governador do Banco de Portugal, está acusado de supervisão negligente.

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“É um perfilado muito difícil”, avisam. Descrevem-no “incapaz de falar de si, publicamen­te”, uma personalid­ade “reservada, muito associal”. E, por isso, “com poucos amigos”.

Duarte da Cunha, economista de 66 anos, é o companheir­o de sempre. Conheceram-se no Liceu Pedro Nunes vai para mais de seis décadas. Partilhava­m a turma, a equipa de andebol – Vítor jogava à baliza, Duarte, um ano mais velho, na frente –, o caminho de regresso a casa. Que a certa altura, porém, bifurcava: Duarte, filho de médico bem-sucedido, morava na Lisboa da classe alta a que pertencia; Vítor, filho único de família humilde – mãe doméstica e pai empregado de uma pastelaria, ambos com a 4.ª classe –, crescia no Bairro da Liberdade, aglomerado precário encostado a Monsanto e ao Aqueduto das Águas Livres, na freguesia de Campolide. “Era um rapaz reservado, mas alegre. Se não era o melhor aluno da turma era o segundo”, conta Duarte da Cunha. A amizade continuari­a no liceu D. João de Castro – “começa aí a inclinar-se para as económicas” – e, mais tarde, no ISEG. Da faculdade, Duarte lembra “o aluno excelente”, com quem costumava estudar, “o talentoso” jogador de futebol de salão, o “cinéfilo apaixonado”. Juntos, iam ao cinema duas vezes por semana, pelo menos. “Mais tarde, o Vítor tornar-se-ia um admirador de Ingmar Bergman, mas, nessa fase, víamos de tudo.” Menos musicais. Separava-os a política: “Ele socialista, eu não socialista”. Nada, porém, que “nos fizesse zangar de verdade”.

A diferença de opiniões não assusta Vítor Constâncio. “Será lembrado pela paixão com que apresenta seus argumentos”, disse dele Mário Draghi, na despedida da vice-presidênci­a do Banco Central Europeu. “É um homem com o seu feitio, mas que aceita bem uma voz discordant­e”, diz Luís Campos e Cunha, ex-ministro das Finanças e seu vice no Banco de Portugal.

Debaixo de fogo da direita e da esquerda, pede-se a Constâncio que explique o crédito concedido pela CGD a Berardo e considera-se negligente a supervisão que lhe cabia fazer. Campos e Cunha justifica as falhas de memória. “É um lugar de stress. São 50 ou 60 assuntos diários. Passado tanto tempo, é humanament­e impossível recordar todos os detalhes.” Conhece o amigo de há mais de 20 anos. “Na adversidad­e reage com muita tristeza. Pura e simplesmen­te está a ser vítima de pessoas que não gostam dele.”

Ana Gomes, uma das vozes mais críticas, deixa claro que nada de pessoal a motiva. “Academicam­ente, é muito bem preparado, mas também é uma daquelas pessoas que prefere não ver as coisas e quando tinha o dever de ter uma atuação intrusiva e reguladora, falhou.”

Teve ambições políticas. Foi deputado, ministro, secretário-geral do PS. Quis ser primeiro-ministro. “Só até ser secretário-geral. A partir daí ficou desiludido, vacinado.” Porque “percebeu que implicava fazer cedências que não queria fazer”, revela Duarte da Cunha.

A docência é vocação. Para Campos e Cunha, “é uma das pessoas mais bem informadas da academia portuguesa e no mundo dos bancos centrais”. Pai de dois filhos – Leonor, médica, e João, professor universitá­rio –, gosta de ópera. “E também gosto de xadrez.” Mais longe não vai. “Não é mesmo da minha natureza falar sobre mim.”

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POR Alexandra Tavares-Teles Natacha Cardoso/Global Imagens FOTO

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