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EMPRESTA-ME A FACA PARA TE ASSALTAR

- POR Rui Cardoso Martins

Lágrimas de sangue, cortar o pescoço, coisas concretas, outras menos. Os dois homens tinham sido desalgemad­os, o advogado voara na sua toga de corvo para junto deles, crocitando cautelas

— ... foram feitos os reconhecim­entos quando vocês foram presos, provavelme­nte alguns continuarã­o a dizer que foram vocês... Esse gajo diz que foram feitas ameaças...

e sacudira as penas de petróleo, olhando o relógio, entretanto uma mulher baixa de grandes óculos sentou-se no banco dos réus, entre os dois homens, esta vinha de casa, não da prisão, a seguir entraram os juízes, que se atrapalhar­am com os cadeirões de pau-chumbo, parecia que arrastavam uma coluna da sé catedral.

— Isto é cómico, suspirou a juíza.

— Estas cadeiras são uma coisa estonteant­e, disse o colega.

Nesse instante, o sol no rio subiu pela encosta e no tribunal de S. João Novo caiu a linda luz amarela do Douro. Mas vinham aí palavras avermelhad­as, ameaças de sangue.

Os dois homens e a mulher eram “a quadrilha das facas” mas atenção, não andavam armados, as vítimas é que lhes passavam as lâminas para a mão! Um polícia contou que patrulhava a zona dos restaurant­es da zona industrial, e o proprietár­io chamou-o:

— Dois indivíduos que lhe propuseram afiar umas facas e pediram 35 euros e ele aceitou. Passados 40 minutos, voltaram e disseram que era mais dinheiro, 350 euros.

O polícia ficou ao lado do dono do restaurant­e quando os outros telefonara­m para combinar receber o dinheiro. Em voz alta.

— Foi quando ele falou em polícia que o senhor, que até aí falava em português, começou a falar em espanhol, a dizer para não meter a polícia nisto...

Há divergênci­as linguístic­as. Pessoas assegurara­m que era português com italiano, outra apostou numa derivação romena, e uma testemunha de ouvido mais fino até detectou português com mistura de espanhol e italiano, o que é fenómeno valioso, una mezcla di iguali gabarito só estou mesmo a ouvir no palhacês rico do Cardinali ou na tenda Chen de há 40 anos. Nem tudo morre no progresso da humanidade e ali também estava, a ser julgado no tribunal, o esplendor materno do latim. Outro ponto curioso: o primeiro contacto era muito educado, caloroso e simpático, até se falava numa festa de casamento, mas depois acidificav­a, vitriolava, como se alguém engolisse um líquido incolor, inodoro, solúvel em água e tarde demais avisassem: isso é ácido sulfúrico.

Vila Nova de Gaia, Canelas, Alhandra, um Mercedes cheio de planos avançava pelos caminhos de Portugal, afiando facas, afinando lâminas, mas no fim sempre acabava em extorsão.

Suzana estava na sua fábrica de empacotame­nto de açúcar:

— Eu nunca vi os senhores em questão. Falei várias vezes ao telefone. Aceitei que fossem mostrar o que sabiam fazer, que era afiar lâminas. Mas depois foi o meu irmão e o mecânico que trataram disso.

Mais tarde começaram os telefonema­s, cinco ou seis por dia durante muito tempo. Os afiadores de lâminas exigiam 1 300 euros.

— Se não pagássemos, ia haver um banho de sangue.

— Não lhe disseram que pertenciam à mafia portuguesa e aos ciganos da Amadora?, disse o procurador.

— Não.

— Que iam causar muitos danos à sociedade?

— Qualquer coisa assim.

— E que lhe cortavam o pescoço?

— Sim. Nós fomos à polícia fazer queixa. Mas eles desaparece­ram rapidament­e. Já não me lembro quanto tempo duraram os telefonema­s.

— Pagaram alguma coisa?, perguntou a juíza.

— Nada. E também não recebemos as lâminas de volta.

O irmão de Suzana disse que concordara com uma experiênci­a, e que depois as pessoas vieram “com um preço exageradís­simo”. Não disseram que lhe iam cortar o pescoço.

— O pescoço não. Foi que ia chorar lágrimas de sangue, que achei...

— Tétrico.

— Sim.

Na primeira abordagem, os donos das lâminas foram convidados para um casamento, mas depois, por assim dizer, o programa da boda fue cortado, capisce?, o asi está pareciendo.

O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.

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JOÃO VASCO CORREIA
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