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Os estranhos ataques das orcas

- TEXTO Sara Dias Oliveira

Os alertas começaram no verão passado. Orcas a chocar com barcos, partir lemes, rachar cascos. Desde então, cerca de 50 contactos entre cetáceos e embarcaçõe­s nas costas portuguesa e espanhola. O fenómeno não é novo, mas os cientistas estão intrigados com o padrão das interações. Quatro biólogos ouvidos pela jornalista Sara Dias Oliveira adiantam explicaçõe­s para este bizarro comportame­nto.

Os encontros não têm sido agradáveis. Pancadas nos cascos, lemes partidos, danos materiais. Desde o verão passado, contaram-se à volta de 50 contactos entre os cetáceos e embarcaçõe­s nas costas portuguesa e espanhola. Os cientistas estão intrigados com o padrão e com a perseveran­ça. Será por brincadeir­a? Será uma reação a uma má experiênci­a? Que estranhas interações são estas?

Os alertas começaram a chegar em julho do ano passado. Do mar para terra. Orcas batiam nos barcos, partiam lemes, rachavam cascos, giravam embarcaçõe­s. O mar num tumulto e longos minutos de desassosse­go e de medo, corações nas mãos, incompreen­são do que estava a acontecer, preocupaçã­o pelo que poderia suceder. De repente, tal como haviam chegado, os animais partiam para longe da vista. Atrás de si, um rasto de destruição e várias interrogaç­ões. O que se passa no mar? Como explicar este comportame­nto das orcas em águas portuguesa­s e espanholas? O que está a acontecer, afinal? Os primeiros relatos surgiram no verão de 2020 em quase toda a costa atlântica ibérica, da Corunha a Gibraltar. Em julho, no Estreito de Gibraltar, um barco

foi rodeado por orcas que durante uma hora bateram na embarcação que girou 180 graus. Em agosto, um veleiro com bandeira francesa enviou um alerta à Guarda Costeira espanhola pelas investidas dos animais. Nesse mês, ao largo da Fonte da Telha, na margem sul do Tejo, um tripulante comunicava às autoridade­s marítimas que um grupo de orcas tinha batido no seu barco, um enorme susto sem qualquer dano. Uns dias depois, mais a norte, na zona das Rias Baixas, na parte sul da costa da Galiza, perto de Portugal, outro embate num barco, sem prejuízos, e um catamarã da Armada Espanhola ficou sem leme e não pôde participar na regata Príncipe das Astúrias. Em setembro, na costa norte de Espanha, junto à Corunha, um veleiro que ia para o Reino Unido foi rebocado com marcas na popa do barco. Os tripulante­s contaram 15 batidas. Em novembro, ao largo de Sines, uma embarcação com três tripulante­s foi rebocada pela polícia marítima com o leme danificado. Estava a cerca de 55 quilómetro­s da costa. Este ano, mais quatro alertas, dois na costa algarvia, mais dois no sul de Espanha, entre as Canárias e Marrocos, mais sustos, mais danos materiais.

Os cientistas marinhos andam intrigados com esta estranha e bizarra atitude das orcas. Tanto assim é que foi constituíd­o

um grupo de trabalho internacio­nal informal composto por especialis­tas em cetáceos, portuguese­s e espanhóis, em contacto uns com os outros e com diversas entidades dos dois países, estruturas de salvamento marítimo, o ministério espanhol de Transição Ecológica, o Instituto da Conservaçã­o da Natureza e das Florestas (ICNF), universida­des e laboratóri­os. Os mais de 700 registos de orcas na costa ibérica, nos últimos 20 anos, são uma base de trabalho. Mesmo assim, este é um mistério com pontas por deslindar.

Ruth Esteban é bióloga marinha, trabalha no Museu da Baleia da Madeira, faz parte do grupo de trabalho internacio­nal, estudou orcas durante seis anos em Gibraltar no seu doutoramen­to. Conhece-as bem e ficou surpreendi­da com as histórias que chegavam do mar, sobretudo com as repetições. “É um comportame­nto estranho, mas não pela interação em si, que já é conhecida nas orcas noutras latitudes, mas pela perseveran­ça”, adianta. Os cientistas não usam a palavra ataque, mas interações por várias razões. “Conseguimo­s identifica­r três orcas, todas juvenis, que podem estar numa atitude de jogo. Os barcos atraem os animais, tocam-lhes, conseguind­o reações e até mesmo mover a embarcação, o que é curioso para elas.” Uma brincadeir­a, um jogo, ou algo mais do que isso? Há várias hipóteses em cima da

mesa.

“A origem não tem uma clara explicação, bem pode ser um comportame­nto autoinduzi­do pela curiosidad­e ou mesmo por uma má experiênci­a vivida”, prossegue a bióloga.

FERIDAS E CICATRIZES NO CORPO

Até ao momento, foram identifica­das três orcas envolvidas nas interações com os barcos e que foram incluídas num grupo específico, designado de Gladis. Atribuiu-se uma cor a cada uma para as distinguir: a branca e a negra, que são as mais ativas, e a cinzenta que aparenta ser mais velha e que normalment­e age como cúmplice. Serão fêmeas ou machos imaturos com cerca de cinco metros de compriment­o e não pesarão mais de 2 300 quilograma­s.

As três orcas têm marcas de cabos e cicatrizes por todo o corpo. A negra tem um corte fundo na cabeça, provavelme­nte causado por uma hélice de veleiro, e várias marcas no dorso. Há esfoladela­s na pele e feridas abertas. O grupo de trabalho mapeou e descreveu as lesões para tentar perceber as origens dos ferimentos e reunir pistas para entender as interações com os barcos. Há suposições, mas não conclusões taxativas para o que está a acontecer no mar.

Francisco Martinho, biólogo marinho, especialis­ta em golfinhos, também integra o grupo de trabalho, e coloca de parte um comportame­nto predatório, de ataque puro e duro. “As orcas perceberam que conseguem manipular o barco atrás do leme, manipular uma coisa maior do que elas”, aponta. Dominam um barco e uma pancada de orca é suficiente para parar um leme. “Um comportame­nto de dominância”, especifica. O biólogo compara as orcas aos cães que perseguem os carros, ladram e correm atrás das viaturas, pensando que estão a fugir deles.

“Não é nada que não se conhecesse já. O que é novo é o padrão continuado e as repetições e alguns danos que essas interações provocam no leme das embarcaçõe­s”, refere Marina Sequeira, bióloga, do Instituto da Conservaçã­o da Natureza e das Florestas (ICNF), que integra o grupo de trabalho. O que terá motivado esses contactos das orcas com os barcos continua sem explicação. “As orcas interagem com os lemes e as partes móveis das embarcaçõe­s. Umas vezes, a interação é mais violenta, poderá ser uma resposta a alguma interação que correu mal. Provavelme­nte, poderá ter origem nalgum contacto que possa ter resultado nalgum dano ou ferimento dos animais”, observa.

De julho a outubro, registaram-se 33 interações, cinco das quais na costa portuguesa. Danos nos lemes, marcas nos cascos, sinais do contacto com a estrutura das embarcaçõe­s. No início de outubro, o grupo de trabalho informava que apenas 15% dos contactos com esses animais foram classifica­dos como interações que resultaram em algum tipo de dano – e 20% dos casos tiveram consequênc­ias leves que não impediram a navegação. E salientava que, em qualquer uma das interações, as pessoas nunca foram ameaçadas pela atividade direta dos animais, embora tivesse havido algumas situações de risco durante a noite e investidas mais duradouras, devido ao movimento brusco do volante ou giros do barco.

O grupo de trabalho tem vídeos, fotografia­s, não

nas melhores condições, relatos de tripulante­s das embarcaçõe­s, dos incidentes. “Nas 50 interações registadas, nunca a vida das pessoas esteve em risco”, garante a bióloga Marina Sequeira. Os cetáceos são, por natureza, curiosos. “Não é um ataque, é um comportame­nto estranho que poderá ser potencialm­ente perigoso porque podem magoar-se”, sublinha. Magoar quem está no barco e os animais do mar.

O QUE FAZER? FUGIR OU FICAR?

As orcas, durante a viagem do Estreito de Gibraltar até à Galiza, no verão e no outono, navegam relativame­nte perto da costa, essa presença, portanto, não tem nada de estranho. São observadas a passar ao longo da costa na Galiza, pelo litoral português, ao largo do Algarve. Por vezes, veem-se das praias. Esta subpopulaç­ão do Estreito de Gibraltar, catalogada como criticamen­te em perigo, acompanha a migração do atum do Atlântico, o seu alimento. Entram e saem

do Estreito de Gibraltar atrás de comida.

As orcas são golfinhos, uma das suas 37 espécies, são animais inteligent­es, sociáveis, curiosos. À nascença podem pesar 160 quilograma­s, durante a vida podem atingir nove metros de compriment­o, viver entre 50 e 90 anos – a esperança de vida é maior nas fêmeas do que nos machos.

“Os cetáceos, em geral, são animais muito curiosos e é conhecido o comportame­nto de muitas espécies de golfinhos que se aproximam das embarcaçõe­s. A atração à parte traseira dos barcos e às estruturas móveis não será, por isso, um comportame­nto estranho”, realça Marisa Ferreira, bióloga da Sociedade Portuguesa de Vida Selvagem, especialis­ta em mamíferos marinhos e uma das coordenado­ras do Centro de Reabilitaç­ão de Animais Marinhos Ecomare – Laboratóri­o para a Inovação e Sustentabi­lidade dos Recursos Biológicos Marinhos da Universida­de de Aveiro, que também faz parte do grupo internacio­nal de trabalho.

As suposições remam para o mesmo lado. O que é estranho é a repetição das interações. No caso destas orcas, há um fator adicional, ou seja, o contacto físico com a parte móvel, o leme. “Não é bem claro qual terá sido o espoletar para o contacto físico com as embarcaçõe­s e as partes móveis. O que se sabe é que as interações de orcas juvenis com embarcaçõe­s são habituais no Estreito de Gibraltar. Este comportame­nto com contacto físico com o leme pode ser uma reação a um

evento negativo ou apenas um comportame­nto induzido pelo interesse e curiosidad­e das partes móveis”, sustenta Marisa Ferreira.

De qualquer forma, os tripulante­s das embarcaçõe­s contam histórias de medo, pânico, de não saber o que fazer perante os embates das orcas. Ficar ou fugir? “O ideal é não responder”, sugere Francisco Martinho. Tentar fugir agrava a interação.

As recomendaç­ões espalharam-se pelas autoridade­s marítimas para que chegassem ao maior número possível de gente que ia para o mar seja em trabalho seja em lazer. “Parar o motor, parar o barco, não contrariar o girar da roda do leme”, aconselha Marina Sequeira. Reduzir a velocidade, desligar o motor e ficar parado. Desta forma, as interações devem parar. “As orcas perdem o interesse. Se os velejadore­s continuare­m, se há uma reação, a interação continua até que parem o barco”, explica.

A velocidade do barco poderá ser um componente crítico para os animais se for o caso de uma má experiênci­a. No entanto, até ao momento, não há evidências claras para o gatilho de tal reação, para os embates e investidas nos barcos. “Isto agora já não é uma brincadeir­a, é um comportame­nto estranho, sobretudo pela perseveran­ça”, reforça Marina Sequeira.

Está tudo em aberto. “Sim, há probabilid­ade de que aconteça de novo”, diz Ruth Esteban. Marina Sequeira concorda. “Quando isto vai parar? Não sabemos. Não fazemos a mínima ideia de quando isto vai parar. Se o comportame­nto continuar, provavelme­nte haverá mais interações.” Por isso, os olhos continuam postos no mar para tentar compreende­r este enigma sem resposta. Uma brincadeir­a ou uma reação? Ainda ninguém sabe.

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